A ideia sempre esteve na cabeça dos partidos à esquerda do Governo — PCP e Bloco de Esquerda apresentaram propostas para baixar o IVA na eletricidade e regressar aos 6% pré-troika — mas ganhou força nas últimas semanas com o BE a anunciar que a descida dos impostos na energia é uma das prioridades a negociar com o Governo para o próximo Orçamento do Estado. A descida dos impostos sobre a eletricidade foi também lançada na praça pública por um protagonista menos provável.
No momento em que o Parlamento investiga as rendas excessivas no setor da eletricidade, o ex-ministro da Economia Manuel Pinho deixou a proposta aos deputados. Se os preços da eletricidade em Portugal estão entre os mais altos da União Europeia, então por que não baixar os impostos? Descrevendo a fatura elétrica como uma “vaca leiteira”, Manuel Pinho propôs retirar a contribuição audiovisual da fatura da luz e baixar o IVA, em vez de cortar nas ditas rendas da EDP. Uma proposta que remete para o Estado a fatura da descida do preço da eletricidade.
“A taxa média do IVA na eletricidade é de 18% na Zona Euro. Em Portugal o IVA da eletricidade é a mesma das joias e dos casacos de peles, que é de 23%. Alguém pode concordar com isto?”
Ainda que esta sugestão possa parecer uma provocação vinda de um político a quem apontam a tomada de decisões favoráveis à EDP, em prejuízo dos preços e dos consumidores da eletricidade, a descida do IVA na eletricidade entrou na agenda política e está a marcar os bastidores da preparação do próximo Orçamento do Estado. O Governo, sabe o Observador, está já a fazer as contas ao impacto que esta descida teria na receita. A medida pode mesmo vir a substituir a baixa do imposto petrolífero, que é defendida pelos partidos à direita, e que só não aconteceu já este ano porque foi chumbada à última hora pelos parceiros à esquerda do Governo.
Do ponto de vista orçamental, as duas medidas podem ter um impacto comparável, algumas centenas de milhões de euros, mas apenas haverá margem para avançar com uma. E o regresso à taxa reduzida na eletricidade seria mais uma reversão das políticas da troika e do Governo PSD/CDS, sendo por isso uma opção politicamente preferível à reversão de um aumento de impostos decidido pelo atual Executivo. Mas tem um senão. Portugal precisa da autorização da Comissão Europeia para voltar a cobrar o IVA mínimo na eletricidade e gás natural. E Bruxelas é apontado como a principal responsável pelo agravamento do imposto em 2011.
Por que passou a eletricidade para a taxa máxima do IVA?
Meses depois de a troika chegar, em 2011, o aumento do IVA sobre o preço da eletricidade e do gás natural foi uma das primeiras medidas do pacote de austeridade sentida pelas famílias portuguesas.
Com a passagem do IVA da taxa reduzida de 6% para 23% o preço final da eletricidade sofreu um aumento da ordem dos 16%, naquele que terá sido o maior agravamento nos preços deste bem essencial desde, pelo menos, meados dos anos de 1990, quando se iniciou o processo de liberalização deste mercado.
O resultado orçamental deste agravamento fiscal nunca foi totalmente identificado em documentos oficiais. O então ministro das Finanças, Vítor Gaspar, antecipou uma receita da ordem dos 100 milhões de euros quando anunciou a medida ainda para esse ano, o que elevaria a receita anual para um valor próximo dos 400 milhões de euros. Mas este número nunca foi confirmado e é provável que tenha ficado abaixo, já que o consumo de eletricidade caiu com a recessão.
O memorando da troika original previa, de facto, o aumento do IVA na eletricidade, mas não especificava a taxa. Ainda que esta formulação apontasse para a passagem deste produto para a taxa normal, já que a taxa intermédia mais reduzida é uma exceção que exige negociações em Bruxelas, vários socialistas envolvidos na negociação das condições do resgate a Portugal admitiam que teria sido possível negociar um aumento mais suave no IVA, passando de 6% para 13%. Obrigatória, à luz das regras europeias, era a introdução de um imposto específico sobre a eletricidade e gás natural, que no entanto, teve um efeito muito reduzido nos preços finais.
