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José Maria Ricciardi revela pela primeira vez as várias conversas que teve com Ricardo Salgado entre 2013 e 2014, no auge da crise no Grupo Espírito Santo que levaria à resolução do Banco Espírito Santo (BES) em agosto de 2014. Numa entrevista exclusiva ao Observador, Ricciardi conta mesmo que o primo o convidou para jantar em 2014 e, a sós, perguntou-lhe “o que é que queria”, em termos pessoais, para não denunciar tudo o que sabia sobre a gestão do BES e do GES.
O banqueiro garante que não ficou “surpreendido” com a última condenação de Ricardo Salgado — pena de prisão de 8 anos por três crimes de abuso de confiança, por se ter apropriado de mais de 10 milhões de euros de fundos do GES. “Não me parecia possível que uma pessoa roubasse a sua própria família. Mas depois, com o tempo que foi passando, deixei de ter qualquer espécie de dúvida sobre isso”.
José Maria Riccardi não sabe se o primo tem a doença de Alzheimer — que a defesa de Ricardo Salgado está a alegar na justiça com o objetivo de conseguir o arquivamento de todos os processos que visam a gestão do ex-líder do BES. Mas assegura que “não lhe deseja mal nenhum” e é muito pragmático: se o colégio de peritos do Instituto de Medicinal Legal determinar que Salgado padece daquela doença degenerativa num estágio avançado, então “não deve ser preso”, por muito que se tenha “uma perceção de que não foi feita justiça. ter preso alguém que não sabe quem é, não é humano, não adianta nada”.
Numa entrevista em que se abordou igualmente a atualidade económica, nomeadamente a eficácia da política monetária do Banco Central Europeu de combate à inflação, o banqueiro revela ainda o seu “sonho” de conseguir abrir um novo banco com a marca “Espírito Santo” nos próximos três anos.
O ex-líder do BES Investimento é o único membro da família Espírito Santo que pertencia à administração do BES a quem o Banco de Portugal nunca retirou o estatuto de idoneidade, sendo apenas testemunha em todos os processos criminais que visam a gestão de Ricardo Salgado no GES e no BES.
“Não me parecia possível que alguém roubasse a sua própria família”
O caso mais avançado do processo BES, e que apenas tem um recurso pendente no Tribunal Constitucional, prende-se com uma condenação de Ricardo Salgado a uma pena de prisão efetiva por 8 anos por três crimes de abuso de confiança. Na prática — e esses factos já não podem ser contestados — a justiça deu como provado que o seu primo se apropriou ilicitamente de 10 milhões de euros de fundos do Grupo Espírito Santo. Ficou surpreendido?
Não.
Porquê?
Porque com o tempo que foi passando, entre 2013 e depois de 2014, apercebi-me de algumas coisas. Mas nunca nada disto, não é?
Mas desconfiava que o Ricardo Salgado roubava o próprio banco?
Não me parecia possível que uma pessoa roubasse a sua própria família. Mas depois, com o tempo que foi passando, deixei de ter qualquer espécie de dúvida sobre isso.
Portanto não ficou surpreendido que tivesse sido provado que Ricardo Salgado roubou a sua própria família?
Não, não fiquei.
Foi a primeira pessoa da família a revoltar-se contra a liderança de Ricardo Salgado e tem colaborado com a justiça como testemunha. Quando é que percebeu que a gestão do seu primo estava a falsificar a contabilidade do GES e a dívida do grupo estava descontrolada?
Foi em dezembro de 2013. O Banco de Portugal tinha mandado fazer um ETRIC II [auditoria especial que analisou o balanço dos principais grupos económicos a quem os bancos concediam crédito], que incluiu o Grupo Espírito Santo (GES). Constitui-se uma equipa interna com várias pessoas, nomeadamente o dr. Joaquim Goes [ex-administrador do BES com o pelouro do risco]. E, a certa altura, percebeu-se que o passivo das empresas, das holdings do GES, era muito superior ao que estava registado.
Ou seja, a contabilidade dessas holdings não era real?
Ainda se tentou vir com uma conversa, e isso está nos tribunais, a dizer que faltavam um conjunto de ativos que estavam em África, mas que não estavam registados, coisa que nunca acreditei.
Os famosos ativos pela aquisição da Escom por parte da Sonangol e ativos imobiliários em África?
Foi nessa altura que, pela primeira vez, falei sobre este assunto com o célebre comissaire aux comptes [espécie de contabilista com poderes reforçados das holdings do GES no Luxemburgo]. O dr. Machado da Cruz disse-me que, de facto, as contas estavam falsificadas.
