A relação com António Costa está “crispada” e esfriou, mas Jerónimo de Sousa acredita que ainda há caminho a fazer nos acordos à esquerda. Em entrevista ao Observador, esta segunda-feira, o secretário-geral do PCP deixa pistas para o que vai acontecer depois de 30 de janeiro, abrindo espaço a entendimentos com o PS: para já, admite que é quase “impossível” não alinhar numa moção de rejeição para travar um Governo de Rui Rio e não exclui mesmo a hipótese de voltar a alinhar em acordos escritos.
Para já, o PCP só trabalha com o cenário de António Costa voltar a conseguir formar Governo — com Pedro Nuno Santos, o homem mais apontado para suceder a Costa caso o PS saia derrotado, Jerónimo faz questão de garantir que não tem qualquer relação especial (“Dou a minha palavra”). E estabelece condições para voltar a negociar — garantindo que desta vez o PS “cedeu mais ao Presidente da República” do que ao PCP.
Nesta entrevista, Jerónimo ri-se quando ouve falar da promessa do PS quanto ao salário mínimo (900 euros em 2026), mas admite que quando o valor mínimo se aproxima tanto do médio isso “coloca um problema”. Quanto à tão falada sucessão na liderança do partido, dá uma garantia: “Haja saúde e vamos até ao fim”. E ainda deixa uma porta aberta a conversas com o Chega a nível autárquico: “Nós não particularizamos”.
[Veja o essencial da entrevista a Jerónimo de Sousa:]
“É muito difícil, para não dizer impossível, não travarmos programa de Rio”
António Costa disse num debate que a geringonça não lhe dava confiança. E quanto a si, António Costa dá-lhe confiança?
Isto não é uma questão de confiança, é uma questão de coerência política. António Costa disse isso mas antes era o mesmo que valorizava o papel, seriedade e frontalidade que o PCP estabelecia no diálogo com o governo.
Mas as relações acabam, às vezes, na política como na vida.
O PS chegou a um momento em que não estava disponível para continuar a aprofundar um caminho de avanços e começou a falar na maioria absoluta. Inevitavelmente houve um bloqueio, deixou de procurar a aproximação em muitas matérias. Em vez de preferir soluções, queria eleições.
Costa disse que o Governo não podia ficar dependente de jogadas políticas de outros partidos. Respondeu que “vindo de quem vem mais vale ter alguma cautela em relação a estas afirmações”. O que quer dizer com este vindo de quem vem?
Em muitas matérias o PS fazia que andava e não andava, arrastava os pés. A concretização de muitas das propostas consensualizadas depois ficou pela metade ou continuou congelada. Por isso estranho essa reação, tendo em conta a ação governativa.
As jogadas políticas são do PS, é isso?
Tenho dúvidas em relação à caracterização, mas o que é um facto incontornável é que em muitas matérias consensualizadas o PS deu o seu acordo e não concretizou.
Mesmo assim continua a ter mais confiança política no PS que no Bloco?
São coisas diferentes. A relação com o BE é resultante do facto de estarmos na AR, de muitas vezes convergirmos. Com o PS é diferente porque o Governo era do PS. Não são comparáveis. Mesmo nessa nova fase da vida política nacional procurámos que o nosso relacionamento fosse sempre bilateral.
Bilateral só com o PS, com o Bloco não.
Com o Bloco era um relacionamento normal no plano institucional.
Se o PSD ficar em primeiro lugar mas houver uma maioria de esquerda, quem deve governar? PS ou PSD?
As eleições são para eleger 230 deputados, não são para eleger primeiro-ministro. É uma mistificação que tem andado por aí e importa clarificar. Após a votação, será em conformidade com a arrumação desses 230 que determinará a solução governativa. Hoje não podemos dizer que será A, B ou C.
Seria compreensível para o eleitorado do PCP haver uma maioria de esquerda e o PCP permitir que fosse Rui Rio ou o PSD a liderar o governo?
Temos uma visão independente, consideramos que é possível a convergência das forças políticas democráticas. Não temos compromissos com ninguém.
