909kWh poupados com a
i

A opção Dark Mode permite-lhe poupar até 30% de bateria.

Reduza a sua pegada ecológica.
Saiba mais

Entrevista ao escritor brasileiro, Itamar Vieira Júnior, a propósito do seu último livro "Salvar o Fogo". 1 Junho de 2023 Hotel Flórida, LIsboa TOMÁS SILVA/OBSERVADOR
i

TOMAS SILVA/OBSERVADOR

TOMAS SILVA/OBSERVADOR

Itamar Vieira Júnior. Salvar o fogo para salvar "o que há de mais precioso em nós"

Depois de vencer os mais importantes prémios literários no Brasil, Itamar Vieira Júnior regressa com um novo romance que revisita o passado para compreender o presente e pensar um futuro melhor.

Itamar Vieira Júnior, um dos mais importantes escritores brasileiros da atualidade, tem um novo romance. Salvar o Fogo recupera alguns dos temas introduzidos em Torto Arado, romance com que venceu o Prémio Leya em 2018, e também o espaço da ação, a zona rural do estado da Bahia. Mas apesar dos pontos em comum, Salvar o Fogo é, em muitos aspetos, diferente de Torto Arado, como explicou o escritor em entrevista ao Observador, nomeadamente na forma como os membros da comunidade interagem uns com os outros e o racismo se intromete nas suas vidas.

Vieira Júnior, um autor profundamente preocupado e atento ao desenrolar da história do seu país, o Brasil, encontrou uma explicação para os fantasmas que assombram a localidade fictícia de Tapera do Paraguaçu nas origens do lugar, erguido à sombra de um antigo convento do século XVI. Ao Observador, o escritor, que passou por Lisboa para apresentar o seu segundo romance, destacou a forma como a Igreja Católica, uma das personagens principais do seu  livro, influenciou a maneira de viver das populações locais e como essa influência ainda se faz sentir no Brasil de hoje, um país que ainda luta pela democracia.

"Salvar o Fogo", o segundo romance de Itamar Vieira Júnior, foi publicado em Portugal pela Dom Quixote no final de maio

Quando falámos em 2021, após ter recebido os prémios Jabuti e Oceanos, estava a trabalhar neste novo livro. Como é que se sente ao vê-lo finalmente publicado? Era um romance muito aguardado.
Sinto que cumpri minha missão, porque tinha tudo para dar errado depois de tudo o que aconteceu com Torto Arado e de ter recebido tantos prémios e ganhado um público leitor tão grande. Isso poderia ter-me intimidado a escrever um segundo livro, mas está aí. É a prova de que a literatura venceu, que consegui chegar ao fim e entregar uma história aos leitores.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Estava receoso?
A maior parte do tempo não, mas depois do Jabuti e do Oceanos houve um aumento imenso de leitores e de interesse dos jornalistas. Durante um período, isso pareceu um problema, mas depois disse, não, tudo o que aconteceu com este livro se deve também aos leitores. Eles carregaram essa história com eles, foram indicando o livro para outras pessoas. Claro, sou parte dessa história, mas ela já encontrou seu caminho. Então vou cuidar do que tenho que fazer daqui para a frente.

Ganhou vida própria?
Ganhou, e eu fui cuidar daquilo que gosto de fazer, que é escrever.