Não há no entanto qualquer indicação de que o Governo tivesse tentado moderar este agravamento. Aliás, a subida do IVA só estava prevista para 2012, acabou por ser antecipada para novembro de 2011, como parte da resposta a uma acentuada derrapagem no défice das contas públicas face às metas previstas.
O ex-ministro das Finanças sublinhou ainda que a subida do IVA permitiria alinhar Portugal com a prática verificada na maioria dos países da União Europeia, que aplica a taxa normal na eletricidade, e o Governo PSD/CDS deixou a passar a tese que haveria uma imposição da Comissão Europeia, um dos membros da troika, no sentido de elevar a taxa do IVA na energia.
E para moderar o impacto deste agravamento no preço da eletricidade, o Executivo lançou um pacote de apoio financiado pelo Orçamento de Estado aos consumidores de eletricidade com menores rendimentos, ampliando os descontos na tarifa social. No entanto, este compromisso político teve poucos efeitos práticos, já que a tarifa social, que tinha sido desenhada para chegar a mais de 600 mil famílias, chegava apenas a 10% deste universo e só no final da legislatura é que o Governo PSD/CDS tomou medidas para ampliar o número de beneficiários. As metas iniciais só se tornaram realidade quando o atual Governo aprovou, com o apoio dos partidos da esquerda, a atribuição automática da tarifa social a todos os agregados que cumpriam as condições de acesso.
Esquerda defende regresso aos 6%, mas não foi condição para viabilizar Governo
O regresso do IVA na eletricidade aos 6% estava no programa eleitoral do Bloco de Esquerda e do PCP, mas a medida ficou de fora do pacote de negociação que viabilizou o Governo socialista, ao contrário da transferência da contribuição audiovisual da tarifa da eletricidade para os serviços de telecomunicações, que nunca foi concretizada.
Não obstante, Bloco e PCP têm proposto essa reversão fiscal, até agora sem sucesso. Mas isso pode mudar para o ano de 2019. Depois de recuar no apoio à iniciativa do CDS que permitia a redução do imposto petrolífero já este ano, a coordenadora do Bloco de Esquerda, Catarina Martins, tem insistido no tema.
E esta semana, o Bloco assumiu que o regresso ao IVA mínimo na eletricidade será um tema central nas discussões para viabilizar o próximo Orçamento do Estado. Números já tornados públicos apontam para um impacto na receita fiscal entre os 120 milhões de euros, número avançado pelo economista Marvão Pereira, e os 200 milhões de euros. No entanto, estes valores ainda não são considerados credíveis pelo próprio Ministério das Finanças que, sabe o Observador, está a fazer contas aos vários cenários possíveis para uma descida da taxas do IVA para o próximo ano. E nesses cenários cabe o regresso aos 6%, mas também a passagem para a taxa intermédia, ou até soluções mais imaginativas como a apresentada esta semana pelo líder parlamentar do Bloco de Esquerda.
Cientes do impacto significativo na perda de receita, o deputado Pedro Filipe Soares apontou para uma solução intermédia que passaria por modular o IVA em função do consumo. Ou seja, aplicar a taxa mínima de 6% até a um nível de consumo que fosse considerado de primeira necessidade e cobrar a taxa normal para a eletricidade que ultrapassasse esse patamar. Não há informação de como esta solução poderia ser implementada.
O dirigente do Bloco, que o Observador não conseguiu contactar, fez a comparação com o escalonamento que existe no preço da água. Mas neste caso, a diferenciação não é feita pela via fiscal — o IVA cobrado no fornecimento de água é a taxa mínima de 6%, com a exceção de algumas concessões — mas sim por via do próprio tarifário. Em linha com as recomendações do regulador, a muitos tarifários têm quatro escalões, um mais baixo que cobre um abastecimento considerado mínimo e onde existe alguma componente de política social, ou seja, o preço não paga os custos , dois escalões intermédios, e um último escalão que penaliza maiores consumos.