Não tem uma obrigação de bloquear um governo de direita à partida?
Podemos, em conformidade com a solução governativa, com o próprio programa decidir em conformidade. Não estou a ver nenhum golpe de asa em que o PSD apareça como força dianteira da esquerda ou assuma um compromisso com um programa que tenha esse sentido progressista.
Isso significaria que o PCP apresentaria uma moção de rejeição ao programa do PSD?
Não podemos fazer essa afirmação de que votaremos sempre contra, depende da proposta que for colocada. Sendo sincero, por aquilo que está indiciado e foi anunciado por Rui Rio, é muito difícil, tendo até a dizer impossível, que rejeitássemos uma moção de censura por parte da Assembleia da República.
Acordo escrito. “Tudo o que for positivo, contem com o PCP”
Em 2015 o PCP aceitou um acordo escrito porque o então Presidente da República, Cavaco Silva, assim o exigiu. Se em 2022 o atual PR também exigisse um acordo escrito para garantir essa estabilidade aceitariam?
Nunca entendi aquele desespero por parte do Presidente da República pelo papel, que não explicava. Era uma questão de confiar na palavra dada por parte de cada um. Fez-se um papel que tem um valor relativo, porque era a ação pratica que determinava as intervenções. Mais que um papel, pensamos se é possível a convergência das forças democráticas para dar soluções ao país.
É um detalhe? Se for necessário para avançar com essas políticas não há nada contra assinar esse papel?
Não temos uma visão maniqueísta. Tudo o que for positivo para os trabalhadores, povo e país, contem com o PCP; o que for negativo, venha de onde vier, naturalmente terá a posição contra do PCP.
Apesar de dizer que com avanços podem contar com a CDU, sempre que fala dos tempos da geringonça insiste que não se arrepende, mas que não é repetível naqueles moldes. Não pode haver outra circunstância em que se justifique?
O PS definiu os seus próprios limites. Na parte final da discussão do OE e nos encontros que tivemos há um momento em que verificamos claramente que o PS não queria avançar mais.
Isso nos últimos dias da negociação.
Colocámos três questões fundamentais: a valorização dos salários, o reforço do SNS e a revogação daquela lei abstrusa de caducidade dos contratos coletivos que é um elemento fundamental para se discutirem os salários médios.
Mas o PS nos últimos dias chegou a falar da suspensão dessa norma. Tal como fez cedências nas creches, nas pensões…
Nós também tínhamos um valor para o salário mínimo nacional e fizemos uma alteração à nossa própria proposta. Quando digo que houve uma mudança é porque a parte final do processo de discussão e votação do Orçamento do Estado demonstrava um PS já crispado, com o bloqueamento de toda e qualquer perspetiva de evolução em relação particularmente às três matérias que referi.
“Costa cedeu mais ao Presidente do que ao PCP”
Sentiu essa crispação de António Costa nos últimos encontros?
Sim. Particularmente até mesmo no debate que tivemos: verificou-se uma crispação que veio alterar aquilo que o próprio António Costa afirmava da seriedade, frontalidade do PCP, da sua contribuição para propostas positivas. De repente verificámos aquela crispação.
Até em termos pessoais?
Continuamos a cumprimentar-nos, mas notou-se essa crispação tanto no momento da chegada como da partida. Com lisura, mas com sentido de fechamento e de um determinismo em relação à convocação de eleições.
Uma frieza maior nessa relação interpessoal?
António Costa cedeu mais ao Presidente da República atual que ao PCP.
O Presidente foi o primeiro a falar de eleições antecipadas. Qual é que é o objetivo eleitoral do PCP para estas legislativas? Ficar atrás do Chega é um critério?
Não, isso não é uma referência fundamental. O nosso objetivo é reforçar o número de votos e de mandatos. Este é o objetivo. Não fazemos depois um quadro de concorrência de terceiros, quartos, quintos ou sextos. Nunca vamos fazer concorrência com outros, é com o resultado que vamos ter que vamos trabalhar.
Em entrevista à RTP, foi questionado sobre se a geringonça levou a que houvesse a descontentes no PCP que deixaram de votar no partido. Falou numa explicação sociológica para a perda de eleitorado. Essa perda é inevitável?