Torto Arado e Salvar o Fogo têm muitos pontos em comum, desde logo o facto de ambos se passarem em ambientes rurais. Foi propositado?
Acho que é natural, porque a história de Salvar o Fogo surgiu enquanto escrevia Torto Arado. A meio da história, percebi que não havia espaço para tratar tudo o que queria, para fazer as personagens percorrerem os caminhos que queria que percorressem, porque acabaria ficando uma coisa sem sentido. Em Torto Arado, havia uma personagem em particular que me chamou bastante a atenção — não vou dizer qual é — e à qual queria voltar, mas não havia espaço para fazer isso naquele romance, então decidi escrever uma nova história. Ainda que guardem elementos semelhantes, são histórias distintas. Não faz diferença se o leitor ler esta primeiro e a outra depois. E se passam em espaços diferentes. As personagens são diferentes. Embora a luta pela terra também atravesse este romance, essa luta se dá noutro contexto. Não é uma área de clima hostil como era o anterior — a área do semiárido — e isso mostra inclusivamente que, às vezes, a vulnerabilidade, a condição social das personagens depende menos do clima, do tempo, e muito mais das estruturas sociais. Acho que há pontos de contacto, mas há também pontos de divergência. Se em Torto Arado a comunidade tinha laços de solidariedade fortes e conseguia atravessar o tempo tentando se proteger de grande violência, em Salvar o Fogo, encontramos uma comunidade dividida, atravessada por sua história esclavagista, pela história do genocídio indígena. É uma comunidade que é hostil para com uma das personagens, Luzia, que é tida como uma feiticeira, uma bruxa, e não sabemos bem porquê. Vamos descobrindo ao longo da leitura.

"A ideia do Brasil como um país do futuro é a de um país de uma esperança que não é a da espera, mas de uma esperança ativa, em que as pessoas discutem o racismo, o direito ao território, à moradia, à vida, e não porque querem atormentar os políticos, mas porque projetam dignidade humana e um futuro melhor para todos."
Itamar Vieira Júnior, escritor

A comunidade não é apenas hostil para com Luzia. Na verdade, não parece existir qualquer espírito de entreajuda entre os habitantes.
Verdade, mas acho que tem a ver com o passado. Faz sentido se pensarmos na história — na história maior. É uma comunidade que sempre existiu. Percebemos isso [à medida que avançamos na leitura]. Existiam os indígenas, depois apareceram os europeus e os imigrantes da diáspora africana. E esse lugar foi-se conformando sob a égide de uma instituição, que é uma personagem no livro — a Igreja. Mesmo que a história [do romance] se passe num tempo muito próximo do nosso, remete inevitavelmente para o passado. A primeira coisa que os europeus fincaram no chão quando chegaram à América, mesmo antes de levantarem uma parede para uma casa, foi uma cruz. Para muitas sociedades, essa cruz significou o apagamento de muita coisa — de saberes, de crenças. O binarismo do cristianismo, o facto de dividir o mundo entre bem e mal, entre certo e errado, acabou por dividir aquelas pessoas, porque umas se conseguiram enquadrar na evangelização, aceitar os dogmas da Igreja e viver assim, mas outras, que ainda estavam muito ligadas aos saberes e crenças anteriores, eram tidas como diabólicas. Em Salvar o Fogo, encontramos uma comunidade conflagrada, e conflagrada pela sua própria história e por aquilo que aconteceu antes.

Esse apagamento dos saberes anteriores nunca se concretizou totalmente. As crenças antigas ainda persistem.
Vivo numa região, o nordeste brasileiro, onde as pessoas dão uma explicação mágica para as coisas que não têm uma explicação científica ou para as quais não há uma explicação por meios mais diretos e informativos, como os jornais. Conversava estes dias com uma escritora portuguesa sobre escritores latino-americanos e ela me disse que gosta muito de Vargas Llosa. gosto muito também, mas tenho mais afinidade com García Márquez, porque acho que aquele universo colombiano expressa muito bem o lugar de onde venho. Esses saberes ancestrais não foram totalmente apagados, mas foram estigmatizados como algo nocivo, tóxico e diabólico. E muitas vezes as pessoas que acreditam nessas crenças enfrentam imensos preconceitos. Vivo em Salvador. A Bahia chegou a Portugal talvez de uma maneira muito pungente através de Jorge Amado, que narra essas crenças. Ainda hoje, no século XXI, encontramos muita hostilidade para com as crenças que não se enquadram no cristianismo, seja católico ou neo-pentecostal, que está a crescer no Brasil, mesmo num lugar como aquele. Existe uma avenida em Salvador que se chama Mãe Stella de Oxóssi, em homenagem a uma yalorixá, uma sacerdotisa do candomblé, e havia uma estátua dela lá. Há menos de cinco meses essa estátua foi incendiada, certamente por religiosos de outras crenças. Esse ambiente de violência demonstra muito aquilo que está retratado em Salvar o Fogo. A estátua dessa mulher foi incendiada como se fosse a estátua de uma bruxa, de alguém que fez um pacto com o mal. Essa maneira binária de ver o mundo, entre o bem e o mal, dada pelo cristianismo, terminou por dividir comunidades, crenças, e por conflagrar a violência [religiosa] que persiste entre nós até hoje.