E foi aí que decidiu falar com o seu primo e também no próprio Conselho Superior da família Espírito Santo e denunciar essa situação?
Isso valeu-me uma tentativa de demissão de todos os meus cargos por justa causa — desde os meus cargos no Grupo Espírito Santo, aos do BES e do BES Investimento. Isso não se concretizou porque disse-lhe [a Ricardo Salgado] que seria obrigado a falar publicamente de algumas coisas que sabia. Isto foi em novembro de 2013 e, nessa altura, ainda não sabia do tema das contas [falsificadas], mas sabia de outras coisas. E ele [Ricardo Salgado] aí recuou.
“Salgado andava a comprar maciçamente ações da EDP”
Se lhe fosse possível regressar ao período 2007/2014, o que teria feito de forma diferente? Teria falado mais cedo no Conselho Superior? Teria dito algo diferente ao seu primo?
Se tivesse sabido de alguma coisa mais cedo é óbvio que teria feito o mesmo: teria comunicado ao Banco de Portugal, cumprindo o dever de diligência ao qual qualquer administrador de um banco está obrigado. Só em 2012 é que comecei a desconfiar do que se passava. Quando fui constituído arguido, juntamente com o dr. Jorge Tomé, por causa do processo de privatização da REN…
No processo de privatização da EDP?
Nessa altura…
A suspeita da investigação era a de que Ricardo Salgado estava a comprar ações da EDP quando o BES Investimento estava a assessorar a empresa China Three Gorges no processo de privatização da EDP?
O meu grande objetivo era ganhar o processo de privatização. E, nessa altura, nas conversas que tive com os diferentes procuradores, vim a descobrir que enquanto eu ia informando o dr. Ricardo Salgado sobre o intervalo de preços que nós recomendávamos ao nosso cliente [a empresa China Three Gorges, que tinha de apresentar propostas do preço por ação para ganhar a privatização], o dr. Salgado estava a comprar maciçamente, em conjunto com outras pessoas, ações da EDP. Foi aí que tive o primeiro grande choque.
Falou com Ricardo Salgado nessa altura?
Se falei com ele? Falei, devo ter falado… já foi há muitos anos, mas acho que falei.
Recorda-se de alguma conversa particular que teve com Ricardo Salgado nesse período, antes de se afastarem definitivamente, que o tenha marcado? O que é que ele lhe disse quando começou a denunciar as suas práticas?
Não me agrada falar destas coisas, mas posso dizer que, em 2014, fui convidado para ir jantar a casa dele, com a minha mulher. Um jantar em que só estava ele e a mulher dele [Maria João Bastos Salgado] — com uma simpatia muito fora de vulgar, que não era compatível com o que já se passava anteriormente. No fim do jantar, ele levou-me para o escritório e tentou… não sei que termo devo utilizar…
Diga o que pensou.
Para não dizer de outra forma, perguntou-me o que é que eu queria. E ficou muito espantado porque a minha resposta foi que eu queria que me aumentassem mais o capital do BES Investimento porque era o futuro do GES e não era possível o futuro ser o banco comercial [o BES, a banca de retalho] da forma que estava. Ele ficou perplexo.
O sentido da pergunta era o que é que queria para si, pessoalmente, é isso?
Eu penso que sim. Mas quero dizer aqui uma coisa que me parece muito importante. Quando o Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa foi nacionalizado em 1975, o presidente era o Dr. Manuel Ricardo Espírito Santo, que infelizmente faleceu. O banco tinha 23% de quota de mercado em Portugal e era o maior banco privado, porque o BES tinha-se fundido com o Comercial de Lisboa do dr. Queiroz Pereira. Quando, no tempo do professor Cavaco Silva, se dá o processo de privatização e nós recompramos, em conjunto com o Crédit Agricole e outros amigos de sempre, o Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa, o banco tinha 9% quota de mercado. Portanto, a fantástica administração pública do Banco Espírito Santo entre 1975 e 1991/92, fez com que o banco passasse de uma quota de mercado de 23% para 9%. Portanto, qualquer pessoa com alguma visão estratégica entenderia que nós só tínhamos dois caminhos.
Quais eram?
