Aos 72 anos, João Botelho está cada vez mais interessado em assumir o artifício do cinema e a parcimónia de meios — e por isso apresenta agora uma versão despojada sobre duas personagens marcantes do século XX que admira em medidas diferentes. “O Jovem Cunhal” passou no domingo no Cinema São Jorge — documentário sobre o líder histórico comunista exibido durante o IndieLisboa. Dias antes, na mesma sala e no mesmo festival, tinha sido projetado “Um Filme em Forma de Assim“, uma quase biografia do poeta Alexandre O’Neill.
O filme de Cunhal deve chegar às salas depois do verão, enquanto o filme sobre O’Neill se estreia já a 12 de maio, com distribuição da NOS Audiovisuais. Motivo para um encontro com jornalistas no Foxtrot. Sentado num dos sofás de veludo do velho bar lisboeta, o realizador explicou ao Observador o que levou a ambas as personagens e dissertou sobre o cinema que lhe interessa fazer hoje.
No habitual registo vertiginoso, falou também dos tempos da pandemia, em que teve de dançar na clandestinidade, e revelou que o próximo filme, já escrito mas ainda sem apoio financeiro atribuído, vai conter aspetos pouco conhecidos da vida Salazar.
[trailer de “Um Filme em Forma de Assim”:]
“Um Filme em Forma de Assim” é um objeto incomum, quase musical, quase biografia, quase filme para galeria ou museu em planos-sequência. As filmagens decorreram em abril do ano passado integralmente em estúdio, num armazém em Azeitão, onde há nove anos Botelho filmou “Os Maias — Cenas da Vida Romântica”. O orçamento rondou 900 mil euros, com apoios do Instituto do Cinema e do Audiovisual, da RTP, da Câmara de Lisboa e do Turismo de Portugal, segundo o produtor Alexandre Oliveira, da Ar de Filmes.
[trailer de “O Jovem Cunhal”:]
Dos 88 intérpretes, destacam-se Pedro Lacerda, Inês Castel-Branco, Luís Lima Barreto e Rita Blanco. O argumento é do realizador e da investigadora Maria Antónia Oliveira, que em 2007 publicou pela D. Quixote uma biografia do poeta. Presente no encontro com a imprensa, Maria Antónia Oliveira explicou que uma nova versão da biografia, revista e aumentada, deverá sair em 2024 pela Assírio & Alvim, para assinalar o centenário de O’Neill.
“Descobri nele uma pessoa muito independente, muito feroz no seu individualismo. Era muito senhor da sua vida”, resumiu a biógrafa. “Como ele dizia, teve de arrotar com as consequências do que fazia. Consequências sentimentais, financeiras, etc. Era um poeta conhecido, que conseguia vender bem os seus livros, porém não era completamente aceite pelos pares porque utilizava o humor como elemento e o humor não é tido como credível. Ele próprio não se levava a sério. Penso que sofria com isso”, acrescentou.
Conheceu o O’Neill?
Conheci, sim.
Em que circunstâncias?
Era meu vizinho. Moro no Príncipe Real há uns 47 anos e ele vivia ali em frente à [pastelaria] Cister, numa casa com azulejos que ainda lá está, na Rua da Escola Politécnica. Ele ia muito à Cister. Quando fiz o meu segundo filme, “Um Adeus Português” [1985], roubei-lhe o título e fui-lhe pedir autorização. E disse-lhe: “Preciso daqueles versos que estão lá no meio do teu poema: ‘Esta pequena dor à portuguesa, tão mansa quase vegetal.” Era a epígrafe do filme. Não é um filme sobre a Guerra Colonial, é sobre o luto da guerra. Os portugueses estavam em silêncio sobre isto. Agora já se fala, naquela altura ninguém falava. O meu irmão morreu na guerra, tinha 20 anos, era piloto de jato. Durante anos e anos em minha casa nunca se falou sobre isso. Fazia-se silêncio. Era aquela “dor à portuguesa, tão mansa, quase vegetal” que me interessava. Ele foi maravilhoso, disse-me para usar os versos à vontade e até escreveu um texto no O Jornal a dizer que me tinha dado o poema e a explicar porquê.
Um jovem realizador perante uma figura de grande dimensão.
Claro. Eu sabia isso, tinha um enorme respeito pelos textos, pela atitude, pela vida dele. Nessa altura, ele ainda vivia com a Teresa Patrício Gouveia [secretária de Estado da Cultura de 1985 a 1990].
Foi a segunda mulher?
Não. Ui… Talvez a sétima. Casamentos, não sei, mas teve muitas mulheres. Sei que foi casado com a Noémia Delgado [1933-2016] e teve um filho com ela, que morreu muito novo com asma, amigo de um amigo meu. Quando viveu com a Teresa Patrício Gouveia, mudou um bocado de vida, porque ela era muito queque. Mas ele reivindicava ser mais aristocrático do que ela, porque descendia de um rei da Irlanda. Era um farsante maravilhoso. Teve um filho com ela, o Afonso, que agora me deu documentos que ninguém conhecia.
