Quando tinha 19 anos, Jessie Inchauspé estava de férias com os amigos no Havai e saltou de uma cascata. Para que tudo corresse bem, precisava que a sua entrada na água, bem lá em baixo, acontecesse com o corpo esticado e as pernas a direito. Mas, infelizmente — esta parte já deve ter adivinhado —, nada correu bem. O embate aconteceu com o traseiro, comprimindo todas as vértebras da sua coluna até à segunda vértebra torácica, que “explodiu em 14 pedaços com a pressão”, como escreve no seu livro, A Revolução da Glicose (Lua de Papel).
Este episódio quase fatal mudou a sua vida de duas formas. Primeiro, porque a forçou a submeter-se a uma cirurgia que a deixou, para o resto da vida, com seis barras de metal aparafusadas à coluna. Depois, porque alterou por completo a sua perspetiva em relação aos temas da saúde física e mental. Foi esse novo interesse que a levou a, anos mais tarde, criar uma página de Instagram, a que chamou “Glucose Goddess” (ou “Deusa da Glicose”, em português) e que se dedica inteiramente a comunicar de forma simples como a alimentação, mais especificamente a glicose, tem um impacto direto na forma como nos sentimos por dentro e por fora.
Hoje, essa página tem 1 milhão de seguidores, que a inundam com mensagens de superação. Há quem tenha recuperado de depressões, quem tenha reduzido os níveis de stress e quem tenha conseguido curar condições físicas, desde diabetes tipo 2 a ovários poliquísticos. Pelo caminho, também há muita gente que ainda recebe um bónus inesperado: a perda de peso. Mas esse não é, de todo, o foco da sua missão.
Quem é a “Deusa da Glicose”?
Inchauspé tem 30 anos. Nasceu na cidade francesa de Biarritz, licenciou-se em Matemática pela King’s College de Londres e, empenhada em saber mais sobre o funcionamento do corpo humano, terminou um mestrado em Bioquímica na Universidade de Georgetowm, no estado de Washington, nos Estados Unidos da América. Foi no mesmo país mas noutra cidade, São Francisco, que começou a trabalhar na 23andMe, uma startup na vanguarda da tecnologia da saúde, ligada ao estudo do ADN.
A propósito de um pequeno estudo da startup, experimentou pela primeira vez um monitor contínuo de glicose (CGM) e percebeu em tempo real que existia uma relação entre os níveis desta molécula no sangue e uma série de problemas físicos e mentais. Criou a página Glucose Goddess no Instagram em abril de 2019 para partilhar as suas descobertas com o mundo e os seguidores começaram a acumular-se.
Em pouco mais de três anos, despediu-se para se dedicar ao projeto a tempo inteiro, acumulou 1 milhão de seguidores na sua comunidade (um marco alcançado no passado dia 30 de agosto) e lançou um livro, A Revolução da Glicose, que já vendeu meio milhão de cópias em todo o mundo. Editado pela Lua de Papel, chegou a Portugal em agosto de 2022.
O segredo para o seu sucesso tem tanto de misterioso como de lógico. Jessie encontrou uma forma de transpor linguagem científica para gráficos simples, fáceis de compreender, desenhados à mão pela própria. À conversa com o Observador a propósito da chegada do livro a Portugal, explicou que tudo partiu de uma pergunta: “Como é que vou tornar estas descobertas científicas em algo que é sexy, excitante e fácil de perceber?” Leia a entrevista completa de seguida.
Quando aprendeu todas estas coisas sobre a glicose, partilhou-as com os seus amigos e família, mas eles não ligavam, por causa da forma como lhes estava a comunicar as descobertas. Foi assim que acabou por criar esta página de Instagram que chega a tanta gente, porque descobriu como podia explicar as coisas de forma mais eficiente.
Exato. Ao início o que tinha eram estes estudos científicos que mostravam como os picos de glicose provocavam, por exemplo, problemas hormonais nas mulheres, acne, diabetes, desejos e cansaço. Depois tinha outros estudos que diziam que, se comermos a comida na ordem certa, podemos reduzir um pico de glicose. Tinha estas coisas que faziam sentido para mim, porque estou habituada a ler estudos científicos, mas mostrava-as aos meus amigos e eles reagiam tipo “hã?” [risos]. Quando mostramos um estudo a alguém, não é muito entusiasmaste. Então percebi que havia um problema de comunicação e pensei “como é que vou tornar estas descobertas científicas em algo que é sexy, excitante e fácil de perceber?” Tive de dar esse salto porque tantas descobertas ficam apenas no papel e nunca se tornam acessíveis ao público. Decidi usar os dados que recolhi do meu monitor de glicose para criar exemplos visuais das descobertas científicas.
Como por exemplo?
