José Manuel Pureza escolheu uma música de Paco de Lucía como sobremesa do programa Vichyssoise, da Rádio Observador lembrando que o músico foi alguém que “respeitou a tradição, desobedecendo”. Ora, como dirigente do Bloco de Esquerda, Pureza diz que o partido está pouco agarrado à tradição criada em 2015 de viabilizar todos os orçamentos e diz que — se o governo continuar a colocar dinheiro no Novo Banco e não avançar com as alterações à lei laboral propostas — pode não haver orçamento aprovado. Não está, por isso, fora de hipótese desobedecer. E nesse caso, diz que não há nenhuma crise política, já que “não há problema” em o país começar 2021 com “duodécimos“. Admite que a altura é excecional e exige consensos, mas argumenta que o governo é que devia ter consciência disso e esforçar-se mais por um acordo.
O Bloco mostrou-se disponível para negociar medidas concretas do Orçamento para 2021 mas não para assinar acordo escrito de legislatura. Não há pontes suficientes com o Governo para os anos seguintes?
O que se passa é que um prazo dilatado dilui aquilo que é importante decidir agora. Nós estamos numa circunstância muito especial, que é uma crise avassaladora que precisa de respostas imediatas e essas são agora e têm projeção para o futuro. Não nos enganemos sobre a necessidade de medidas acordadas, elas têm de ser para responder corajosamente à crise social que está aí e naturalmente esse conjunto deve ter sequência mais adiante numa linha de continuidade. Mas a prioridade é evidentemente com o agora.
Há pontes de entendimento suficientes com o Governo para os anos que aí vêm a pensar além do curto prazo e deste Orçamento do Estado?
O Governo tem dado sinais de querer adotar uma política de continuidade em relação a uma grande indefinição nas medidas que são adotadas como essenciais. Quando falamos de questões tão importantes como novas formas ou reforço da proteção social dos que ficaram numa situação desesperada ou de alterações substanciais à legislação do trabalho para retirar dela a penalização introduzida pela troika, quando falamos de políticas salariais e vemos que o Governo faz mensagens que são ambivalentes, não sou capaz de fazer a contabilidade da existência de mais ou de menos pontos de convergência. Creio que é muito importante negociar até à última, negociar o que tem de ser negociado mas depois tomar as decisões que temos de tomar.
Não consegue fazer uma avaliação dos últimos anos e ver se aquilo que se fez consegue ter influência no Orçamento do Estado para este ano?
Consigo na medida em que se fez um caminho importante mas tímido. Em muitos momento em que a situação social exigia passos mais firmes dados pela governação, esses passos não foram dados. Avalio positivamente a experiência de acordos parlamentares à esquerda para se fazer um caminho de regresso de alguns dos direitos cortados e fortalecimento do mundo do trabalho, mas sou muito sensível à realidade de num momento chave e perante circunstância fundamentais o Governo não ter querido dar passos importantes.
Mas falta vontade política para discutir algumas coisas? Porque é que o BE não dá uma resposta simples e clara sobre este acordo mais duradouro e se ele é necessário ou não para garantir a tal estabilidade política?
A situação de crise em que estamos coloca a questão em termos novos, onde o imediato é absolutamente premente. A nossa prioridade vai para aí.
Isso inviabiliza um acordo mais logo?
Não, pelo contrário, se houver uma capacidade de formular medidas agora que sejam efetivamente capazes de responder às necessidades mais urgentes em termos de trabalho e de proteção social e de Serviço Nacional de Saúde e outros serviços públicos, isso tem de ser continuado. Isso gera uma dinâmica que vai exigir uma continuidade dessas transformaçõess mais à frente e, sim senhor, nessa altura haverá continuidade num acordo ou num conjunto de entendimentos a mais longo prazo. Mas o que é preciso é já haver sinais muito concretos de que há um caminho a fazer.
Fala nas leis laborais como uma condição base para o BE estar ou não neste barco. Não estão no OE mas são condição, é assim?
Sim, há um conjunto de alterações da lei laboral que são essenciais para uma resposta acertada à circunstância em que estamos a viver.
Se houver algum caminho feito nesse sentido, o BE está condenado a aprovar o OE para 2021.
Depende do que for esse caminho.