Inéditos que aparecem pela primeira vez através do seu filme?
São fotografias inéditas, sim. Ele era fotógrafo, fazia fotografias incríveis. Fotografava sobretudo grafitti semi-pornos e coisas abstratas. Como era míope, via mal ao longe, e apanhava grades, ferros, pedras. Isso está no filme.
Diz que ele era um farsante. Explique-nos melhor.
Porque estava sempre a representar. Escrevia textos maravilhosos e depois quase pedia desculpa pelo que tinha escrito. É dele a maravilhosa frase “a junção do erudito e do popular para encontrar o belo”. Fazia uma descrição maravilhosa de Lisboa e metia lá os pedintes. “Irene! Irene! Sirva o leite-creme!”. Coisas abstratas e de uma qualidade literária imbatível. O O’Neill é um grande.
Que há de comum entre Alexandre O’Neill e João Botelho?
A boémia, claro. A noite é muito melhor que o dia.
Porquê?
O sol magoa-me. Só funciona depois de almoço. Nunca me deito antes das seis da manhã. Depois acordo ao meio-dia, tomo o pequeno-almoço à uma. Gosto de estar na noite. Mas, atenção: para fazer filmes levanto-me mais cedo.
Disse há uns anos numa entrevista que depois dos 70 pensava deixar de ser notívago.
Dizia que queria deixar de dançar depois dos 70, mas não consegui. Continuo na noite.
Durante a pandemia não pôde dançar.
Ai, não. Oh! Dancei sempre. Clandestinamente. E saí todas as noites durante a pandemia. Adorei Lisboa à noite, sem ninguém. Ouvir um saco de plástico a cair, os passos de um polícia ao longe. Andava até às quatro, cinco da manhã em Lisboa durante a pandemia.
Isso deu inspiração para um filme?
Deu. Este. É um filme que nasce na pandemia. Atraiu-me a ideia de poder filmar sem uma história.
Sem narrativa?
Há pequenas narrativas lá pelo meio. O cinema não é uma coisa única. Posso fazer um filme inteiro só a filmar uma árvore. É cinema. O João César Monteiro a fazer um filme todo preto, é cinema. Outros já o tinham feito. A Marguerite Duras [“L’homme Atlantique”, 1981], por exemplo. O cinema não é uma coisa única, não tem de contar, tem de contar cinema. Uma das coisas que trabalho é a ideia da memória do cinema. Interessa-me. Este filme está cheio de coisas do senhor Buñuel, com quem aprendi muito. Ele pensava um cinema completamente inesperado, filmava o infilmável. De outra maneira, mais seca, mais contida, o que há de parecido com este filme será “O Filme do Desassossego” [2010], que também é infilmável. E eu filmei-o. Este também parece infilmável. Apesar de os meus atores serem maravilhosos, o personagem principal deste filme é o texto.
É o cinema-pensamento de que costuma falar?
Não. Os portugueses têm uma coisa que é o cinema-tempo, contrário ao cinema-movimento. É o tempo que me interessa, a composição.
É uma característica do cinema feito em Portugal?
Do cinema português de que gosto, sim. O que interessa é a composição, não a ação ou a montagem. Um filme português em que há um assalto e alguém diz “mão no ar”, desata-se tudo a rir. Se ouvirem dizer “hands up”, as pessoas aceitam.
O nosso cinema-tempo não vem de empréstimo?
Trouxemos isto de empréstimo de um senhor que nos inventou o cinema de que gosto: Rossellini. A Nouvelle Vague também é filha dele, nós também, o cinema húngaro a certa altura. Somos todos filhos do Rossellini. É a ideia de filmar coisas importantes com poucos meios. É o ascetismo. Numa dada altura eu dizia “viva o Ozu, abaixo o Mizoguchi”. São dois génios, mas eu dizia isto. “Viva o Ford, abaixo o Walsh”. Anos 60, 70. Porquê? Eram os ascetas, com poucos meios. Também gosto mais do Dreyer do que do Bergman. O cinema português tem poucos meios. Não me importo de filmar papelão, não quero fazer naturalismo nem realismo.
Filmar papelão significa o quê?
Mostrar que aquilo é um espetáculo. Hoje temos o triunfo da história. Às vezes são histórias magníficas, mas quase todas filmadas da mesma maneira. Parece que não conhecem a história do cinema. Houve filmes que vi 10 vezes seguidas, porque tinham muitas camadas. Hoje o cinema, como modo de filmar, é muito igual. O modo de filmar é que manda. Não é o que se passa ou quando se passa, é o que se filma.
Quem é que decide?
Eu. É um ponto de vista. O cinema é sempre o ponto de vista de alguém. O problema é que hoje o dinheiro e o movimento… São três mil planos, aquilo não pára, é uma vertigem, uma coisa de consumo.
Está a falar da Netflix?