Um era ficarmos com um banco desse tamanho, um banco respeitável e ótimo que iríamos, pouco a pouco ao longo dos anos, com os seus lucros, fazer crescer. Mas que seria um processo lento. A outra possibilidade era ficarmos com um banco maior, mas com uma participação muito mais pequena. Quer dizer, apesar da nossa participação no BES estar em escada, a nossa última holding tinha uma participação de 40 e tal por cento. Ora, vez vez de 40%, poderíamos ter 5% do capital e o presidente poderia ser uma pessoa da nossa família. Isso passava-se noutros bancos, como o Santander da família Botin, mas tinha era um escrutínio completamente diferente. E ainda havia uma terceira hipótese que era desenvolver o banco de investimento, juntando-lhe o wealth management e outras atividades, para se transformar no banco que os franceses chamam de banque d’affaires [um banco de investimento que apoia empresas e não recolhe depósitos junto de particulares]. Foi isso, por exemplo, que a família Rothschild, uma família banqueira, fez há muitos anos quando não tinha dinheiro para um banco comercial.
E o que é que fez Ricardo Salgado?
Não quis fazer uma coisa nem outra. Quis que pôr o banco lá em cima, outra vez com uma quota de mercado semelhante à que tínhamos antes do 25 de abril, e mantendo a nossa participação acionista. E isso era impossível. Era matematicamente impossível. Então, o que é que ele [Ricardo Salgado] fez? ‘Subiu’ o endividamento do grupo, de uma forma escondida, para as nossas holdings. Depois, para financiar esse endividamento, fazia subir o dinheiro para a nossa holding principal, para fazer descer com o dinheiro para os aumentos de capitais. O BES fez, se não estou em erro, 11 ou 12 aumentos de capitais, em que o dinheiro que foi preciso ascendeu a 15 ou 14 mil milhões de euros [para manter a participação acionista da família Espírito Santo]. Portanto, mesmo nós, estando em escada e com a nossa participação, era impossível, absolutamente impossível, manter essa participação [da família Espírito Santo].
O que está a dizer é que esse modelo iria sempre levar, inevitavelmente, a uma gestão fraudulenta?
Podia não conduzir inevitavelmente a uma gestão fraudulenta. Mas levaria pelo menos a um endividamento brutal. E a fraude começa quando se esconde o endividamento. E que levaria sempre um endividamento brutal, levaria.
Já perdoou Ricardo Salgado? “Não pensei nisso a fundo. Mas não lhe desejo mal nenhum”
É impossível fazer as pazes com o seu primo, Ricardo Salgado?
Hoje em dia, por razões pessoais, vejo o mundo de uma maneira diferente. Não sei se seria possível uma reconciliação, ou se ele quereria. Mas não lhe desejo mal nenhum, sinceramente. Tenho pena que ele tenha ido por este caminho — que considero incompreensível. Mas não sou psicólogo. Hoje em dia não desejo mal nenhum ao meu primo.
Já perdoou Ricardo Salgado?
Desculpe?
Se já o perdoou?
[pausa] Não pensei nisso, para ser sincero, muito a fundo. Mas ódios e coisas do género, zero.
Está a ser realizada uma perícia no Instituto de Medicina Legal para aferir se realmente Ricardo Salgado padece da doença de Alzheimer. Acredita que o seu primo está mesmo doente ou as críticas de que está a utilizar este diagnóstico para se furtar à justiça têm razão de ser?
Vou ser absolutamente sincero: não sei. É evidente que, se o que diz o Tribunal da Relação de Lisboa for verdade, [Ricardo Salgado] está furtar-se à verdade da justiça. Mas se não for verdade, só a junta médica do Instituto de Medicina Legal poderá finalmente dizer se ele de facto tem esta doença e num estágio avançado.
Não tem nenhuma informação sobre esta matéria? Não tem contacto com a família mais direta de Ricardo Salgado?
Nenhuma, nenhuma.
Vários penalistas dizem que, se o diagnóstico da doença de Alhzeimer se confirmar, há uma possibilidade de Ricardo Salgado ser efetivamente condenado com trânsito em julgado, mas poderá não ficar preso num estabelecimento prisional. Acha que a perceção da população é a de que se fará igualmente justiça?
Tendencialmente, não. Mas, de facto, se uma pessoa não se consegue vestir e despir sozinha, não consegue comer sozinha, não consegue tomar banho sozinha e se não souber quem é — e recordo-me que isso se passou com o engenheiro José Penedos [arguido do processo Face Oculta] —, então aí acho que, de facto, não há condições para o dr. Ricardo Salgado ser preso.
O engenheiro José Penedos foi preso para cumprir a pena a que foi condenado e 48 horas depois foi libertado pelo Tribunal de Execução de Penas, ficando a cumprir o resto da pena no regime de obrigação de permanência na habitação.
