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João Neto Vaz, entrevistado do podcast "O Sargento na Cela 7", fotografado em março de 2023, no Museu Municipal de Ourém
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João Neto Vaz, entrevistado do podcast "O Sargento na Cela 7", fotografado em março de 2023, no Museu Municipal de Ourém

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

João Neto Vaz, entrevistado do podcast "O Sargento na Cela 7", fotografado em março de 2023, no Museu Municipal de Ourém

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

João Neto Vaz e as marcas da guerra: "Se eu fosse falar de certas coisas, chorava que parecia um puto"

João Neto Vaz, que esteve preso com António Lobato, o "Sargento na Cela 7", pensa na guerra todos os dias. Também fala, mas não de tudo. É como se fosse um enorme tabu de uma geração inteira.

O copo foi enchendo ao longo de várias semanas, não foi por acaso que transbordou naquela noite, uma de tantas, em que só queria que o deixassem sossegado, a cismar, só ele e uma garrafa de whisky.

Estava há um ano e nove meses na Guiné-Bissau, para onde tinha sido enviado em 1966 para formar o seu próprio pelotão de soldados africanos — “nativos”, como lhes chama. Já tinha visto — e feito — demasiado.

“Um puto que vai daqui para lá e que não seja totalmente burro — que eu acho que não sou — e que está todos os dias a ver gajos morrer, cria uma certa nostalgia da vida que teve. Pelo menos era o que se passava comigo. Naqueles dias, se alguém falasse comigo, estava tudo estragado"
João Neto Vaz, ex-combatente na Guiné

Se agora, que tem quase 80 anos, continua a isolar-se e a passar horas a fio perdido nos pensamentos, naquela altura, a viver num quartel na longínqua povoação do Enxalé, com dezenas de outros homens e em plena guerra, o jovem furriel João Neto Vaz, então com 23, precisava ainda mais de parar para pensar.

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“Um puto que vai daqui para lá e que não seja totalmente burro — que eu acho que não sou — e que está todos os dias a ver gajos morrer, cria uma certa nostalgia da vida que teve”, tenta justificar o entrevistado do podcast “O Sargento na Cela 7”, a mais de cinquenta anos de distância. “Pelo menos era o que se passava comigo. Naqueles dias, se alguém falasse comigo, estava tudo estragado.”

[Já saiu: pode ouvir aqui o quinto episódio da série em podcast “O Sargento na Cela 7”. E ouça aqui o primeiro episódio, aqui o segundo episódio, aqui o terceiro episódio e aqui o quarto episódio. É a história de António Lobato, o português que mais tempo esteve preso na guerra em África.]

Antes da derradeira noite em que a sua vida deu uma volta, a semanas de voltar para casa, na zona de Torres Novas, João Neto Vaz já se tinha travado várias vezes de razões com o capitão que lhe havia de dar “a porrada” que o atiraria para a prisão por desrespeito para com um superior — e daria origem a uma sucessão de acontecimentos a que só a secreta operação Mar Verde colocaria um ponto final, quase três anos depois.

“Era um merdas que não valia 10 tostões, um arquiteto de Lisboa que foi pescado para ir para lá mas não percebia nada daquilo. E era burro!”, continua a exaltar-se, à mera lembrança da figura.

Primeiro, foi o dia em que o capitão lhe ordenou que formasse o pelotão no meio do quartel, para receber o pré, e o furriel lhe respondeu com um rotundo ‘não’. “Você pensa que está em Lisboa ou quê? Deixe o dinheiro na secretaria que eu vou lá buscar, agora formar aqui, assim, não! Vem uma bazucada e vão metade para o lixo!”, recorda Vaz.