Não é automático. Vi alguns comentadores que de repente anunciaram o fim do PCP, que o seu eleitorado estava a fugir… Eram comentários manifestamente exagerados. A CDU está no terreno, num quadro muito difícil que resulta mais da situação pandémica…
Isso é um problema para todos.
Mas como sabe, uma característica do PCP e da CDU são as campanhas de contacto direto, de iniciativas, que marcam alguma diferença em relação a outras forças. É evidente que nas autárquicas se verificou esse recuo, mas olhe-se para o país e a CDU continua a ser uma grande força política autárquica, tendo em conta a eleição de dois mil autarcas, de grandes câmaras, Setúbal…
Mas também perdeu câmaras importantes, Loures, não recuperou Almada…
Pois não. Mas nem vou falar das que ganhámos.
“Garanto, dou a minha palavra: Não tenho [relação especial] com Pedro Nuno Santos”
Durante os primeiros quatro anos da geringonça, as negociações entre o governo e o PCP, do lado do executivo, foram coordenadas por Pedro Nuno Santos. As coisas correram bem? Sentiu que havia confiança?
O Pedro Nuno Santos nunca esteve como o responsável pelo contacto, designadamente com o PCP. Eu sempre contactei com António Costa.
Portanto não criou uma relação pessoal ou política com ele nesses anos. O contacto era Costa.
Sim, o contacto direto era António Costa. Inicialmente havia uma delegação da direção do PS, mas sempre com a presença do então primeiro-ministro.
No dia em que o Orçamento foi chumbado, Pedro Nuno Santos fez questão de o ir cumprimentar no hemiciclo. Mas não há nenhuma relação especial entre os dois.
Não. Garanto, dou a minha palavra que não. Existe trato urbano, relacionamento institucional… Não mais do que isso.
Mas ele tem sido bom ministro?
Tem uma dificuldade objetiva, que é a questão do investimento. Tendo em conta o ministério que ocupa, no plano das infraestruturas, no plano ferroviário, não encontra no orçamento do Governo a resposta às necessidades do país em relação ao défice das infraestruturas, de pôr Portugal a produzir… Por muita vontade que tenha, se o seu Governo não reconhecer em sede de Orçamento do Estado as verbas necessárias para esse desenvolvimento económico, não passará de boas intenções.
Não provou ainda ser um bom ministro porque está refém da falta de investimento.
Sim, creio que é uma realidade que ele próprio reconhecerá.
António Costa já disse que se ficar em segundo lugar, sai. Sabemos que o PCP é institucionalista e que negoceia com partidos e não com pessoas. Mas Pedro Nuno Santos é um político com quem o PCP poderia negociar confortavelmente?
Não fazemos esse cálculo e acho que era pouco ético, no plano das relações institucionais…
Mas à partida não tem nada que fosse impeditivo.
Não. É uma escolha que o PS tem de fazer, naturalmente, sem nenhuma particularidade. A responsabilidade dos ministérios é do PS, é neste quadro que discutiremos com quem tiver responsabilidades num Governo PS.
Acordo pós-eleições. “A vida é dinâmica. O que hoje é verdade, amanhã é mentira”
O PCP tem-se desdobrado em publicações nas redes sociais e até tem uma secção específica no site da candidatura em que tenta desfazer aquilo que diz serem “mitos e mentiras” sobre o Orçamento. O PCP está nervoso com estas eleições?
Para já, num plano pessoal, não sinto nada essa pressão e a necessidade de justificação. Pelo contrário: o que temos feito é a divulgação e valorização do que foi alcançado nos últimos anos. Isso é um elemento fundamental desta perspetiva de avanços que se verificaram desde 2015 — o momento em que António Costa queria entregar a chave ao doutor Passos Coelho. Verificámos um facto que ninguém tinha visto: o facto de a direita ter perdido a maioria e não ter condições para continuar a governar. Isso despertou o próprio PS, encetou-se um conjunto de reuniões e diálogo insistente, e demonstrou-se que o PCP tinha razão: a direita não tinha condições para continuar a governar.