Por exemplo, vamos dizer que há um estudo que diz que, se andarmos 10 minutos a seguir a uma refeição, podemos reduzir o pico de glicose dessa refeição. Então, eu testava isso em mim. Num dia comia uma sanduíche e no dia a seguir comia a mesma sanduíche e andava durante 10 minutos. Extraía duas curvas de glicose e punha-as lado a lado e postava isso no meu Instagram, com um link para o estudo científico. Estava apenas a ilustrar a ciência. E foi aí que tudo começou a fazer clique. O meu primeiro post realmente popular foi quando comparei comer uma laranja a beber um copo de sumo de laranja. E isso fez com que as pessoas ficassem interessadas, porque antes eu andava a dizer que se devia comer a fruta inteira, que o sumo não é bom para os níveis de glicose. Mas de repente tinha o suporte visual e as pessoas ficaram tipo “uau, agora percebo”.
Como é que caminhar após uma refeição ajuda a controlar os picos de glicose?
Para responder a essa pergunta, tenho de lhe explicar um pouco sobre as células do seu corpo. A glicose é a energia do corpo, por isso cada célula no corpo usa a glicose para ter energia. O seu cérebro usa glicose para que possa pensar agora mesmo, as suas mãos usam a glicose para segurar nesse copo. Por isso, quando anda, todas as suas células e músculos usam a glicose para ter energia. Podemos usar essa informação para nosso benefício. Depois de uma refeição, se usarmos os músculos durante 10 minutos, eles vão precisar de usar glicose e o primeiro sítio onde vão procurar é o sangue. Depois de uma refeição, muita glicose fica no sangue, por isso se usarmos os músculos logo a seguir, eles sugam alguma glicose e reduzem o pico. Faz sentido?
Vou ter de ler um pouco mais sobre o assunto para perceber melhor.
Basicamente, depois de comer, se usar os seus músculos, alguma da glicose da refeição vai ser usada como energia.
Em vez de apenas ficar ali parada?
Exato. Em vez de ficar ali e criar um pico de glicose. Por isso, se puder programar as suas caminhadas para depois das refeições, isso é perfeito.
Quando começou a estudar os picos de glicose, notou um impacto muito direto na forma como a faziam sentir-se mentalmente.
Acho que foi a primeira vez que percebi que havia uma conexão entre o que comia e como me sentia. E também foi a primeira vez em que fiz a conexão de que quando tenho um sintoma — seja sentir-me deprimida, ansiosa ou muito cansada — é, muitas vezes, o meu corpo a tentar dizer-me alguma coisa. Então comecei a escutar os meus sintomas e a vê-los como comunicação que vinha da minha biologia, em vez de algo que devia ignorar, reprimir ou sentir culpa ou vergonha. Muitas das coisas que sentimos e vemos no nosso corpo — como inflamação, acne, períodos que falham, problemas de saúde mental, fadiga crónica, noites mal dormidas — são, geralmente, o nosso corpo a tentar dizer-nos que temos de controlar os picos de glicose. Quando mudei os meus hábitos, tornei-me uma parceira do meu corpo e da minha saúde, em vez de me sentir confusa, desconectado, triste ou zangada com o que me estava a acontecer.
Então também ajudou com a saúde mental.
Sim, sem dúvida. Mudou tudo para mim. Permitiu-me ir ainda mais longe. Agora, evito picos de glicose sempre e comecei a aprender técnicas como: se há stress no corpo, como é que o movemos antes que se torne um sintoma. Há muitas coisas que podemos fazer para ajudarmos o nosso corpo o nosso cérebro a sentirem-se melhor.
Aprendemos que a forma como nos sentimos — e não apenas a aparência do nosso corpo — também é um sintoma de como comemos.
Eu oiço muitas vezes as pessoas, depois de aplicarem os truques, dizerem que já não têm medo da comida nem dos hidratos de carbono. E que sentem uma maior conexão consigo mesmas. Sabem que, se comerem açúcar ao pequeno almoço, é por isso que depois têm desejos às 11 da manhã e se sentem cansadas. Começamos a fazer estas conexões e a perceber que estamos no controlo e que, se comermos gelado ao pequeno-almoço, nos vamos sentir mal. Mas está tudo bem, porque sabemos por que é que isso acontece. O nosso corpo deixa de ser uma caixa negra, é algo que podemos compreender e ajudar. E isso é enorme.
Há muitas condições que o controlo dos níveis de glicose pode ajudar e a Jessie já recebeu milhares de testemunhos. Pode contar-nos algum que lhe venha à memória?