“Chegou ao pé de mim num daqueles dias em que ninguém podia falar comigo. Tinha uma garrafa de whisky ao lado, estava a beber sossegado. Aumentou-me a voz e eu disse-lhe uma vez: ‘Capitão, fale mais baixo’. Como continuou, disse-lhe: ‘Fale mais baixo senão leva com uma garrafa nos cornos’. Fez queixa de mim e fui preso. Apanhei 30 dias de prisão disciplinar agravada em Bissau. E separaram-me do pelotão”
João Neto Vaz, ex-combatente na Guiné

A seguir, veio o momento em que, mesmo com o pátio vazio de soldados, o quartel ficou sob ataque do PAIGC, o Partido Africano para a Independência da Guiné e de Cabo Verde, e o capitão foi incapaz de reagir. “Estava a gente em casa e começa a chover a metralha em cima. Havia um puto alentejano, que era maluco também, agarrámos na GMC [tanque blindado, com metralhadora] e fomos atrás dos gajos. Quando voltámos ao quartel estava o cabrão do capitão deitado debaixo da cama em cuecas! E depois tinha a mania que era bom!”, continua a desdenhar.

E depois, ainda antes daquela noite, houve a madrugada em que o capitão, ao encontrar um dos soldados do furriel a dormir no posto, em vez de resolver ele próprio o assunto, foi acordá-lo para lhe fazer queixa. “Cheguei lá, dei uma ou duas bofetadas ao sentinela e disse ao capitão: ‘Isto é que você devia ter feito! No tempo em que me foi acordar esta porra podia ter sido atacada!’”

Na noite em que o capitão de Lisboa lhe interrompeu o fluxo de pensamentos, entre dois goles de whisky, João Neto Vaz já vinha portanto há muito a alimentar aquela animosidade. “Chegou ao pé de mim num daqueles dias em que ninguém podia falar comigo. Tinha uma garrafa de whisky ao lado, estava a beber sossegado. Aumentou-me a voz e eu disse-lhe uma vez: ‘Capitão, fale mais baixo’. Como continuou, disse-lhe: ‘Fale mais baixo senão leva com uma garrafa nos cornos’. Fez queixa de mim e fui preso. Apanhei 30 dias de prisão disciplinar agravada em Bissau. E separaram-me do pelotão.”

“Quer se queira, ou não, ser muito forte mentalmente, isto dá cabo do parafuso a um gajo”

Quando foi preso, por desrespeito a um superior, João Neto Vaz estava prestes a chegar ao fim da comissão na Guiné-Bissau. Passado um mês, quando foi libertado, em vez de ser enviado para Portugal, voltou ao serviço — e dessa vez sem o pelotão que tinha formado à chegada ao país, com “uns vinte putos nativos, todos impecáveis”.

Recebeu ordens para ficar no quartel, para dar apoio aos soldados mais inexperientes, que entretanto chegariam para ocupar o lugar dos outros, que iam sair para dar proteção à população de Catacunda, zona que, naqueles cinco anos de guerra, nunca tinha estado debaixo de fogo. Mas implorou que o deixassem ir também — “Capitão, porra, estou com 21 meses de comissão, aqui ainda levo um tiro na cabeça, ao menos deixe-me ir passar três meses de férias!” —, e acabou por seguir viagem para a pacífica Catacunda.

“Era um terreno relativamente pequeno que tinha mais tropas do que tinha Angola. A Guiné tinha 80 ou 90 mil portugueses num território do tamanho do Alentejo, todos de arma na mão. Na penúltima operação que eu fiz em Geba, por exemplo, ficaram lá sete! Quer se queira, ou não, ser muito forte mentalmente, isto dá cabo do parafuso a um gajo"
João Neto Vaz, ex-combatente na Guiné

Assim que chegou ao destacamento, no meio do mato da Guiné-Bissau, tratou de começar as férias e de se familiarizar com as tabancas vizinhas. “Estávamos uns 16 ou 17. Era uma bandalheira”, recorda, entre risos, que não cessam nem quando chega à parte crítica da história, aquela em que é apanhado pelos guerrilheiros do PAIGC e mais uma vez feito prisioneiro — agora pelo inimigo. “Fui apanhado à mão, sem arma, sem nada, a 20 metros do quartel. Tinha 20 anos, havia tabancas por ali à volta e ali nunca tinha havido um tiro. Fui passar férias para outro lado!”