Entrevista ao escritor brasileiro, Itamar Vieira Júnior, a propósito do seu último livro "Salvar o Fogo". 1 Junho de 2023 Hotel Flórida, LIsboa TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Itamar Vieira Júnior venceu os prémios Jabuti e Oceanos com o romance de estreia, "Torto Arado", vencedor do Prémio Leya em 2018

TOMAS SILVA/OBSERVADOR

É curioso que isso aconteça precisamente na Bahia, uma região onde os vestígios das antigas religiões e crenças são muito fortes.
São muito. Um censo deu conta da existência de mais de 1.200 terreiros de candomblé em Salvador. Os terreiros são uma espécie de templos. Isso mostra que há muitos praticantes, mas ainda assim essas pessoas continuam a ser vítimas de violência, de intolerância religiosa. Muitas comunidades do Rio de Janeiro têm terreiros de candomblé ou de umbanda, mas os traficantes se identificam com o cristianismo, se declaram evangélicos e promovem verdadeiras injustiças. Invadem os terreiros, quebram imagens e outros instrumentos ritualistas. Isso mostra que esses saberes ancestrais e tradicionais continuam a ser tidos como diabólicos no Brasil.

Isso é algo que lhe interessa explorar nos seus livros?
Todos nós que escrevemos estamos refletindo sobre o nosso tempo. Mesmo quando se trata de ficção, ela entra no campo histórico, volta ao passado. Vamos sempre escrever a partir dessa perspetiva — do que é relevante, interessante e importante no nosso tempo. Estamos dando um testemunho do que está a acontecer, então é inevitável que aquilo que a gente escreva seja penetrado, entranhado, por aquilo que está a acontecer à nossa volta. É quase inevitável. Para mim, escrever tem esse sentido — ainda que seja literatura, que seja fruição, escrever é um exercício que faço para me conhecer a mim mesmo, conhecer o mundo à minha volta, as pessoas à minha volta. E, claro, para conhecê-las, preciso tentar compreender este tempo e o porquê deste tempo ser assim.

A comunidade de Salvar o Fogo é uma comunidade mista, descendente de indígenas, escravos africanos e europeus. A questão indígena não costuma ter muito destaque na literatura brasileira.
Não é muito comum. Existem algumas obras clássicas, por exemplo, Iracema, Ubirajara e O Guarani, de José de Alencar, que trouxe os indígenas para a literatura como personagens, mas foram escritas no século XIX, há muito tempo. O Brasil é um país onde ainda há um grande número de povos originários e seus descendentes. Durante muito tempo, a literatura brasileira deixou de refletir a diversidade étnica e cultural do Brasil. Felizmente, estamos vivendo um momento novo. Muitos autores brasileiros têm voltado o seu olhar para essa perspetiva. A mais recente vencedora do Prémio Jabuti de Romance, Micheliny Verunschk, escreveu um livro chamado O Som do Rugido da Onça, que por acaso li em Lisboa, há quatro anos. Ainda não tinha sido publicado, ela me pediu para fazer uma leitura. Esse livro conta a história de duas crianças indígenas que foram sequestradas pelos exploradores alemães Spix e Martius e levadas para a Europa, onde viveram um, dois anos, acabando por morrer. Ela recuperou essa história dando-lhe um tom ficcional. É um olhar sobre as sociedades indígenas que já não havia na literatura brasileira. Temos o Jefferson Tenório [autor de O Avesso da Pele] , que está a recuperar os escritos da comunidade negra brasileira, e outros autores, que estão publicados em Portugal, que têm dado protagonismo a essa diversidade que é tão nossa. O Brasil é um país para onde confluíram muitos povos, muitas sociedades. É natural que a gente queira que tudo isso esteja representado na literatura também.