Não só da Netflix, também da HBO, das séries de televisão. Aquilo engana, parece que é a vida, mas aquilo não é a vida. Passam-se coisas que não estão a acontecer, é uma coisa encenada. Acho que são mais honestas as novelas, porque já sabemos que são novelas. Também gosto da ópera. Uma mulher de 100 quilos com 60 anos pode fazer uma adolescente. Se cantar e representar bem leva-nos às lágrimas. Posso chorar com as riscas do Rothko e não estou a ouvir nada. Emociono-me com a música dodecafónica do Schoenberg e não estou a ver nada. O problema é que o cinema não consegue criar emoções pela abstração. Esse é o sonho. Por isso, o cinema não é tão puro como a pintura, a escultura, a poesia. O cinema é de vampiros, vamos roubar a tudo.
Ao fim de mais de 40 anos de cinema, está mais interessado no despojamento?
Estou. Estou interessado em fazer coisas que me apaixonam, sem concessões. Não faço filmes para ninguém, juro. Faço o melhor que sei. Cada filme, cada autor a que me dedico, merece um estilo, um modo de filmar diferente. O cinema é luz e sombra, com seres humanos pelo meio. Os otimistas vão para a luz, os pessimistas vão para a sombra. É como nos westerns: heróis na luz, bandidos no escuro. São umas ideias, mas há outras. Gosto de refletir sobre o cinema, até onde podemos ir sem ofender ninguém. Também não reescrevo os autores, não se pode. Mas corto e colo. Respeito o original, mas escolho.
O O’Neill disse uma vez que para epitáfio queria “um homem que dormiu muito pouco”…
“..e bem merecia isto”. Ou seja, merecia o eterno descanso.
Também dorme pouco?
Não. Durmo seis a sete horas. Chega.
Tal como o poeta, tem uma visão cáustica do país?
É um país pequeno. Que é que se há de fazer? Somos muito obedientes. Celebrou-se há pouco o facto de termos ultrapassado em liberdade a duração do fascismo. Mas ainda nos faltam dois séculos para ultrapassarmos o tempo que durou a Inquisição. Fomos muito condicionados pela obediência, pela subserviência. E hoje estamos a ser corrompidos por uma coisa muito chata que é o individualismo. O “eu” está a mandar no “nós”. Vivi o fascismo e senti o país a abrir, a abrir. Sou do tempo em que dar um beijo a uma rapariga dava multa. A sério! Andar de mão dada era impossível, ela ficava marcada para sempre.
Hoje a subserviência é portuguesa ou mundial?
O problema é que ainda temos os brandos costumes. No fascismo não havia muitos agentes da PIDE, mas havia dois milhões de informadores. As pessoas denunciavam o vizinho. Era o país quase todo. O que vejo no resto do mundo é o regresso do populismo, os rapazes da Polónia, o Orban, o Erdogan, o Trump. Discursos completamente fascistas.
Não será uma nova forma de autoritarismo?
Se calhar não é fascismo. Será um novo autoritarismo baseado na ideia de controlo. Li que as pessoas que detêm 90% da fortuna do mundo cabem todas dentro de um autocarro. Isto é um acidente. Vivemos a ganância, a guerra pelo poder.
Fale-nos brevemente sobre o documentário de Álvaro Cunhal.
Gosto muito do Cunhal enquanto jovem. Depois, na fase posterior, tenho dúvidas, porque para defender o que pensava vivia no tempo do Estaline e não criticou a invasão da Checoslováquia nem da Hungria. De qualquer forma, era um patriota. O texto “Se fores preso, camarada” [1951] é notável. Gosto daquela frase que diz que só há dois homens coerentes no século XX português: o fascista Salazar e o comunista Cunhal. Nunca se desviaram. O jovem Cunhal transmite coisas maravilhosas sobre a condição humana, desde logo a coragem. Era bonito, viveu apaixonado por mulheres, tal como o O’Neill.
Mas parece que o O’Neill nunca se comprometeu politicamente.
Mas também foi preso pela polícia política. Era de esquerda, acho eu. Andou próximo do PS. Escreveu o slogan “ele não merece, mas vota no PS”, a pensar no Mário Soares. Tinha lata, tinha coragem, era meio anarquista, como eu.
Porquê esta atração por Cunhal e O’Neill?
Ambos coerentes. Atraiu-me o O’Neill na incoerência, o Cunhal na coerência. O próximo é o Salazar.
Já está escrito?
Já e talvez se chame O Calista, o Enfermeiro e a Governanta. Quero ver se filmo em 2023, para estar pronto nos 50 anos do 25 de Abril. Vamos ver se me dão apoio no Instituto do Cinema.
Como será?
É sobre o que foi o fascismo do Salazar, a mesquinhez, a ruralidade, o rapaz que monta uma horta de couves em São Bento porque adora caldo verde, cria galinhas e patos, acumula ouro, tem discursos sinistros sobre as mulheres, prega a pobreza. Há um Salazar desconhecido, um Salazar perverso. Tenho um problema com ele: escrevia bem. Os discursos são perigosos por isso. Quero fazer os dois últimos anos dele. Talvez o Luís Lima Barreto faça o velho Salazar.