Diretiva europeia permite taxas reduzidas, mas Bruxelas tem de autorizar
Mas uma coisa é certa. Qualquer mexida no IVA da eletricidade tem de ser negociada com a Comissão Europeia, admitiu ao Observador uma fonte do Governo. A necessidade de autorização em Bruxelas foi confirmada pelo Observador junto de fontes europeias que remetem para a obrigação de consultar previamente o comité do IVA.
Do ponto vista do quadro legal europeu, não existe qualquer impedimento para Portugal voltar a aplicar a taxa reduzida de IVA à eletricidade e ao gás natural, até porque já a teve no passado, mas esta iniciativa não depende apenas da vontade de um Estado, explicou ao Observador o fiscalista Rogério Ferreira Fernandes.
“A taxa reduzida apenas pode ser aplicada a determinadas entregas de bens e a determinadas prestações de serviços, as quais são especificamente elencadas no seu Anexo III, onde não se inclui o fornecimento de serviços de eletricidade. Porém, a mesma Directiva permite que um Estado-Membro opte por aplicar a taxa reduzida ao fornecimento de eletricidade, desde que tal aplicação não resulte numa distorção de concorrência”, salientou o fiscalista.
“Nestes casos, para assegurar a aplicação da taxa reduzida, o Estado-Membro tem, contudo, de informar, em momento prévio, a Comissão Europeia, que dispõe de um prazo de três meses para se pronunciar sobre essa eventual existência de distorções de concorrência, pelo que só após esta consulta prévia (ao Comité de IVA) esta opção será possível.”
Mas aquilo que em teoria é possível pode na prática esbarrar em várias objeções. Para a Comissão Europeia, o sistema fiscal português, no que toca ao IVA, é já menos eficiente que a média europeia, considerando o gap entre taxas aplicáveis, pelo que um maior recurso a taxas reduzidas iria agravar o problema. Por outro lado, Bruxelas não verá com bons olhos o uso de taxas reduzidas do IVA para promover políticas sociais, dando preferência a apoios diretos aos consumidores vulneráveis. Este instrumento aliás já existe em Portugal — tarifa social — e chega a um universo vasto de famílias (800 mil na eletricidade mais de cem mil no gás natural) — tendo ainda a vantagem, para o Estado, de ser financiada pelas elétricas.
Mais fácil voltar aos 6% do que baixar para 13%
E no fim da linha o argumento orçamental pode ser o que pesa mais. Do ponto de vista de Bruxelas, no contexto do acompanhamento pós-programa, países como Portugal que ainda tem uma margem orçamental limitada, o impacto em termos de perda de receita do regresso ao IVA reduzido pode ser substancial, pressionando no longo prazo a sustentabilidade das contas públicas. Por outro lado, Portugal pode argumentar que outros países que passaram por programas de resgate, como a Irlanda e a Grécia, aplicam uma taxa reduzida à eletricidade, neste caso de 13%.
Apesar do impacto orçamental, é mais fácil recuar à taxa de 6% do que ir para o IVA intermédia, adianta Rogério Fernandes Ferreira. O fiscalista realça o carácter transitório das chamadas taxas intermédias, autorizadas pela Comissão Europeia a determinados bens e serviços aos quais não podiam ser aplicadas as taxas mínimas. Por essa razão, diz, “será mais fácil regressar à taxa mínima que estava em vigor até 2011, do que passar para a taxa intermédia”.
Questionado sobre proposta do Bloco de Esquerda de modular a taxa em função da dimensão do consumo de eletricidade, o especialista não vê impedimentos legais e aponta o exemplo do Reino Unido, que aplica uma taxa reduzida, de 5% a certos consumidores, sobretudo domésticos, distinguindo o consumo empresarial. Também em França, existe uma taxa de 5,5% que se aplica aos fornecimentos doméstico quando mais de metade da energia consumida tem origem em fontes renováveis.