Se for esse o caso, acho que haverá sempre uma sensação que não se fez justiça, mas ter preso alguém que não sabe quem é, não é humano, não adianta nada.
O nosso sistema penal assenta no humanismo e estas questões têm que ser defendidas?
Exatamente.
Mas se não se confirmar por esta junta médica um estágio avançado da doença, concorda que a pena de prisão terá de ser cumprida?
Isso penso que sim. À semelhança de qualquer outro cidadão.
A lei é igual para todos?
Exatamente.
“Consigo perceber a indignação com a lentidão da justiça porque também a sinto”
A resolução do BES foi há mais de nove anos mas os processos criminais arrastam-se em tribunal. Como testemunha, consegue perceber a indignação geral dos lesados do BES com a lentidão da justiça portuguesa?
Consigo, consigo. Completamente. Porque eu próprio também sinto essa indignação. Ainda tenho hoje em dia processos cíveis — porque nos processos criminais e contra-ordenacionais fui completamente ilibado — que me obrigam a ir aos tribunais, ao fim de nove anos, provar a minha inocência. Posso fazer este desabafo porque não fiz batota e não sou rico e, como sabe, os advogados custam dinheiro.
Muito dinheiro.
Estou a falar de mim, mas penso que isto é mau para o país inteiro. E digo, desde já — e não estou aqui a ‘passar manteiga’ — que antes de ter saído a acusação do processo principal do caso BES, tive vários contactos com o Ministério Público (MP) e verifiquei duas coisas: que as pessoas trabalhavam brutalmente — com uma dedicação extraordinária, horas e horas e horas — e tinham falta de gente, falta de peritos financeiros, falta de tudo o que tem a ver com a informática. Portanto, com esta falta de meios — e ainda por cima com a greve dos funcionários judiciais, que se arrasta há mais de um ano, de facto, não é possível a Justiça levar as coisas para a frente.
Existe o perigo de a lei natural da vida se impor primeiro que o trânsito em julgado, como já aconteceu noutros casos, nomeadamente no caso BPN, em que o ex-líder do BPN morreu antes disso acontecer. Acha que o MP é o principal responsável por essa demora ou há um excesso de recursos e de manobras dilatórias?
No caso do processo BES, que conheço melhor, as alegadas fraudes e crimes foram cometidos fora de Portugal, em dez países diferentes — em que uns são mais colaborantes com a justiça portuguesa e outros menos —, com uma engenharia financeira do mais sofisticada que existe…
O Grupo Espírito Santo tinha operações em quatro continentes, é importante recordar isso.
Fazer a acusação do processo principal com os meios que o Ministério Público tem — conseguindo apanhar tudo o que se passou lá fora, em mais de dez países —, não acho que tenha sido feito mau serviço, sinceramente. Agora, o MP devia era ter outros meios.
O problema é que o nosso sistema penal não está preparado para um caso com esta dimensão — a acusação do Universo Espírito Santo é efetivamente o maior processo de sempre da justiça portuguesa. É isso?
O sistema de justiça não está preparado nem para este, nem para outros casos — não tão grandes, mas relativamente grandes. Porque não tem meios.
Isso depois faz com que o tempo médio de trânsito em julgado deste tipo de casos seja sempre superior a 10 anos. O ex-ministro Álvaro Santos Pereira, defendeu, aqui no Observador, numa entrevista em 2019, que as penas de prisão deveriam ser executadas após a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa — que é quando a matéria de facto fica encerrada. Apoiaria uma ideia destas?
Acho que sim, porque isso é o que se passa em vários países. Nos Estados Unidos, uma pessoa vai presa logo após a decisão da primeira instância. No Brasil, isso verifica-se após a decisão da segunda instância.
Na Europa, alguns países também têm essa possibilidade em determinadas circunstâncias.
Sou favorável a uma solução dessas.
O sonho de abrir um banco com a marca Espírito Santo para a “família continuar”
Afirmou em 2020 que queria recuperar o nome “Espírito Santo” e queria tentar erguer um banco novo com essa marca. Qual é o ponto da situação desse projeto?
Estou a tentar realizar esse projeto, é um sonho que tenho. Não é fácil. Queria começar com um banco pequeno para que, depois da minha morte, pudesse continuar a ser desenvolvido pelos colaboradores e alguns membros da família. Tudo para recuperar a credibilidade que tínhamos e que se iniciou em 1869. Essa credibilidade foi perdida e destruída em 15 anos e provocou enormes perdas e prejuízos ao Estado português, aos contribuintes e também aos trabalhadores do banco. Era este o meu sonho: construir uma instituição que fosse suficientemente forte para começar a compensar as famílias e os contribuintes desta perda.