O PCP recorda muitas vezes que abriu essa porta e continua a dizer que está disponível para soluções construtivas. Até já disse que está “empenhado em ser construtor de convergência”. Mas que motivos é que um eleitor de esquerda, que queira ter a garantia de que não há Governo de direita depois de 30 de janeiro, tem para confiar na palavra do PCP, que nem sequer deixou o Orçamento passar a uma segunda fase das negociações?
A contribuição maior que demos foi ter conseguido os manuais escolares gratuitos, o passe social mais barato, a questão das creches, a valorização do salário mínimo — mesmo que insuficiente –, a devolução aos trabalhadores e reposição de direitos…
Mas isso foi no passado enquanto tinham esse caminho para fazer juntos.
Sim, mas as pessoas valorizam isto. Quando viram o passe, famílias que pagavam mais de cem euros e passam a pagar quarenta ou trinta… só quem tem a barriga cheia é que pode considerar isto uns trocos. Teve efeitos concretos na vida das pessoas.
Mas com o chumbo do Orçamento não tem medo de ter desiludido eleitores, de haver eleitores que não têm a certeza de se podem confiar no PCP para voltar a uma solução construtiva, ou que temam que queira ser um partido de protesto?
Nesse processo de avanço e conquista de direitos, sabíamos das contradições do PS, do seu amarramento em relação a questões da União Europeia, ao Euro, à política de privatizações… Mas o problema de fundo é que nessa discussão do orçamento essas três questões que referimos eram fundamentais no desenvolvimento dessa caminhada pelos direitos. O que vimos foi um PS irredutível. E depois disse: bom, deixassem ir até à votação na especialidade… Acho que isto era enganar as pessoas.
E agora acha que há mais disponibilidade a partir de 30 de janeiro?
A vida é dinâmica. O que é verdade hoje às vezes altera-se para uma mentira, ou uma mentira pode ter evolução. Quando falamos em convergência, a nossa preocupação é que temos uma situação dramática no país, os défices estruturais todos…
Pedia-lhe que fosse concreto nisso. O que é que nos impede de voltar ao mesmo impasse? De que é que o PCP precisa para voltar a negociar e viabilizar um Orçamento? Falar de “medidas positivas” é vago.
O PCP vai continuar com capacidade de iniciativa, apresentando propostas…
Mas terá prioridades.
Essas que referi, de valorizar o trabalho e os trabalhadores, valorizar salários, reforçar e salvar o SNS, revogar normas gravosas da legislação laboral: está aqui uma base fundamental.
Vamos então falar de salários. O PCP defende no seu programa “o aumento do Salário Mínimo para 850 euros” em 2023. Qual é o vosso valor para o final da próxima legislatura, em 2026?
Esta possibilidade de encetar o caminho já dos 800 euros… está aqui colocado um problema, que é a evolução do salário mínimo nacional está a criar uma situação em que os salários médios começam a ficar cada vez mais próximos do salário mínimo. Isto tem de ter resposta com a ação reivindicativa dos trabalhadores, com a negociação dessa contratação… Isso leva-nos a uma conclusão óbvia: ou se revogam as normas da caducidade [da contratação coletiva] ou há aqui um bloqueio.
Em sua opinião, não há um problema de produtividade em Portugal, e o salário médio não aumenta apenas porque os empresários não querem aumentar salários.
Vamos falar claro: olhemos para os números nesta fase da pandemia. Mesmo em pandemia os grupos económicos estiveram seis mil milhões de euros de lucro, de dividendos. E depois discute-se ao cêntimo a evolução dos salários, designadamente não só do salário mínimo, como do salário médio. Isto não pode ser. Está na natureza do capital travar os salários mesmo quando é possível essa evolução positiva.
Não há um problema de produtividade em Portugal? É só um problema de ganância?
A prova de que os trabalhadores produziram bem são estes resultados inquestionáveis, não sou eu que estou aqui a afirmar e a inventar.
Mas há estudos que mostram que Portugal tem um problema de produtividade quando é comparado com as maiores economias europeias.