Em poucos segundos, sentado à mesa da cozinha da casa térrea onde agora vive sozinho, no Covão do Coelho, uma aldeia na zona de Minde, com vista para a Serra d’Aire, João Neto Vaz cala as gargalhadas e volta a cerrar o semblante.

Desde que enviuvou e perdeu a companheira da vida inteira, mãe dos seus dois filhos adultos, ambos a morar a quase 150 quilómetros dali, na zona de Palmela, que passa dias inteiros mergulhado nos pensamentos. A reviver as cenas de terror que só aceita partilhar de gravador desligado e a remoer os traumas, que apesar de não chamar por este nome, lhe continuam a deixar os olhos molhados e a cortar a voz.

João Neto Vaz conheceu António Lobato em 1968, na prisão de Kindia, na Guiné Conacry

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

“É demasiado radical para a nossa vida aqui em Portugal, que sempre foi relativamente calma. Chega ali, apanha com bofetadas de um lado e com bofetadas do outro e um gajo até fica maluco. É difícil, é difícil perceber aquilo”, vai tentado explicar. “Era um terreno relativamente pequeno que tinha mais tropas do que tinha Angola. A Guiné tinha 80 ou 90 mil portugueses num território do tamanho do Alentejo, todos de arma na mão. Na penúltima operação que eu fiz em Geba, por exemplo, ficaram lá sete! Quer se queira, ou não, ser muito forte mentalmente, isto dá cabo do parafuso a um gajo. Por isso é que havia o radicalismo do nosso lado, cria-se um certo ódio em relação a quem faz aquilo. Mas nós é que fomos para lá, não foram eles. Eles já lá estavam. Essa é a parte chata da questão…”

“Chamava-lhe ‘Mário’, nem sei bem porquê, tinha sido uma espécie de ajudante de um capitão qualquer e falava mais ou menos português. Um ano e meio depois, levou um tiro ao pé de mim, numa emboscada em que, se houve 50 tiros, foi muito... No mamilo... Ele deitado e eu: 'Mário, vamos embora'. Já tinha acabado aquilo, fui virar o puto, tinha um tiro no coração..."
João Neto Vaz, ex-combatente na Guiné

Ato contínuo, recorda-se de “Mário”, o miúdo que o ajudou a formar o pelotão de nativos e de quem gostava tanto que chegou a pensar várias vezes trazer no regresso a Portugal. “Chamava-lhe ‘Mário’, nem sei bem porquê, tinha sido uma espécie de ajudante de um capitão qualquer e falava mais ou menos português. Um ano e meio depois, levou um tiro ao pé de mim, numa emboscada em que, se houve 50 tiros, foi muito”, vai contando, até a voz se lhe embargar e ser obrigado a fazer uma pausa. “No mamilo… Ele deitado e eu: ‘Mário, vamos embora’. Já tinha acabado aquilo, fui virar o puto, tinha um tiro no coração…”

E lembra-se de quão chocado ficou quando, depois de ter sido feito prisioneiro, com uma pistola encostada ao pescoço, não foi maltratado pelos guerrilheiros do PAIGC, com quem caminhou ao longo de semanas pelo mato, primeiro rumo ao Senegal e depois para a Guiné Conacry, onde na prisão de Kindia conheceu — e fez planos de fuga com — António Lobato, figura central do podcast “O Sargento na Cela 7”.

“Vim descalço de Catacunda ao Senegal. No caminho bebi uma bica no meio do mato tão bem tirada como eu tirava aqui na minha aldeia. E quando cheguei lá umas enfermeiras trataram-me dos pés como se tratava aqui no nosso hospital. Isto na altura, quando havia um ódio radical de parte a parte. Incutido por nós, aqui, e, por sua vez, incutido por eles”, continua a contar, em tom grave, para depois se revoltar contra si próprio. “Quando eu disse que sei que um preto bebe um litro de óleo queimado e que não morre, quem é que lho deu?! O que é isto?! Tapa-lhe o nariz e abre-se a boca, tem de beber. Não sei se é tortura se é experiência, para ver se morre ou não… Não… É difícil…”