Tem tido boa resposta do mercado?
Sim, os investidores têm dado boas respostas. Até porque nós queremos criar, com algumas nuances, um banco da era digital.
Seria um banco de retalho ou um banco de investimento?
Um banco de retalho, mas já com um nível de digitalização completamente diferente dos atuais bancos do mercado português. O que provocaria, obviamente, um conjunto de custos para os clientes incomparavelmente mais baixo. Estou nessa luta.
Tem um timing na sua cabeça para ver se esse projeto é viável ou não?
Tenho, tenho. Acho que três anos seria o timing. Mas como já disse, é difícil. É difícil.
Seria um BES versão Revolut?
Não bem, não bem. A digitalização pode ser caldeada com alguma banca mais tradicional. Seria um banco bastante digitalizado, mas teria serviços de gestão de wealth management e possivelmente até de banca de investimento. Mas não será um banco 100% digital.
“Existe o risco de estarmos a entrar num círculo vicioso de inflação e juros altos”
Nos anos 90, falava-se muito dos centros de decisão nacional — o Grupo Espírito Santo era mesmo um dos principais defensores dessa ideia. Temia-se muito a invasão da banca espanhola, numa altura em que se podia dizer que havia bancos com capital nacional, como o BES, o BCP e até uma parte do BPI. Em 2023 só temos um banco de capital português, a Caixa Geral de Depósitos (o banco público). Ficamos a perder ou a ganhar?
Acho que ficamos a perder.
Porquê?
Porque os bancos portugueses normalmente têm um conhecimento das empresas portuguesas, dos seus gestores, de toda a sua história mais fina — conhecimento esse que os bancos estrangeiros não têm. Além disso, os bancos espanhóis têm um sistema de decisão de crédito que passa pelas suas sedes e que é um sistema muito mais frio e com muito menos conhecimento das decisões. Se agravarmos isto com o facto de, hoje em dia, qualquer banco ter a possibilidade de pagar aos clientes um depósito a 1% e depositar no Banco Central Europeu (BCE) a 3,5% ou 4%, a situação é ainda mais negativa.
O BCE, desde há muito, considera que seria importante o mercado da banca operar em Portugal, passando por um período de consolidação. O que é que o país e os consumidores tinham a ganhar com isso?
Muito. Porque Portugal, sendo um país com um mercado relativamente pequeno, o facto de ter muitos bancos é bastante mau para os próprios bancos e também para os clientes. Porque não se fazem as economias de escala e, ao não se fazerem as economias de escala — que têm como grande objetivo diminuir os custos —, essa redução de custos não se repercute nos clientes.
A política monetária do BCE de combate à inflação tem estado sob fogo cruzado de muitos economistas e de diversos Estados-membros, da Zona Euro, como Portugal, por exemplo. Tivemos 10 subidas consecutivas da taxa diretora desde julho de 2022. A última verificou-se há pouco tempo. Será esta a última subida da taxa diretora do BCE?
Dependerá dos dados futuros que o BCE venha a ter sobre a inflação. Se se verificar que há uma descida mais estrutural da inflação, será o último aumento da taxa diretora. Se não, poderá não ser o último. Por isso é que a senhora Lagarde [presidente do BCE] não dá garantias.
Considera que podemos vir a ter uma recessão na Zona Euro por causa desta crise?
A Comissão Europeia já disse que não vai haver nenhuma recessão. Agora, há um facto na política monetária do Banco Central Europeu de luta contra a inflação que é um bocadinho discutível. Tive a oportunidade de falar com o senhor governador do Banco de Portugal [Mário Centeno] e ele próprio concordou que era uma inflação do lado da oferta. Ou seja, por causa da guerra e dos efeitos climáticos, da relação da China com os Estados Unidos, etc., tinham-se quebrado muitas linhas de fornecimento para a Europa e para os Estados Unidos. E, portanto, tendo a oferta caído e mantendo-se a procura, os preços começaram a subir. Ora, esta é uma inflação exatamente inversa da habitual, que é uma inflação feita pelo lado da procura e não da oferta. Este tratamento monetário da subida das taxas de juros resulta mais quando temos um pressão do lado da procura. Logo, tenho dúvidas de que esta tenha sido a melhor forma de enfrentar o problema.