Enquanto se pensar que é através de uma política de baixos salários que o país se desenvolve, estamos todos enganados. Pelo menos sejamos coerentes, assumamos que isto não vai lá com salários baixos.
Ninguém defende isso.
Não defendem, mas praticam. Este é que é o problema. Estamos a discutir, nesta matéria, um salário mínimo de 705 euros, mas simultaneamente há os custos da habitação, a casa que não vem, o vínculo precário que não acaba. Mantêm-se todos os problemas que levam a este facto: em muitos pontos do nosso país trabalha-se empobrecendo e isto é uma violência. Como é possível trabalhar e empobrecer?
Não tem um valor fixo para o salário mínimo em 2026? Vão até aos 850 em 2023. Porque o PS dá um: são os 900.
(Risos)
Não acredita?
Estou um bocado escaldado ao longo destes anos todos. Quando se começa a prometer muito lá para a tarde de São nunca, tenho sempre muitas dúvidas porque é a forma de fugir ao problema, empurrar com a barriga. Dizem: ‘Daqui a três anos conversamos, que está tudo aqui no reino das maravilhas’. Portanto, sim, pode ser entendido como suspeição, mas é o que nos diz a experiência de muitos anos, de muitas promessas distanciadas no tempo que levavam depois à sua não concretização. E eu insisto nesta ideia: Portugal tem um problema de salários e que devem ser valorizados, tendo em conta que isso depois responde a tudo. Um salário decente, não estou a falar de um salário gigante, mas de um salário que permite a um casal de jovens comprar casa ou alugar uma casa com a garantia que pode ter filhos.
Qual é esse valor de salário decente?
Um salário digno, naturalmente teria respostas na proposta do PCP.
850 euros seria um salário digno?
Era um passo adiante.
Na função pública, onde não há patrões, os salários já estão bem?
Não. Tem razão, mas nós afirmamos isso. E, aliás, no quadro do Orçamento.
Isso não mostra que o nosso problema é da nossa economia e não dos patrões do privado, como diz?
Porque o Estado não assume as suas responsabilidades para com aqueles que lá trabalham.
Então o Estado também está a visar o lucro e a não pagar o que poderia pagar aos trabalhadores?
O que eu vejo é que os trabalhadores da Administração Pública de há 10 anos a esta parte praticamente não tiveram qualquer aumento salarial, isso é que é um facto. E quando eu referia esta aproximação às arrecuas dos salários médios, tendo em conta esse congelamento e a não existência de progressão na carreira, que levam hoje estarmos a discutir a proximidade desse salário médio ao salário mínimo.
“Enxoval que não vá com a noiva, tarde ou nunca aparece”
Prometem a redução do IVA da eletricidade para 6%. Há dois anos, o PSD quis forçar o governo a tomar essa medida, tendo como única condição entrar em vigor uns meses mais tarde — mas o PCP não quis. Não era preferível ter esperado uns meses para ter o IVA a 6% em vez de terem passado agora dois anos e estarmos na mesma?
Como diz o nosso povo, enxoval que não vá com a noiva, tarde ou nunca aparece. E temos essa experiência com o Partido Socialista que muitas vezes promete e depois, olhe…
Aqui era o PSD, até. Ia ser aprovado na Assembleia, ia ficar escrito.
Isto não é mera desconfiança. O palavreado que se consegue, o normativo que traz a suspeição de tardar na sua concretização é em relação a medidas de reposição daquilo que existia antes. Não estávamos a inventar direitos novos, estávamos a falar de reposição e isso não aconteceu nessa fase.
No compromisso eleitoral deste ano, o PCP defende a reversão da privatização dos CTT e reclamam “o controlo público dos setores e empresas estratégicas que estão hoje, sobretudo, nas mãos do capital estrangeiro”. Quantas e quais empresas é que pretendem nacionalizar?
Não tenho aqui a lista à mão. Mas esse há esse exemplo dos CTT. O que aconteceu? Foram privatizados e o que aconteceu ao serviço postal? O que aconteceu a centenas de postos e estações de correio? Encerradas. A qualidade dos serviços piorou. Os salários e os direitos dos trabalhadores dos CTT sofreram retrocessos. Então, qual é a razão que justifica? Porque tratou-se de uma concessão que terminou agora. E era tempo de decidir o futuro.