Em relação ao Novo Banco, também já fizeram depender a aprovação de uma nova auditoria. Isso também é uma linha vermelha?
Ninguém compreende, diante do que é o escândalo público da situação do Novo Banco, com injeções de capital permanentemente exigidas ao erário público e a todos, que não se dê uma alteração essencial do que tem sido a atitude do Estado e do Governo em especial. O país olha para o Novo Banco, quer lhe chame ou não linha vermelha, e entende que essa é uma questão absolutamente prioritária.
É uma questão que pode inquinar as negociações do OE deste ano?
Acho que inquina é a situação do país. Estas injeções de capital milionárias permanentemente repetidas e já anunciadas novas para um futuro próximo, isso inquina a situação do país, dos serviços públicos e das políticas sociais. Não podemos aceitar que haja essa deterioração daquilo são as respostas necessárias por causa de injeções de capital para limpar o balanço de um banco que foi objeto de cambalachos.
E o Bloco de Esquerda nesse caso está disponível para não aprovar o Orçamento se for necessário?
O Bloco tem dito com clareza que a maneira como se formula a questão do Novo Banco a partir da governação é decisiva para o país. Não é uma questão de jogo político, de saber se se aprova o OE ou não se aprova, como se fosse uma frivolidade. Não é isso. É olhar para este caso, e para outros, como decisivo para o que vai ser a nossa vida coletiva num momento em que a mobilização de todos os recursos é necessária para dar resposta à crise.
Se a alternativa for uma crise política, não havendo Orçamento…
Mas porque é que há de haver uma crise política? Porquê?
Se o PS ficar sozinho não há uma crise política?
Porque é que tem de haver?
Porque não há maioria na AR para aprovar documentos fundamentais para a governação.
E depois? E então? Não haver um Orçamento do Estado por força de uma qualquer teimosia por parte do Governo que não quer aceder a estas questões essenciais, há uma crise política porquê? A governação do país pode continuar exatamente, sem nenhum problema, com duodécimos…
Em duodécimos?
Com duodécimos, sim, qual é o problema?
Isso não é um problema para um país em crise? Não estamos numa situação normal de um orçamento feito noutro contexto político…
A dramatização da crise política foi feita aqui há tempos, já foi feita várias vezes… O Presidente da República deu a resposta que tinha de dar e mostrou a artificialidade dessa dessa crise política. Não me vou concentrar em cenários hipotéticos para a frente. Nós estamos firmemente empenhados em conseguir uma boa resposta por parte do Orçamento do Estado. E até ao último momento faremos tudo o que temos a fazer para que haja um bom Orçamento do Estado para o país, para que não haja nem crise política nem cenário de crise política.
Isto de só se saber no último momento, de estarmos até à última sem saber se os orçamentos vão ser aprovados ou não, ainda por cima numa altura de pandemia, de crise económica e social e numa altura em que vai chegar uma grande quantia de dinheiro de Bruxelas para gerir nos próximos anos, o BE não entende que é preciso mais garantias de estabilidade?
Acho, acho que é exatamente isso que devia acontecer.
E as negociações do Orçamento do Estado desta forma tão periclitante não prejudicam essa estabilidade?
Claro que já devia haver um conjunto de sinais por parte de quem tem de apresentar e defender o Orçamento do Estado no sentido de garantir que vai ao encontro daquilo que são questões essenciais.
Ainda não tiveram sinais da parte do Governo?
Conhece-os? Eu não conheço.
O secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, Duarte Cordeiro, ainda esta semana dizia que o Governo está a fazer “um enorme esforço de convergência”. O BE não viu nada, é isso?
Até agora o que conhecemos exige muito mais trabalho de negociação, de elaboração de políticas, do que aquilo que poderá eventualmente estar na cabeça do secretário de Estado Duarte Cordeiro. Não sei.
O número de casos de Covid-19 em Portugal tem aumentado para valores de abril e maio, e tudo indica que pode aumentar ainda mais. Admitia um novo confinamento ou também diz, como António Costa, que isso nunca porque o país não aguenta?