Em qualquer caso, assinala ainda Rogério Fernandes Ferreira, “a determinação da aplicação de duas taxas distintas ao mesmo serviço, a ser feita, deverá encontrar-se o mais circunscrita e objetivamente determinada que for possível, por forma a evitar dificuldades quanto à respetiva aplicação”. Fontes europeias assinalam, por seu turno, que um número mais elevado de taxas torna o sistema mais complexo, aumenta custos e administrativos e potencia a fraude.
Rogério Fernandes Ferreira, que foi secretário de Estado dos Assuntos Fiscais entre 2001 e 2002, questiona ainda a “multiplicação de reversões e das situações de exceção a que se pretende aplicar as taxas reduzidas e intermédia, a começar pelas fraldas, a continuar pelos restaurantes e, agora, pela eletricidade. (…) É uma espiral de reversões que, até do ponto de vista político, é difícil de justificar”.
Do seu ponto de vista, seria preferível “reavaliar as variadíssimas taxas que incidem já, direita ou diretamente, sobre a eletricidade e que encarecem o consumo, que atingem valores bem significativos, como é o caso da CESE (contribuição extraordinária sobre o setor da eletricidade), e sobre o valor das quais o IVA também incide depois, como é o caso da taxa exploração DGEC, do imposto especial consumo eletricidade ou da contribuição audiovisual, sendo que muito pouco têm que ver com o consumo da energia elétrica”.
Baixar as rendas ou os impostos? Ou paga a EDP ou paga o Estado
De acordo com simulações feitas por fontes do setor elétrico, a descida do IVA na eletricidade para a taxa reduzida permitiria baixar a fatura mensal da eletricidade em cerca de 13%, uma percentagem que pode variar entre os cinco euros, para uma fatura média de 40,90 euros, e os 13 euros mensais para uma fatura mensal de 100 euros, correspondente a uma família de quatro membros com uma potência contratada de 6,9 kVA.
Em termos anuais, o efeito destas duas simulações aponta para poupanças entre os 60 e os mais de 150 euros por ano, valores muito significativos que cumprem a expetativa de redução da fatura elétrica portuguesa. E se, como defende Manuel Pinho, “o que interessa ao consumidor é o que paga na fatura” e não o preço grossista, a descida do IVA também permitiria aliviar alguma da pressão sobre a EDP, que tem estado debaixo de fogo por causa das ditas rendas excessivas. A elétrica foi alvo de várias medidas regulatórias e políticas que já baixaram as suas receitas e é certo que há mais decisões políticas desfavoráveis a caminho, numa guerra que já chegou aos tribunais.
Decisões políticas e de regulação custaram 144 milhões à EDP no primeiro semestre
Mas se há razão do lado daqueles que sublinham que a eletricidade portuguesa é mais cara também porque paga das taxas de IVA mais altas da União Europeia, também há outros fatores a considerar. Os portugueses pagam mais IVA porque a taxa normal portuguesa é das mais altas da Europa, fruto de vários aumentos de impostos aprovados ao longo da vida deste imposto — que começou por ser de 16% — em nome do controlo do défice. Mas isso vale para a eletricidade e para todos os outros produtos e serviços.
Por outro lado, o peso dos impostos na eletricidade — e estamos a falar de impostos cobrados pelo Estado e não custos políticos do sistema elétrico, onde estão as ditas rendas “excessivas” da eletricidade — está muito longe do impacto da fiscalidade nos combustíveis, que representa mais de 60% no preço final da gasolina. E no caso da eletricidade, o maior problema da fatura está mesmo nos chamados custos políticos ou de interesse económico geral que representam mais de 40% do preço pago pelas famílias, ainda antes de chegar o IVA.
E ainda que, para o consumidor final, o caminho para baixar os preços seja indiferente, está longe de o ser para quem está do outro lado para pagar a fatura. E neste caso ou é a EDP ou é o Estado, que é o mesmo que dizer os contribuintes.