"Todos temos uma chama, que é um dos muitos nomes para o fogo. Metaforicamente, precisamos conhecer o fogo para conseguir viver com ele, para conseguir tirar dele aquilo que pode ser bom e para lidar com aquilo que não é tão bom. Nesse sentido, o elemento fogo reflete um pouco o espírito humano. Nós somos isto."
Itamar Vieira Júnior, escritor

O racismo é um tema que tem sido muito tratado na literatura brasileira, mas é quase sempre o racismo contra a população negra. As comunidades indígenas continuam a ser esquecidas.
Concordo, mas acaba sendo um pouco natural também, porque o Brasil é um país com um grande contingente populacional negro e essa população está cada vez mais consciente do espaço onde vive e do lugar que ocupa. Tem debatido de maneira muito forte todas as questões relacionadas com a sua existência dentro da sociedade. Historicamente, as comunidades indígenas foram esquecidas, apagadas, tornadas invisíveis. O Brasil era um país com muitas etnias indígenas, mas elas foram exterminadas e ainda continuam em risco. Pouco se fala sobre o racismo contra as comunidades indígenas, mas, muito recentemente, isso ficou muito evidente. No início do governo atual, do governo Lula, se descobriu que os ianomâmis, que vivem na Amazónia, estavam num estado de desnutrição, de miserabilidade, e que o seu território tinha sido invadido por garimpeiros ilegais que queriam explorar ouro. Estava a acontecer uma verdadeira chacina, que era muito o reflexo do governo anterior, que abandonou aquelas comunidades. Acho que aquilo tocou a sociedade brasileira e se passou a perceber que as comunidades indígenas continuam a ser vítimas de racismo e de tantas outras coisas e que têm ficado à margem desse processo civilizatório que o Brasil tenta levar adiante. Mas há vozes, há líderes indígenas muito fortes. Estou a pensar no escritor Daniel Munduruku, que tem uma obra extensa, em Ailton Krenak, que é um líder indígena forte e que está publicado em Portugal. Essas vozes têm cada vez mais presença no debate público e têm colocado as suas questões e reivindicado os direitos que historicamente lhes têm sido tirados.

O racismo é um dos temas centrais de Salvar o Fogo, mas o racismo que acontece dentro da própria comunidade e da própria família.
Venho de uma família interracial e a minha experiência com o racismo não se deu no espaço externo à casa, mas interno. Estou pensando não apenas nos meus pais e nos meus irmãos, mas nessa família maior, que envolve tios, primos, avós. Para mim, a experiência do racismo existiu primeiro em casa, nesse espaço familiar. É absolutamente natural que isso ocorra, porque a sociedade brasileira foi construída com base no racismo. E isso é algo que me incomoda profundamente. Temos uma personagem, Alzira, que é a mãe de Luzia, que é uma mulher negra que acredita que a família e aquela situação de miséria extrema em que vivem só encontrará alguma redenção se puderem, ao longo das várias gerações, clarear o tom da pele e tornarem-se brancos. A história de Alzira reflete muito um quadro muito famoso no Brasil, A Redenção de Cam, que foi pintado no fim da Abolição, por volta de 1890, por um espanhol chamado Modesto Brocos. No quadro, está representado uma mulher negra que levanta as mãos para o céu. Ela tem uma filha que já é mais clara e o neto é branco, porque tem um pai branco. Ela está agradecendo aos céus aquela descendência mais clara. Esta ideia não foi apenas construída num contexto social. Depois da abolição da escravatura, o Estado brasileiro pôs em prática através da lei uma espécie de eugenismo, porque se reconhecia como um país maioritariamente negro ou de descendentes de negros e queria se branquear. Houve um projeto oficial para que, em 100 anos, não existisse população negra e que o país se tornasse branco, principalmente a partir da miscigenação. Foi por isso que imensos europeus foram convidados a ir para o Brasil nesse período. Italianos, alemães, portugueses, espanhóis… Alzira é um reflexo disso tudo, do que se chama colorismo. Somos todos descendentes de negros e indígenas, mas o que pesa mais é a cor da pele. Quem tem a pele mais retinta, acaba se tornando mais vulnerável, vítima de violências maiores. Salvar o Fogo tira-nos um pouco dessa dicotomia de que o racismo só existe entre brancos e negros e fora da família, e nos coloca no centro de uma família que é distinta, porque é miscegenada, mas que também é atravessada de uma maneira brutal pelo racismo.