Das poucas coisas que aprendemos definitivamente com esta crise pandémica é que qualquer afirmação perentória é desaconselhável. Porque a instabilidade do discurso, do conhecimento, da política, é um dado. Portanto, a única coisa que posso dizer seriamente é que se deve fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para evitar formas de contração da atividade económica e da própria atividade social, da vida das pessoas. porque isto não tem só impacto na economia, que é gigantesco, mas também na sociabilidade e nas próprias liberdades, que não é coisa pouca. Devemos ter toda a atenção no sentido de evitar esses passos restritivos, mas espero que haja condições para que isso possa ser abordado dessa maneira.
Estamos já perto do final desta conversa, falamos aqui de um tema que gerou muita polémica na Assembleia da República. Teme que um referendo à eutanásia possa travar o processo na especialidade depois da aprovação no Parlamento da proposta para a legalização?
O debate sobre a convocatória de um referendo vai-se realizar em breve na Assembleia da República. Ontem mesmo foram ouvidos os representantes dos proponentes da convocatória do referendo e, portanto, a breve trecho haverá condições para que isso aconteça. Não depende dos partidos, depende do agendamento proposto pelo presidente da Assembleia. Esse debate pode ser feito em breve e que o faremos com toda a serenidade, como aliás a questão exige. No que diz respeito à substância das coisas, eu lembro apenas isto: os proponentes do referendo disseram, justiça lhes seja feita, que não concordam com um referendo nesta matéria, mas que o fazem para travar um processo legislativo. No fundo foi isto que foi dito e de maneira franca. Portanto, como é sabido, o Bloco de Esquerda tem estado empenhado em que haja uma lei prudente, determinada, que dê à sociedade portuguesa todas as garantias que é possível dar de rigor. E, por isso mesmo, procuraremos avançar com o processo legislativo que está a ser feito. Agora, há uma coisa que me parece evidente: a única forma de garantir uma lei que seja prudente, equilibrada, sensata, rigorosa, é que isso aconteça no âmbito parlamentar. Um referendo a esta matéria, como tudo o que se prende com direitos e liberdades fundamentais, estreita a decisão num sim ou num não que são totalmente desprovidos daquelas cautelas e daquela complexidade que uma situação destas tem.
Não temos tempo para discutir uma questão tão complexa. Passamos para as Presidenciais. Que novidade traz Marisa Matias que já há 5 anos concorreu?
A novidade que Marisa Matias traz para estar disputa presidencial é a sua vida. Essa novidade de um empenhamento que é firme na defesa dos direitos e na defesa da justiça na economia. E essa é uma novidade permanente porque ela precisa de ser afirmada a qualquer momento. E creio que a Marisa Matias já disse na apresentação da sua intenção de se candidatar que o confronto que quer fazer é um confronto que não faz simetria com a extrema-direita porque é dar à extrema-direita o que ela não merece. É dar um confronto quem tem perante as questões essenciais da nossa vida, que tem a ver com serviços públicos, com o mundo do trabalho, tem a ver com as políticas do cuidado, num confronto de quem tem tido uma Presidência da República marcada por escolhas que contrastam com aquelas que Marisa Matias faz.
Não teme divisão do eleitorado que até pode favorecer um segundo lugar de André Ventura?
Eu creio que é o contrário. Marisa Matias traz para esta disputa presidencial mobilização de muita gente que, de outra forma, poderia ficar sem uma representação nesta disputa presidencial. Portanto, creio que Marisa Matias acrescenta. Multiplica. Não divide.
[Entramos na fase do carne ou peixe, em que o convidado tem de escolher entre duas opções]
Preferia ser ministro num governo de António Costa ou num governo de Pedro Nuno Santos?
Preferia que houvesse um governo que me entusiasmasse a ser ministro.
Quem precisava mais de um acto de contrição: Rui Rio ou Pedro Passos Coelho?
Precisamos todos de atos de contrição. Qualquer deles precisa de imensos atos de contrição face às políticas que tem proposto para o país.
Preferia ser ministro da Presidência de um governo de Catarina Martins ou chefe da casa civil da Presidente Marisa Matias?
Ficaria muito bem em qualquer dos casos. Seria uma escolha muito difícil.
Preferia o Chega com mais deputados que o BE numas eleições legislativas ou André Ventura à frente de Marisa Matias nas Presidenciais?
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