Esteve toda a vida “confortável” em Moscovo, onde geria um dos maiores jornais independentes da Rússia. Kirill Martynov é o editor-chefe do jornal Novaya Gazeta e é visto pelo Kremlin como um “inimigo”. Quando a guerra na Ucrânia começou — e com a perseguição mais apertada aos meios de comunicação sociais independentes —, o professor universitário e jornalista teve de fugir para Riga, na Letónia, onde diz que “vê amigos mais frequentemente” que na capital russa. Sobre a comunicação social russa estatal, atira: é uma “competição de idiotas” para mostrar quem é “mais leal” ao Kremlin.
Com cerca de um milhão de leitores que todos os meses visitam o site do jornal, a redação do Novaya Gazeta teve de se mudar para a capital da Letónia, após Kirill Martynov ter chegado à conclusão de que havia um “risco real” de os funcionários poderem sofrer represálias por parte das agências de censura estatais. “Não era só jornalistas, qualquer pessoa que fizesse contabilidade no jornal podia ser alvo de um processo criminal”, destaca, em declarações ao Observador, à margem de um encontro com jornalistas no Parlamento Europeu, em Estrasburgo.
“Arriscamos a vida e não há sequer jornal.” Media russos debaixo de fogo
Ainda assim, a publicação continua a cobrir o que se passa na Rússia, dado possuir uma rede de jornalistas espalhados pelo território russo. “Cobrimos tudo desde que estejamos lá de forma presencial”, assinala o editor-chefe, salientando que alguns “trabalham de forma anónima”, enquanto “outros assinam as peças orgulhosamente”. “É como um thriller policial de pouca qualidade”, descreve Kirill Martynov sobre o funcionamento da publicação, garantindo que existem “canais seguros de comunicação” que permitem aos jornalistas que permanecem na Rússia não serem rastreados.
Por causa da política de censura que existe na Rússia, o site do Novaya Gazeta está bloqueado no país, o que acaba por comprometer a circulação de informação. No entanto, Kirill Martynov estabelece outras prioridades. “Existem muitos falantes de russo na União Europeia”, aponta, realçando a importância de aquele público ter à sua disposição um órgão “pró-europeu na língua russa”.
A Letónia, por exemplo, é um dos países em que 20% da sua população tem como língua materna o russo. Embora a minoria russa tenha uma opinião positiva sobre a Rússia — “veem-na como a terra prometida” —, Kirill Martynov sinaliza que se constituiu um “desafio” apresentar-lhes “diferentes perspetivas da propaganda estatal”.
Esta foi uma das razões para o Novaya Gazeta ter ido para Riga — mas não foi a única. “Já tínhamos boas relações com a Letónia antes da guerra”, diz Kirill Martynov, que sublinha que as autoridades letãs “gostam da ideia de serem a terra da liberdade de expressão no Leste da Europa”. Além disso, o país “não fica longe da Rússia”, o que permite cobrir assuntos transfronteiriços.
Televisão russa é uma “competição de idiotas”
Reduzindo os órgãos de comunicação social russos a veículos de propaganda do Kremlin, Kirill Martynov caracteriza os programas da televisão estatal russa, em particular os talk shows em que vários comentadores dão a sua opinião sobre a invasão da Ucrânia, como uma “competição de idiotas”.
“Se estamos numa ditadura, temos um tipo de competição na política de quem é mais leal ao ditador para ter algum sucesso”, explica o editor-chefe do Novaya Gazeta, acrescentando que é vital que quem tem intervenções públicas alinhe com o discurso do Presidente russo, Vladimir Putin, até como prova pessoal de que não representa um “perigo” para o regime.
Um dos exemplos dado por Kirill Martynov é do ex-Presidente russo e atual vice-presidente do Conselho de Segurança russo, Dmitri Medvedev. “Ele, enquanto chefe de Estado, era liberal. Agora, usa uma retórica dura, porque tem medo de se tornar um alvo”. Medvedev “só quer estar a salvo”, vinca o jornalista — e para isso é preciso demonstrar que “odeia o Ocidente”.
Estes talk shows, em que repetidas vezes os comentadores fazem ameaças — algumas envolvendo armas nucleares — aos países ocidentais servem “para consumo interno”, assinala Kirill Martynov, que indica que, desde a anexação da Crimeia em 2014, esta propaganda agressiva focou-se nas questões externas e definiu novos alvos. O Kremlin precisa de “apresentar informação diária [de que a Rússia] é a mais forte, de que não teme nada, que o Ocidente vai perder”.
It's Sunday night in Russia which means that state TV's Dmitry Kiselyov is talking about Russia using its nukes
This time, with the help of a terrifying cartoon, he claims that "one Sarmat missile is enough to sink the British Isles" (with subs) pic.twitter.com/NqbQfkm6rX
— Francis Scarr (@francis_scarr) May 1, 2022
“A propaganda é mortífera”, declara Kirill Martynov, detalhando que, na Rússia, não existem “instituições políticas nem deputados” da oposição que sejam abertamente contra a guerra. Isto faz com que persista um discurso único — e todas as versões que o contrariem não tenham qualquer mediatismo.
Além disso, a propaganda tem também como intuito fazer as pessoas acreditar que a Rússia é um “local seguro”, que “está tudo bem” e que a “operação na Ucrânia apenas atinge alvos militares”, frisa o jornalista russo. A população sente-se, por conseguinte, “normal” e adota uma postura indiferente perante os assuntos externos.
O futuro da Rússia? “É impossível recuperar”
Sobre o desfecho no conflito na Ucrânia, Kirill Martynov considera que o dano que a invasão da Ucrânia provocou no prestígio da Rússia será “impossível recuperar”. Vai ser ainda muito difícil “quebrar a ligação do país com o regime de Vladimir Putin”.
“Vai demorar décadas até normalizar relações” com outros países, vaticina o editor-chefe do Novaya Gazeta, que apenas acredita, num primeiro momento, só será possível restabelecer algumas ligações culturais. Colocando em cima da mesa o cenário do fim da Federação Russa enquanto Estado-nação, Kirill Martynov especula que, se a Rússia perder a guerra, uma das consequências possa ser a sua desintegração. Algo que, refere, levanta outros problemas, principalmente no que diz respeito ao facto de várias regiões possuírem armas nucleares.
Questionado sobre se os russos sentem — ou poderão vir a sentir — algum tipo de culpa por aquilo que aconteceu na Ucrânia, Kirill Martynov afirma que, no seu caso, sente apenas “responsabilidade”, não se culpabilizando. “O que acontece na Rússia foi uma situação em que as pessoas preferiram viver uma vida normal, não se interessavam por política. E, agora, sem darmos por isso, houve uma invasão”, remata.
[O Observador viajou a convite do Parlamento Europeu]