"A Redenção de Cam" (1895), do pintor espanhol Modesto Brocos

Esse aspeto do racismo, a forma como afeta as relações familiares e interpessoais, tem também sido pouco abordado pela literatura, brasileira e não só.
É muito perigoso a gente pensar que o racismo só ocorre entre brancos e negros. Se a racialidade das pessoas negras e indígenas é uma construção colonial, do passado, ser branco também é uma construção social. Somos todos humanos. Não há assim tantas diferenças no nosso ADN. Mas, enfim, o capitalismo não prescinde ainda do racismo para estruturar uma hierarquia social que alimenta os exploradores em detrimento daqueles que são subalternizados e explorados. Isso é algo que precisa ser debatido, discutido. O Brasil é uma sociedade plural. Portugal, no contexto da União Europeia, é um país cada vez mais multiétnico. Para cá confluem pessoas de diferentes lugares para viver, morar. Acho que o que está relatado em Salvar o Fogo reflete um pouco o que acontece no mundo, aqui, no Brasil, também nos Estados Unidos. Mas pouco se fala do racismo numa família miscigenada e de como isso é também determinante.

Outro tema muito presente no livro é a violência, mas neste caso a violência sexual. É uma questão que tem ocupado muito espaço no debate público. Foi influenciado por essa discussão?
A violência sexual não é algo que existe apenas nos nossos dias, sempre existiu, mas talvez não existisse nas pessoas a consciência de que o seu corpo é algo que lhes pertence e que é inviolável. E temos também esta personagem, que é a Igreja, e toda a história que ela carrega. A Igreja chegou nesse lugar e imprimiu um modo de ver e de conhecer o mundo que acabou por distorcer tudo aquilo que as pessoas conheciam. A Igreja tem também enfrentado problemas nos dias de hoje. Portugal tem vivido um debate importante após se ter descoberto uma história de abuso, que não decorre apenas em Portugal, mas noutros países também. Não houve uma pesquisa sistematizada no Brasil, mas a gente tem informações chocantes. No Chile, houve foi mais profundamente pesquisado e descobriu-se que isso aconteceu de uma maneira muito violenta. Ou seja, além da história que carregamos, há ainda essa nódoa na Igreja que nos faz refletir sobre o seu papel na vida pública e na nossa sociedade. Digo isto porque vivo no Brasil e o cristianismo ainda é um definidor de comportamento e da vida pública, política e social. Temos uma bancada da Bíblia no Congresso Nacional. São essas pessoas que estão legislando os nossos direitos. O Estado é teoricamente laico, mas, na prática, mesmo quem não tem religião como eu, é afetado pelo que é decidido por essas pessoas. A literatura e a arte têm sido um espaço para refletir criticamente sobre esse sistema de poder, sobre essas instituições que fazem parte da vida pública e que nos afetam de alguma maneira. A Igreja surge como uma personagem e, num dado momento, conta-se um abuso, mas a história desse abuso não está apenas relacionada com a Igreja, porque há uma outra personagem que também é violada, mas num contexto que tem a ver com a racialidade. Estas relações de poder e violência são também metáforas para repensarmos as relações de poder na sociedade.