“Não consigo descrever as porcarias que lá se passaram, é difícil”

Percebe-se que esse episódio o marcou — repete-o numa outra conversa com o Observador, já depois da publicação do podcast “O Sargento na Cela 7”, gravada no Museu Municipal de Ourém. Esse e aquele que descreve como a primeira coisa realmente dura que viu acontecer na guerra, a morte de um jovem militar madeirense que acompanhou o pelotão que Vaz liderava durante um ataque ao destacamento onde estavam. Debaixo de fogo, o rapaz escondeu-se atrás da GMC e, sem se aperceber, pisou uma mina. “Foi a primeira vez que vi um puto desaparecer”, conta.

"Qualquer coisa que me corra mal, expludo logo, coisa em que eu não era assim."
João Neto Vaz, ex-combatente na Guiné

Os dias seguintes são “difíceis de descrever”. Admite que nem sempre conseguiu dormir, mas não falou com ninguém sobre isso. Nem com os colegas — que, como ele, disfarçavam tudo com “brincadeiras estúpidas para passar o tempo” — nem com os oficiais, que, diz Vaz, se mantinham quase sempre a uma grande distância. O silêncio sobre esses episódios — e o impacto emocional que tinham nos militares — era quase uma regra não escrita que todos seguiam. E não era só comum durante a guerra, mantém-se até agora, não só para ele. É como se fosse um enorme tabu de uma geração inteira, uma ferida aberta em que ninguém quer tocar.

João Neto Vaz, que diz que percebeu ainda na guerra que traria muitas marcas caso sobrevivesse à Guiné, tem uma explicação, a de não reviver algumas memórias: “Não vejo vantagem nenhuma nisso. Se vivemos aquilo lá, vamos voltar a viver porquê?”. Ao mesmo tempo, admite que não sabe porque é que não consegue falar de algumas coisas. Talvez porque tenha começado esse longo silêncio ainda por lá e o tenha continuado quando voltou, sozinho, a casa e quis proteger os pais, que já tinham sofrido que baste — “a minha mãe andou vestida de preto, a pensar que eu tinha morrido”. O casamento, pouco depois, não mudou nada: nenhuma daquelas histórias era para partilhar com a família. “É meu”, repete, ainda que admita que nada daquilo lhe sai da cabeça e acabe por reviver todos os episódios, vezes sem conta, às vezes a propósito de coisa nenhuma, como um almoço ou qualquer outra coisa que lhe aconteça no dia a dia.

Trauma de guerra? Garante que não tem, para logo de seguida contar que reconhece pelo menos um dos sintomas de stress pós traumático: antes era um jovem “tremendamente calmo”, que se enervava com pouco, e agora “explode” à mínima contrariedade. “Qualquer coisa que me corra mal, expludo logo, coisa em que eu não era assim.” Dá, até, um exemplo: “Estamos a jogar snooker os dois, por exemplo, e faz uma asneira. Eu disparo logo. Qualquer coisa que nos contrarie, é uma chatice“.

O “nos”, no plural, talvez se explique por acreditar que os colegas com quem se encontra várias vezes por ano, nos almoços da tropa — alguns com os antigos prisioneiros libertados pela Operação Mar Verde — passem pelo mesmo. Mas não será, seguramente, porque o dizem uns aos outros. “Do problema pessoal ninguém fala, é só do convívio, das asneiras, das burrices que se fizeram lá”, clarifica. No seu caso, diz, talvez seja melhor assim. Prefere contar como mandou “duas ou três bazucas para a bolanha” — um campo de arroz na Guiné — “para ver levantar os pássaros todos pequeninos”: “Os que eram vermelhos eram todos vermelhos, os que eram azuis eram todos azuis, levantavam todos ao mesmo tempo, parecia o arco-íris, era uma coisa bonita”. Do resto, é melhor não falar: “Se eu fosse falar de certas coisas, chorava que parecia um puto”.