Mas tem uma lista ou não?
Não tenho.
REN, EDP, é isso?
EDP, por exemplo, é um caso.
Preocupa-o capital ser controlado pelo Estado chinês?
Sinceramente. Somos um partido patriótico, que defende o interesse nacional e, seja quais forem os acionistas desta ou daquela empresa, determinamos pela importância estratégica que têm na defesa do desenvolvimento económico. E isto é dito assim com uma grande clareza, sem nenhuma hesitação, porque é isso que pensamos.
Tem de ser o Estado português a deter a EDP, não o Estado chinês, é isso?
O Estado português tem responsabilidades particulares de, mesmo à luz da Constituição da República, da existência de um setor público, forte e dinâmico que potencie o desenvolvimento económico. Que contribua, por exemplo, para o próprio desenvolvimento das micro, pequenas e médias empresas.
Perguntamos isto para perceber se, por exemplo, o Estado chinês controlar indiretamente a empresa era um descanso para o PCP face a se fosse, por exemplo, um fundo americano.
Não. Seja chinês, seja francês, seja americano. A economia nacional deve determinar a sua prioridade em relação a um setor público, dinâmico e que responda às necessidades nacionais.
No mesmo compromisso eleitoral, defendem a libertação do país da submissão ao euro e das imposições da UE. Mas mais à frente reconhecem também a importância de uma “ajustada e integral execução do PRR e dos demais fundos comunitários”. Isto quer dizer que o PCP quer o dinheiro da UE, mas sem assumir os compromissos?
Mas quais compromissos? Em relação a essas verbas, por exemplo, discordamos profundamente que o seu destino seja determinado pela União Europeia.
Mas é natural que, estando enquadrados na UE…
Eu fico profundamente indignado porque dá a impressão que a União Europeia teve um rebate de consciência e de repente agarrou numa verba significativa grátis, à borla. Isso é uma falsidade. Sabemos que a direção que apontam para essa verba ser executada, não tem nada a ver com o interesse nacional, tem a ver com os interesses naturalmente da União Europeia. Por isso mesmo é que nós não aceitamos esta visão de estar de chapéu na mão, de mão estendida. É preciso, de facto, uma afirmação soberana.
Mas aceitam o dinheiro.
Sim. Nós vamos pagá-lo, por vias diretas ou indiretas, vamos mais à frente ter de o pagar. Portanto, eu quero ver qual vai ser o argumento quando esse facto se materializar.
Está à espera de uma fatura.
Mesmo em relação à primeira parte da pergunta, em relação à política monetária, ao Euro, foram agora celebrados os 20 anos e podemos fazer um balanço em relação aos alertas do PCP. Aquela ideia peregrina de que os salários da União Europeia iam ser aplicados aqui, que ia ser o reino da abundância, lembro-me de afirmações que se aproximavam disto. Na verdade o que houve foi a panela de ferro contra a panela de barro e hoje temos a situação que temos.
Defendem “um significativo crescimento do investimento público, fixando como referência 5% do PIB ao ano.” Neste momento, o investimento público corresponde a 3,2% do PIB: 7.317 milhões. Para chegar aos 5% (11.432 milhões) precisaria de mais 4 mil milhões. Onde é que vão buscar esse dinheiro?
Desenvolvendo a nossa economia, criando melhores condições para particularmente o setor público.
Mas para desenvolver a economia, do vosso ponto de vista, é preciso um crescimento do investimento público. Mas os 4 mil milhões têm de vir antes desse crescimento da economia, como é que saem disto?
É inseparável do aumento da produção nacional, da criação da riqueza.
É um ato de fé?
Não é fé. Sou daqueles que confiam, ao contrário do que muitos afirmam, que Portugal tem saídas. Não é um país pobre, é um país empobrecido pelas políticas que têm sido realizadas durante muitos anos.