"Era uma coisa que escutava muito quando era criança, que nós não somos infalíveis, que somos humanos. Acho que as pessoas perderam a dimensão de nossa própria humanidade e o fogo está aí para nos lembrar que nada é absolutamente bom ou mau."
Itamar Vieira Júnior, escritor

Falando nas relações de poder: é muito curioso notar a relação desta comunidade com a política. Há um episódio muito caricato, o das dentaduras.
Deve ter sentido até repulsa.

É horrível, mas também é cómico.
É cómico, porque chega a ser inacreditável que alguém proponha uma coisa daquelas [risos].

Isso aconteceu mesmo?
Não vi, porque talvez não tivesse estômago para ver, mas relataram-me isso. Talvez seja inacreditável para você, mas para mim, que sou brasileiro, é totalmente compreensível, porque sei como a política se dá nesses lugares mais remotos. Há algo de engraçado naquilo tudo. Esse episódio tão pitoresco é muito representativo do que a política brasileira tem sido nos últimos tempos, aliás, desde sempre — é pensar que política pública é oferecer uma bacia com dentaduras e ver qual encaixa melhor na boca de quem. É um pouco uma metáfora dessa relação entre políticos e sociedades.

Apesar de muitas pessoas aceitarem as dentaduras, existe um grande desinteresse pela vida política, que é justificado com a inação dos políticos junto destas populações. Luzia diz mesmo que “a vida continua a mesma” independentemente de quem seja eleito.
Parte da história de Torto Arado decorre durante o período da Ditadura Militar no Brasil. Isso não muda a vida das pessoas, pelo menos no contexto mais prático. Claro que a vida se tornou pior, mas não têm consciência disso porque sempre estiveram ali esquecidas, desde sempre. Não é um governo que mudará o que elas estão passando, vivendo, sofrendo em sua jornada histórica. Acontece o mesmo em Salvar o Fogo. Entra governo, sai governo… Não vou ser injusto, não são todos iguais, mas o ideal era que conseguissem alcançar todos, mas isso não acontece. Não sei se pelo tamanho e dimensão do Brasil, não sei se pelo desinteresse, não sei se por nossa democracia… Tenho consciência que é frágil, mas, embora a gente a esteja defendendo sempre, e descobrimos que precisávamos de o fazer com o último governo, desejamos que o Brasil seja democrático, porque de facto não é. Só vai ser quando for um país para todos e ainda não é um país para todos. Está longe de o ser, mas ainda temos esperança. A ideia do Brasil como um país do futuro é a de um país de uma esperança que não é a da espera, mas de uma esperança ativa, em que as pessoas discutem o racismo, o direito ao território, à moradia, à vida, e não porque querem atormentar os políticos, mas porque projetam dignidade humana e um futuro melhor para todos.

Entrevista ao escritor brasileiro, Itamar Vieira Júnior, a propósito do seu último livro "Salvar o Fogo". 1 Junho de 2023 Hotel Flórida, LIsboa TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Itamar Vieira Júnior lançou em 2021 um livro de contos, "Doramar ou a Odisseia"