[Veja aqui excertos da entrevista a João Neto Vaz sobre as marcas da guerra]

“Não haverá gajo que não venha de lá, ou com um sentimento de saudade por certas coisas, ou de revolta contra ele próprio”

Ao todo, João Neto Vaz, filho de uma doméstica e de um negociante de lãs que na década de 1940 se fixou na zona de Torres Novas, passou quatro anos na Guiné, na guerra.

Quando finalmente regressou, um dos 26 militares portugueses libertados pela Mar Verde, não tinha ninguém à espera. Os pais, que tinham chegado a dá-lo como morto e a mandar rezar uma missa pela sua alma, depois de ter sido feito prisioneiro e antes de ter conseguido dizer a um dos irmãos que “afinal ainda cá andava”, tinham emigrado.

Na altura, tinha 25 anos. Ainda foi ter com eles a França, mas não gostou. E a seguir tentou o Luxemburgo, onde até conseguiu trabalho como intérprete, numa fábrica, mas não casa para arrendar. “São uns racistas do caneco”, continua a acusar.

Não seria só isso: a maior parte dos emigrantes, diz, até pode ter dinheiro — “Mas não tem vida vivida”. E depois de quatro anos de guerra, com várias passagens pela prisão e uma semana de fuga pelo mato da Guiné Conacri, na companhia de António Lobato e de Júlio Rosa, João Neto Vaz não estava ainda preparado para assentar e pôr de parte a aventura. Ainda para mais, brinca, “na altura era um gajo jeitoso”.

Tinha um irmão a viver nos Estados Unidos. Arranjou trabalho como “motor man” num navio grego, ancorado em Antuérpia, e apanhou boleia até Detroit, no Michigan. Apesar de em terra, tinha de continuar a trabalhar, por turnos: o combinado era cumprir quatro horas e folgar as oito seguintes. Saiu no primeiro dia, para conhecer a cidade e só apareceu uma semana depois. “Quando voltámos para a Europa já vinha despedido”, volta a gargalhar.

De regresso a Portugal, conheceu finalmente a mulher, assentou e, seguindo a máxima imposta pelo pai, que não queria que os filhos tivessem patrões, ainda esteve empregado na Lisnave, mas foi depois experimentando vários negócios, até acabar na importação e distribuição de batatas, empresa que entretanto passou aos dois filhos.

"Falar é complicado. Mas quantas horas eu passo nisso? Quantas horas? Quer queiras quer não, não haverá gajo nenhum que não venha de lá ou com um sentimento de saudade por certas coisas, ou de revolta contra ele próprio"
João Neto Vaz, ex-combatente na Guiné

O mais velho, revela, é afilhado de Guilherme Alpoim Calvão, o homem que arquitetou a operação militar secreta que o resgatou, em novembro de 1970. Convidou-o, explica, exatamente para agradecer o facto de o ter libertado, não se conheciam de parte alguma, mas mais tarde acabaram até por se tornar amigos. “Na altura morava na Cruz de Pau, que é relativamente perto do Alfeite, onde o Alpoim Calvão esteve muito tempo. Encontrámo-nos em vários casamentos de putos que tinham estado com ele lá. Era excecional aquele homem…”

Só muitos anos depois é que voltou para o Covão do Coelho, a aldeia onde fez a escola primária, e que, no inverno de 1970, à falta da família, o recebeu com festa — e um muito generoso peditório feito na missa. “Foram 2 contos e 600! Na altura, ganhava-se 20 escudos por dia a trabalhar de sol a sol”, ri-se.

Desde que enviuvou, João Neto Vaz passa grande parte dos dias sozinho, na casa onde cresceu, preso ao passado e ao que viveu naqueles anos de guerra; tem no almoço anual de ex-combatentes um balão de oxigénio que vai enchendo com as histórias desses tempos, só as boas, que do resto não se fala — só se pensa.

“Falar é complicado. Mas quantas horas eu passo nisso? Quantas horas? Quer queiras quer não, não haverá gajo nenhum que não venha de lá ou com um sentimento de saudade por certas coisas, ou de revolta contra ele próprio”, suspira, uma última vez.

Agradecimento: Museu Municipal de Ourém

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