Mas é fácil escrever num papel que o investimento público vai corresponder a 5% do PIB, mas o dinheiro tem de vir de algum lado e neste momento faltam 4 mil milhões de euros. De onde vem?
De criar a tal dinâmica do aumento da produção nacional. Criar essa dinâmica. É uma proposta, um objetivo, não é chegar aqui e dizer: tomem lá, é assim e acabou. Cremos que há dinâmicas e decisões no plano do desenvolvimento económico capazes de responder a essa pergunta.
Porque o PCP tem imensas medidas de aumento de despesa do Estado, como reconhecerá no compromisso eleitoral, mas depois também tem medidas de redução da receita. O ponto é tentar perceber como é que isto se faz: como se pode prometer um enorme aumento de despesa e uma significativa diminuição da receita.
Dê-me lá um exemplo.
Diminuições nos impostos indiretos, de IVA, dizem que querem diminuir os impostos em relação às micro, mini e médias empresas. Ou medidas como os 6% de IVA na eletricidade, tudo isso são diminuições de receita.
6% para a restauração, que existia.
Está a ver, mais um.
Porque existia. Os pequenos e médios empresários sofreram com esse golpe do aumento para 23%. Sim, propomos. Por exemplo: admite-se o preço da botija de gás, particularmente neste Inverno? Por exemplo: admite-se o preço da botija de gás, particularmente neste Inverno?
As receitas diminuem, as despesas aumentam, temos uma quadratura do círculo.
Mas isto não pode ser feito sempre com o sacrifício dos mesmos do costume. Há sempre a mesma profunda compreensão em relação aos interesses dos grandes grupos económicos…
Só estamos a tentar perceber as contas.
É um juízo de valor que eu faço. Em relação a direitos, em relação ao aumento do custo de vida, aí há muita dificuldade porque não há dinheiro para isso. Como assim? Admite-se que uma bilha de gás custe em Espanha menos de metade do que pagamos no nosso país?
Sucessão. “Haja saúde e vamos até ao fim”
Tem-se falado muito sobre a sua sucessão. Em entrevista ao Público e à Renascença na semana passada condicionou levar o mandato até ao fim não só à sua saúde, mas também a uma conjuntura “imprevisível”. Mas, em condições normais, leva o mandato até ao fim, em 2025?
Quero ser franco: a questão não está colocada. E estou a ser claro. Um dia será, com certeza.
Comparado com o Presidente dos Estados Unidos, ainda é novo: admite ser recandidato a secretário-geral em 2025?
Não faço essas conjeturas: um dia será. Mas, independentemente disso, quero informar que o órgão que decide, que é o Comité Central, não é o Congresso, determinará a solução. Mas, neste momento, a questão, de facto, não está colocada. Haja saúde e vamos até ao fim.
Acha importante um líder do PCP estar no Parlamento?
É uma experiência muito interessante. Nós resolvemos um aparente conflito entre a ação de massas e a ação institucional. Hoje em dia não há nenhuma conflitualidade entre a nossa ação e intervenção política no desenvolvimento da luta e, simultaneamente, também participarmos ativamente na Assembleia da República. O exemplo da minha vida demonstra isso. Fui para deputado Constituinte há já quase 50 anos e, ao princípio, a coisa era difícil, como vocês imaginam, porque não era capaz de fazer uma lei — mas percebi rapidamente que era capaz de dar contribuições durante a elaboração da Constituição, que não tinha nenhum problema em debater com um jurista o direito à greve, os direitos sindicais, o valor do trabalho. Depois, ao longo dos anos, tenho sido eleito com a confiança dos meus camaradas.
A pergunta surge também porque João Ferreira, que é um nome sempre falado para a sua sucessão, aparece em 10.º lugar na lista de deputados por Lisboa. É um lugar em princípio não elegível, mas bastaria que os eleitos acima abdiquem para que pudesse chegar ao Parlamento. Isto é uma forma de manter essa porta aberta?
Acho mais avisado não fulanizar este processo — sendo que, insisto, a questão não está colocada. Além disso, o partido tem, hoje, um conjunto de dirigentes, com mais ou menos idade, que têm muita capacidade…
Há demasiado foco em João Ferreira, publicamente?