TOMAS SILVA/OBSERVADOR

A discussão pública está mais viva?
Muito mais viva. O Brasil passou por uma espécie de revolução silenciosa. Até aos anos 2000, as universidades públicas eram um espaço privilegiado porque era preciso fazer um exame para entrar e apenas pessoas brancas de classe média tinham acesso à educação superior. Eram poucas as pessoas de outras classes sociais e etnias que conseguiam ter acesso à universidade pública. Há cerca de 20 anos, começou a discutir-se isso como política de reparação inclusiva pelos episódios de escravidão e criou-se um mecanismo que cruza racialidade e condição social. Uma pessoa negra que estudou a vida inteira em escolas particulares e teve uma boa vida, que é algo raríssimo no Brasil, não tem direito a isso. Apenas quando se cruzam os indicadores de racialidade e condições sociais é que uma pessoa tem uma condição especial para ingressar na universidade. Isso mudou o perfil intelectual e social do Brasil, porque já houve tempo para as pessoas saírem das universidades e começarem a debater no espaço público. Isso tem mudado sobremaneira o perfil das discussões. Quando se diz que nunca se falou tanto sobre racismo no Brasil, isso reflete um pouco os efeitos dessa política de cotas, que permitiu que a universidade acolhesse pessoas que antes não tinham como entrar.

A sociedade brasileira tornou-se uma sociedade mais informada?
Mais informada, mais democrática, talvez, do que era há 20 anos, porque estamos criando mecanismos que permitem uma certa mobilidade social. A mobilidade social brasileira era muito baseada na questão racial. Quando dizem que a escravidão foi abolida há 130 anos, esquecem-se que escravizámos durante 400. Depois da Abolição, não houve nenhuma política de reparação, de reforma agrária. Aquelas pessoas foram abandonadas à sua própria sorte. Passaram 100 anos e, de facto, muito poucas conseguiram ascender socialmente. A maioria continua tal e qual como no passado. Falhamos em proteger essas pessoas, em permitir que integrassem a sociedade. Cada vez que é aprovada uma política pública de reparação, estamos a escrever a lei da abolição, porque estamos permitindo que essas pessoas sejam de facto integradas na sociedade. Essa história ainda não acabou. Ainda vamos escrever muitos capítulos, mas para que isso possa acontecer, precisamos refletir sobre tudo isso, sobre o nosso passado, para projetarmos um futuro diferente. [O cartoonista] Millôr Fernandes dizia que o Brasil é um país com um passado pela frente. De facto, o Brasil é esse país que quer ser do futuro e que tem um passado pela frente para resolver, para que um dia possa ser um lugar equânime e igualitário para todos.

Salvar o Fogo é um livro que trabalha muito o simbólico e o metafórico. Isso é evidente, por exemplo, na passagem em que descreve a subida da maré, que traz consigo a história daquele espaço e daquela comunidade.
O rio é essa grande metáfora — da história, da vida. Esse rio é o Paraguaçu, que nasce na Chapada Diamantina [no estado da Bahia], que é a paisagem de Torto Arado. Aqui [em Salvar o Fogo] estamos num ambiente mais próximo da capital [Salvador], da cidade. Esse rio, da vida e da história, está levando as pessoas à Baía de Todos-os-Santos, ao Atlântico. Tem um significado muito especial para mim, porque grande parte da minha família paterna tem origem nas margens desse rio. Tapera do Paraguaçu [onde a ação se passa] é um lugar imaginário, mas foi criado a partir desse lugar onde nasceram meus bisavós e meus avós. Meu pai nasceu na cidade, mas foi criado pelos avós até aos 16 anos nessa localidade. Muita dessa memória familiar — dessa memória ancestral — que envolve o Rio Paraguaçu faz parte da minha vida e da minha história. Nesse lugar, o rio, porque está muito próximo da Baía-de-Todos os Santos, aumenta e diminui o seu caudal de acordo com a maré. Acho que é uma metáfora perfeita para pensar a história que é contada aqui, mas também a história brasileira. Esse rio representa o vai e vem inconstante que nos tem levado por caminhos que não sabemos onde vão desaguar.

