O crescimento económico de 0,3% no quarto trimestre, revelado esta terça-feira pelo INE, elimina o risco de recessão neste inverno mas, dizem os economistas, “esconde” uma realidade em que a subida dos juros e a inflação alta já estão a penalizar o consumo privado. E o crescimento de 6,7% em 2022, que coloca a economia portuguesa 3,3% acima do nível de atividade de 2019, mascara os danos causados pela pandemia – “cicatrizes” que baixaram o crescimento potencial da economia portuguesa.
Num quarto trimestre em que, por exemplo, a economia alemã se contraiu em 0,4%, o Produto Interno Bruto (PIB) de Portugal conseguiu manter o ritmo de crescimento trimestral que trazia do verão – uma expansão de 0,3% que foi, até, melhor do que os 0,2% que o mesmo Instituto Nacional de Estatística (INE) tinha calculado a 31 de janeiro, na sua estimativa rápida.
É uma boa notícia, dizem os economistas ouvidos pelo Observador. “A revisão em alta dos dados indica que a economia portuguesa se aguentou ligeiramente melhor do que o esperado, no final do ano passado”, reconhece Wouter Thierie, economista do banco holandês ING que segue a economia portuguesa a partir de Bruxelas. “Porém, os números do crescimento escondem um enfraquecimento da procura interna” – o que inclui uma evolução do consumo privado “que foi severamente penalizada pela inflação elevada e pelos preços da energia”, diz o especialista ao Observador.
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Os dados do INE mostram uma evolução negativa, de trimestre para trimestre, do consumo das famílias – a quebra de 0,5% é o primeiro valor negativo desde o início de 2021, que ficou marcado pela segunda vaga da pandemia de Covid-19. Nestas “Contas Nacionais Trimestrais”, que apresentam uma análise mais detalhada das várias componentes que formam a economia, o INE indica que a despesa das famílias com os chamados “bens duradouros” caiu 1% e os gastos com bens não duradouros e serviços baixaram 0,4%.
Dentro desta rubrica dos bens não duradouros e serviços estão as despesas com bens alimentares, que caíram 2,3% no quarto trimestre, em comparação com o terceiro. Pedro Braz Teixeira, diretor do gabinete de estudos do Forum para a Competitividade, salienta que esta foi uma quebra da despesa com bens alimentares que ocorreu mesmo tendo este sido um trimestre em que o Governo distribuiu dois pacotes de estímulo para mitigar os impactos da inflação – os 125 euros entregues em outubro a um conjunto alargado de cidadãos e os 240 euros pagos a um número mais restrito de pessoas, antes do Natal.
“Se não tivesse havido estes apoios, a queda teria sido ainda maior“, afirma o economista, referindo-se ao consumo privado e, em particular, às despesas com bens alimentares. Mas Pedro Braz Teixeira socorre-se de uma lição que diz ter aprendido com “os senhores do talho”: “muitas despesas das famílias são mais ou menos fixas, como a renda, a luz, as telecomunicações, mas a alimentação é a componente onde as famílias acabam por ter maior flexibilidade”. Isto é, alguém “pode continuar a alimentar-se mas com produtos mais baratos” – e os dados do INE “mostram-nos que as famílias estão a gastar menos em alimentação“.
Alimentos não-transformados sobem a ritmo superior a 20% neste início de ano
A este desenvolvimento não será alheio o facto de que, como também revelou o INE esta terça-feira, os preços dos bens alimentares continuarem com tendência de subida. Já neste início de ano, em fevereiro, a taxa de inflação desacelerou para 8,25% mas isso deveu-se, sobretudo, a um aumento (homólogo) menos gravoso dos preços dos produtos energéticos, incluindo combustíveis – os produtos alimentares, neste caso os não-transformados, continuam a subir a um ritmo superior a 20%.