Certo é que a inflação tem vindo a descer — chegou a atingir os 10% e já está na ordem dos 5% na zona Euro. A ideia é que, entre 2024 e 2025, se chegue aos 2%.
Mesmo assim continuo pessimista que se chegue a esses 2% nesse período. A área da energia, nomeadamente na área do petróleo e do gás, está outra vez com uma certa pressão. Por outro lado, o facto de existir uma guerra na Europa retirou a possibilidade de haver uma oferta muito maior do petróleo pelo lado da Rússia —e aqui voltamos ao que eu disse anteriormente sobre o problema da oferta.
Acha que estamos aqui a entrar num círculo vicioso em que não conseguimos sair da taxa de inflação alta, elevada?
Exato, exato. Esperemos que não, mas, quer dizer, temos esse risco.
Acredita, por exemplo, que a guerra na Ucrânia pode ter uma paz previsível a médio e longo prazo, no sentido de retirar essa pressão sobre a energia e sobre outros fatores de produção? Espero sinceramente que sim. Antes de mais, quero dizer que sou completamente a favor da Ucrânia e completamente contra a invasão russa — que foi contra todos os tratados internacionais e as regras do direito internacional. Mas há uma coisa que me impressiona muito. Vou utilizar esta palavra, não vejo outra: há uma certa ingenuidade da parte dos Estados Unidos da América e da própria Europa em relação a acreditarem que a Ucrânia vai conseguir expulsar o exército russo do território ucraniano. Infelizmente, não tenho essa opinião. Na melhor das hipóteses, haverá um empate. É verdade que a Rússia não conseguiu tomar toda a Ucrânia, mas na parte onde está parece-me muito difícil — para não dizer impossível — expulsá-la. Portanto, tem que haver aqui outro tipo de solução.
“O país só vai conseguir aumentar os salários com mais investimento e crescimento”
Como tem visto os governos de António Costa desde 2015? Acredita que esta maioria absoluta está a fazer as reformas para o país ser mais competitivo?
Tenho a sensação que não. Não consigo ver, nomeadamente, uma aplicação prática e objetiva do Programa de Recuperação e Resiliência (PRR), por exemplo. Bem sei que é preciso tomar em conta que o Governo teve grandes problemas para resolver, como a pandemia e a guerra, mas acho que se podia estar a verificar mais investimento público e privado. O nosso país só vai conseguir subir os salários com o crescimento da economia privada. Para isso, é preciso que seja feito mais investimento, nomeadamente nas infraestruturas ferroviárias. Quando se diz que esse investimento será feito em bitola ibérica, fico espantadíssimo e absolutamente boquiaberto. Qual a razão para isso, quando a própria Espanha já está a reformar a sua ferrovia em bitola europeia?
Há muitos economistas que dizem que, além da questão do investimento, há mais dois problemas estruturais no nosso país que estão interligados. A produtividade, que é das mais baixas da Europa e que também tem associado um problema de falta de capital. E os salários, sendo certo que o salário médio nacional está cada vez mais próximo do salário mínimo. Que reformas é que o país necessita para os resolver?
Crescimento, crescimento e crescimento. Só com mais investimento é que teremos esse crescimento. E com o aumento da produtividade é que conseguiremos passar a poder pagar salários mais elevados. É, de facto, muito, muito mau para o país, a saída permanente de juventude formada em Portugal para o exterior.
Para termos mais investimento, é necessário ter uma reforma fiscal para as empresas e para as famílias?
Exatamente. Outro dia ouvi que as empresas pagam em média 400 taxas. 400 taxas! Já não é só o problema do que pagam, é o trabalho e a burocracia que está envolvida nisto. Não consigo entender como é que não se consegue acabar com isto e fazer com que as empresas tenham uma vida muito mais facilitada. É evidente que os impostos têm que ser mais competitivos porque os investidores têm à sua disposição outras alternativas e, algumas delas, com certeza com uma oferta de condições muito melhor do que a nossa.
Do lado do Governo ouvimos que se baixarmos os impostos podemos pôr em causa o Estado Social. Isso é um argumento válido?
Não. Não acredito que baixando um pouco o IRC se ponha em causa as valências sociais do país.
Já se baixou no período de 2010 a 2014.
Exatamente. Além disso, essa baixa trará a prazo novo investimento. Se for uma baixa concertada com outros fatores que já falámos aqui, trará novo investimento. Portanto, o crescimento será maior, todas as nossas variáveis ficarão melhores e haverá muito mais condições de subir os salários dos portugueses.