"Era uma coisa que escutava muito quando era criança, que nós não somos infalíveis, que somos humanos. Acho que as pessoas perderam a dimensão de nossa própria humanidade e o fogo está aí para nos lembrar que nada é absolutamente bom ou mau."
Itamar Vieira Júnior, escritor

E o fogo? O que é que representa?
É também uma história que caminha pelo sentido metafórico. O fogo mudou a história humana. A humanidade deu um salto quando conseguiu salvar o fogo, dominar o fogo. Passámos a cozinhar os nossos alimentos, a podermo-nos aquecer. Foi uma grande revolução, mas o fogo é também um elemento ambíguo. Pode significar destruição, mas pode também significar vida. É dessa maneira que as personagens dessa história conhecem o fogo. O fascínio de Luzia pode ser lido de forma positiva, mas esse fogo que a fascina é também o que a leva a ser hostilizada pela comunidade. O fogo guarda essa ambiguidade de atravessar corpos, existências, e de ser uma metáfora daquilo que carregamos de mais precioso em nós. Não é por acaso que nós, que falamos a língua portuguesa, usamos o fogo como metáfora para o desejo humano. Podemos nos referir ao desejo e também ao ímpeto da vida e da criação falando sobre o fogo. Todos temos uma chama, que é um dos muitos nomes para o fogo. Metaforicamente, precisamos conhecer o fogo para conseguir viver com ele, para conseguir tirar dele aquilo que pode ser bom e para lidar com aquilo que não é tão bom. Nesse sentido, o elemento fogo reflete um pouco o espírito humano. Nós somos isto. O cristianismo nos dividiu com o binarismo do bem e do mal, mas o fogo, esse elemento ancestral, que faz parte de muitas práticas religiosas, nos diz que o bom e o mal convivem — estão juntos — e que precisamos aprender a olhar, a observar o mundo de uma maneira menos binária, encontrando nossa própria humanidade. Em tempos de redes sociais e de extremos, ou você é bom ou é mau, o que tem inclusive levado às crises da democracia pelo mundo. Talvez seja interessante lembrar que errar ainda é humano. Era uma coisa que escutava muito quando era criança, que nós não somos infalíveis, que somos humanos. Acho que as pessoas perderam a dimensão de nossa própria humanidade e o fogo está aí para nos lembrar que nada é absolutamente bom ou mau.

“Salvar o fogo” significa também salvar o fogo anterior que arde em cada um de nós?
Com certeza. O fogo é objeto de fascínio para Luzia e também o motivo de sua desgraça, de tudo o que acontece na sua vida. Pouco a pouco, ela, tal como os povos originários ou como as civilizações anteriores, se pensarmos no contexto da Europa, vai aprendendo a lidar com aquilo. “Salvar o fogo” é de facto encontrar uma liberdade que lhe tinha sido usurpada  em tempos diferentes. “Salvar o fogo” é essa metáfora de que, salvando o que há de mais precioso em nós, estamos salvando a nossa própria vida.

Ofereça este artigo a um amigo

Enquanto assinante, tem para partilhar este mês.

A enviar artigo...

Artigo oferecido com sucesso

Ainda tem para partilhar este mês.

O seu amigo vai receber, nos próximos minutos, um e-mail com uma ligação para ler este artigo gratuitamente.

Ofereça até artigos por mês ao ser assinante do Observador

Partilhe os seus artigos preferidos com os seus amigos.
Quem recebe só precisa de iniciar a sessão na conta Observador e poderá ler o artigo, mesmo que não seja assinante.

Este artigo foi-lhe oferecido pelo nosso assinante . Assine o Observador hoje, e tenha acesso ilimitado a todo o nosso conteúdo. Veja aqui as suas opções.

Atingiu o limite de artigos que pode oferecer

Já ofereceu artigos este mês.
A partir de 1 de poderá oferecer mais artigos aos seus amigos.

Aconteceu um erro

Por favor tente mais tarde.

Atenção

Para ler este artigo grátis, registe-se gratuitamente no Observador com o mesmo email com o qual recebeu esta oferta.

Caso já tenha uma conta, faça login aqui.