Lembro-me de alguns. Uma mãe de duas crianças mandou-me uma mensagem a dizer que começou a seguir os truques que ensino no livro e que, depois de algumas semanas, começou a sentir que a sua personalidade se estava a transformar, que já não estava zangada com as crianças e que finalmente conseguia ter com elas a relação que sempre quis. Hoje [a entrevista aconteceu na terça-feira, 6 de setembro] postei um estudo [no Instagram] que mostra que, quando temos muitos picos de glicose, temos mais vontade de castigar as pessoas que erraram. Se tivermos filhos e eles fizerem coisas que de que não gostamos, com um pico de glicose vamos sentir-nos vingativos. Os níveis de glicose afetam mesmo a nossa personalidade. Por isso aquela mãe ficou feliz por finalmente conseguir empatizar com os filhos e ter paciência.
Também pode ajudar com a diabetes.
Muito comum. Quando se é diagnosticado com diabetes, o médico vai dizer “coma melhor e faça mais exercício”, mas isso é muito vago e as pessoas não sabem por onde começar e começam a sentir que têm de mudar toda a sua vida. Lembro-me de um homem que, quando começou a aplicar os meus truques, percebeu que não era assoberbaste: havia pequenas coisas que podia fazer para balançar os níveis de glicose sem fazer realmente dieta — porque muita gente não quer fazer dieta. Ele conseguiu reverter a diabetes tipo 2, largou a medicação e agora tem níveis de açúcar completamente normais. E isso é um verdadeiro exemplo de como as condições que desenvolvemos podem ser revertidas. Não temos de fazer dietas loucas em que não comemos nada e fazemos exercício três vezes por dia. É por isso que isto é uma revolução, porque a ciência está a mostrar-nos truques fáceis que podem transformar a nossa saúde.
E a fertilidade?
Tenho uma história que posso contar, sobre uma mulher casada que queria ter filhos. Deixou de tomar a pílula e, de repente, deixou de ter o período. Foi ao médico e disseram-lhe que tinha ovários poliquísticos, que é uma desregulação hormonal muito comum. Disseram que não havia cura e que talvez nunca viesse a ter filhos. Foi aí que ela encontrou a minha conta e começou a ver que os problemas hormonais são muitas vezes causados por níveis instáveis de glicose ou demasiada insulina. E podemos fazer qualquer coisa. Então aplicou os truques, a menstruação voltou e acabou de ter um bebé.
Enquanto estava no hospital à espera de ser operada, sem saber se ia sobreviver, não podia imaginar que ia mudar a vida destas pessoas.
Para ser honesta, eu continuo a sentir-me a mesma. Continuo a ver Netflix e a comer massa na cama. Ainda me aborreço com coisas. Não mudei como pessoa. O que é bom é que o trabalho e a mensagem tomaram uma vida própria. Estou a ajudar a espalhar a mensagem, mas não consigo incorporar isto em mim, sinto que é uma coisa separada. Mas é estranho, as pessoas param-me na rua a toda a hora e eu continuo sem conseguir ligar os pontos.
Mas deve ser recompensador.
Conhece o conceito japonês de Ikigai? É quando podemos fazer um trabalho de que gostamos, de que o mundo precisa e que nos dá dinheiro. É aí que encontramos o Ikigai e é um sítio maravilhoso para se estar.
Recentemente, postou algo sobre o envelhecimento também poder ser desacelerado se controlarmos os níveis de glicose.
Está na parte dois do livro. Quando temos um pico de insulina, há duas coisas que acontecem no corpo. Primeiro, as células ficam stressadas, o que cria inflamação. Em segundo lugar, todas as moléculas de glicose no corpo esbarram noutras moléculas e distorcem-nas, danificam-nas. Isso chama-se glicação, que é a mesma coisa que acontece quando pomos um frango no forno e passa de cor-de-rosa a castanho. É cozido, mas esse processo é glicação, moléculas de glicose a reagir a outras moléculas de glicose. No corpo, a glicação começa no momento em que nascemos e, quando o processo termina, morremos. A glicação na culinária é o mesmo que envelhecer. Quanto mais picos de glicose tivermos, mais glicação temos. E quanto mais depressa “cozinhamos”, mais depressa envelhecemos. Isso pode ver-se na pele, através das rugas, mas também envelhecemos por dentro, quando os órgãos se começam a deteriorar lentamente. Se reduzirmos os picos de glicose no corpo, ele envelhece mais devagar. É tão simples como isso.
A ordem em que comemos a comida também afeta os picos de insulina?
Se a comermos numa ordem específica, podemos reduzir o pico de glicose em 75 por cento. Primeiro devemos comer os vegetais, depois as proteínas e gorduras e só depois os amidos e açúcares. Isto é porque os vegetais criam uma barreira protetora nas paredes do intestino delgado e qualquer glicose que venha a seguir não será absorvida da mesma forma pelo sangue.