Também se percebe: foi candidato à Presidência da República e à Câmara de Lisboa.
E isso não são sinais? É só uma questão de competência dele?
Sim, é da própria competência, que o levou a ser também deputado no Parlamento Europeu.
Além de João Ferreira, fala-se também de João Oliveira, de Bernardino Soares. Numa entrevista recente à CNN introduziu o nome de João Frazão: pode ser uma solução de compromisso?
Quero agradecer a oportunidade que o Observador me dá para clarificar. A pergunta da CNN é feita num contexto concreto, com um ou dois nomes, e eu quis demonstrar que, neste momento, a fulanização não se entende. Independentemente da evolução do processo e do grau de saúde que eu possa ter.
Podia ter falado em Vasco Cardoso ou noutros nomes, é isso?
Sim. A sério: podia dar mais quatro ou cinco nomes.
Em Lisboa, com João Ferreira, o PCP tem feito alguns acordos com Carlos Moedas — na questão da linha circular do metro, até foi o PSD que votou ao lado de uma proposta do PCP. Sente-se confortável com estes acordos, que são conhecidos por vodka-laranja, que juntam CDU e PSD?
Em relação às autarquias, historicamente, nós sempre, mas sempre, tivemos uma visão aberta de procura de relacionamento e de convergência em relação às matérias que afligem as populações. E temos uma experiência, incluindo com o próprio PSD, de convergências concretas para a resolução de problemas que possam existir naquele concelho, naquela freguesia. Não temos nenhum preconceito quando se trata de resolver problemas. E por isso é que não vejo que seja criado aqui um tabu ou que haja a violação de qualquer princípio. É perante os casos concretos que decidimos.E, muitas vezes, o PSD apresenta propostas que resolvem um problema. Naturalmente, votamos a favor.
E estão mesmo dispostos a negociar com todos? No Seixal, a CDU ficou à frente das assembleias de freguesia de Amora e de Corroios graças ao apoio do Chega. Também estão abertos a falar com o Chega nas autarquias?
Nós não particularizamos. Nós agimos em função do problema concreto.
Sente-se confortável em ter chegado à presidência destas assembleias de freguesia como apoio do Chega?
Foi iniciativa do Chega, o que é que havemos de fazer? Vamos dizer que não queremos? É evidente que não. Não foi iniciativa da CDU.
Mas pode vir a ser? Na sequência do seu raciocínio…
Estamos a falar de eleições autárquicas, é um sublinhado que eu gostaria de fazer. Agimos à procura da resolução dos problemas. Naturalmente, se outros se aproximarem disso…
Questionário legislativas: “Depois de Vasco Gonçalves, os exemplos de primeiros-ministros não foram nada animadores”
Qual foi o melhor primeiro-ministro da nossa democracia?
Antes da aprovação da Constituição, Vasco Gonçalves. Depois disso, olhe que os exemplos não são nada animadores.
E o pior?
Os governos piores são daquelas maiorias PSD/CDS e experiências também de Bloco Central que deram para o torto. Mas não sou capaz de apontar apenas para um, venha o Diabo e escolha.
Qual é a pessoa que mais ouve quando tem de tomar uma decisão política difícil?
Os organismos de direção do meu partido.
Em que partido votaria se o PCP não existisse?
Essa pergunta não tem sentido porque este Partido Comunista Português existe, de facto.
Dê-nos o nome de um político de outro partido que gostaria de ter num dos seus governos?
Não sou capaz. Existirão muitos democratas, mas não destaco nenhum.
Qual foi o melhor ministro deste Governo?
Não cometo a maldade de isolar este ou aquele.
Qual foi o seu maior fracasso político?
Como candidato às presidenciais, também não esperava melhor do que aqueles 8,4%. Nessas eleições, o ambiente começou muito frio, por razões de preconceito: o operário metalúrgico agora a armar ao pingarelho como candidato à Presidência da República. Depois, a vida demonstrou que esse preconceito não tem razão de ser.
[Veja a entrevista na íntegra:]