Também explica no livro que ao pequeno-almoço devemos sempre comer uma refeição salgada?
Quando tomamos um pequeno-almoço doce, temos um pico de insulina que nos afeta o resto do dia. Ficamos viciados em açúcar o dia todo. [Os níveis de glicose] sobem logo a seguir ao pequeno-almoço e depois caem a pique. A queda ativa no cérebro uma mensagem que diz que temos de comer alguma coisa doce. São 10 da manhã e já queremos qualquer coisa doce, por isso comemos e voltamos a ter um pico. Andamos nisto o dia todo, a sentirmo-nos mal. Mas, se comermos algo salgado, mantemos os níveis de glicose equilibrados. O meu editor na Lua de Papel, estava a dizer-me que saber isto mudou o seu dia inteiro. Porque agora consegue esperar até às 13 ou 14 horas para comer sem sentir fome.
Porque é que beber vinagre ajuda a controlar os picos?
É muito interessante. O vinagre é usado há muitas gerações como uma parte normal das nossas dietas. Em países como o Irão, as pessoas acreditam que é muito saudável, fazem-no em casa e bebem todos os dias. Durante muito tempo não se sabia exatamente porque é que era saudável e agora sabemos, de uma persespetiva científica, porquê. O vinagre tem uma molécula chamada ácido acético que faz duas coisas. Primeiro, quando está no estômago atrasa a forma como os hidrato de carbono são processados em moléculas de glicose. Depois, vai para os músculos e, um pouco como o exercício, diz-lhes para sugarem a glicose do sangue. Se tomarmos vinagre antes de uma refeição ou o pusermos numa entrada de vegetais, reduzimos o pico de glicose da refeição em 30 por cento sem termos de alterar o que comemos.
E se combinarmos todos os truques?
Se tomarmos vinagre, comermos na ordem certa e a seguir dermos uma caminhada, estamos a mudar completamente os níveis de glicose e vamos sentir-nos muito melhor.
Há outro truque de que fala no livro que tem um nome engraçado. Nunca comer hidratos de carbono “despidos”?
Os hidrato de carbono são amidos e açúcar. Se os comermos sozinhos, eu digo que estamos a comê-los “despidos”. Se só comer pão, açúcar ou massa vai ter um pico de glicose grande. Ponha “roupa” nos seus hidrato de carbono adicionando proteína, gordura ou fibras. É fácil de lembrar e é especialmente útil quando estamos, por exemplo, numa estação de comboio, num aeroporto, numa festa de anos, num almoço de negócios. Estes momentos em que não podemos cozinhar nem temos muito controlo sobre o que podemos comer e temos de tomar uma decisão rápida, basta pensar nisso. Pode comer uma fatia de pão, mas adicione abacate ou tomate com azeite, por exemplo. Se quiser uma fatia de bolo, junte um pouco de iogurte gordo.
Ao mesmo tempo, as pessoas que são mais sensíveis ao consumo de calorias vão pensar: “mas é melhor comer duas coisas do que apenas uma?”
Eu falo disso no livro. É um dos meus truques: pare de contar calorias. São apenas úteis quando estamos a olhar para a quantidade da comida. Se olharmos para mil calorias de chocolate versus duas mil calorias de chocolate, obviamente é melhor comer menos, se tiver objetivos de perda de peso. Mas é aí que termina. As calorias são quantidade, mas não dizem nada sobre o que é que a comida nos vai fazer. Há boas calorias, que reduzem picos de glicose. Apesar de estar a adicionar calorias, está a reduzir picos de glicose, desejos, fome, terá melhores níveis de energia, manterá o seu corpo por mais tempo a queimar calorias. Tudo se equilibra, porque vai acabar por comer menos calorias, vai sentir-se melhor e vai perder peso. Muita gente pensa que a perda de peso acontece num vácuo, mas não é assim. O peso é ditado pelo que se comeu nas últimas semanas e não por uma decisão isolada. O que vejo com os leitores da minha comunidade é que, se se focar em reduzir picos de glicose, vai ajudar o seu corpo e o seu cérebro a serem mais saudáveis e, muitas vezes, a perda de peso acontece como consequência. Muita gente procura esta informação para curar outras condições e acaba por perder peso extra sem o planear.
Na sua conta, tem um post onde mostra o que se pode comer num avião para controlar os níveis glicose. Tem mais algum exemplo deste género?
Postei há poucos dias “como comer gelado”. Primeiro: não comer com o estômago vazio, comer após uma refeição ou comer alguma “roupa” para os hidrato antes, como frutos secos. Segundo: comer o gelado e dar um passeio enquanto come. Está a ter o prazer de comer o gelado, mas também está a ajudar o seu corpo a sentir-se melhor.