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Wouter Thierie destaca que “embora a correção nos preços da energia tenha provocado nas famílias um otimismo cauteloso, bem como nas empresas, antecipamos que o crescimento económico será muito limitado em 2023“. A expectativa do ING é de um crescimento de apenas 0,8% na economia portuguesa, abaixo das novas projeções da Comissão Europeia, que apontam para um crescimento de 1% neste ano (o Governo prevê 1,5%).
É o próprio ministro das Finanças que alerta para este desafio em 2023. Numa audição parlamentar esta terça-feira, 28 de fevereiro, Fernando Medina revela o desafio “de lidarmos com inflação elevada ainda durante o ano de 2023 e com o aumento dos juros que se continuará a fazer sentir e, conjuntamente, as suas implicações ao nível do poder de compra”.
“A pressão sobre o poder de compra, devido à inflação elevada”, vai continuar a penalizar o consumo, corrobora o economista do ING, desde logo porque não é previsível que a subida dos indexantes de crédito dê tréguas. “O BCE vai continuar a subir as taxas de juro nos próximos meses“, diz Wouter Thierie, antecipando que a taxa dos depósitos no BCE, atualmente em 2,5%, deverá subir para os 3,5% até ao verão.
Desde esta terça-feira, porém, os mercados financeiros passaram a prever que a subida não fique por aí e alcance os 4% (até fevereiro de 2024). Esta foi a primeira vez em mais de uma década que os mercados de futuros de taxas de juro descontaram um nível de taxa de juro tão elevado na zona euro, depois de os dados da inflação em Espanha e em França, divulgados ao início da manhã desta terça-feira, terem reforçado a ideia de que o banco central ainda terá várias subidas da taxa de juro pela frente.
A confirmar-se esta continuação da subida dos juros na zona euro, “isto irá afetar os setores mais vulneráveis aos custos de financiamento, como o imobiliário, e também irá contribuir para limitar o investimento empresarial”, diz o economista do ING, acrescentando que é devido ao facto de “não vermos o impacto total das subidas de taxas de juro até ao próximo ano” que “o crescimento no próximo ano também será modesto“. A expectativa do banco holandês é de um crescimento de 1% em 2024.
Exportações (incluindo turismo) passam a valer metade da economia
O ministro das Finanças, Fernando Medina, congratulou-se pelo facto de as exportações terem valido, no quarto trimestre, cerca de metade do PIB português. Foram quase 30,9 mil milhões de euros em riqueza criada através das exportações (de bens e serviços, basicamente turismo), o que compara com o produto total de, aproximadamente, 61,8 mil milhões obtido no quarto trimestre. No conjunto do ano o peso foi igualmente de 50% — 119,75 mil milhões de um PIB total de 239,5 mil milhões.
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Houve um crescimento homólogo, segundo o INE, de 8,1% nas exportações (ainda assim, uma desaceleração face ao aumento de 16,3% no terceiro trimestre e de 25% no segundo trimestre).
Em comparação com 2019, salientou Medina, os dados mostram um aumento da importância das exportações, já que antes da pandemia o peso das exportações na economia era de cerca de 43,5%. Já António Costa Silva, ministro da Economia, tinha sinalizado em meados de janeiro que as exportações estavam “à beira” de atingir o peso de 50% na riqueza gerada pela economia portuguesa.
Porém, no que a comparações com 2019 diz respeito, o professor de Economia Abel Mateus salienta que o discurso político está a esquecer aquilo que era a tendência de crescimento que vinha dos anos anteriores à pandemia. Por outras palavras, embora seja verdade que o produto interno bruto já recuperou o nível de 2019, está muito longe de alcançar aquilo que seria razoável esperar que a economia tivesse crescido (se não fosse a pandemia e as medidas tomadas para a controlar e, agora, os impactos do surto inflacionista e da guerra).
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“O que se costuma comparar é o PIB como estava em 2019 mas quem faz isso esquece que desde essa altura para cá devia ter havido crescimento“, explica Abel Mateus, apontando um cálculo simples: “Se pegarmos na tendência de PIB trimestral, entre janeiro de 2017 até ao quarto trimestre de 2019, e a extrapolarmos até final de 2022 estamos perante um desvio que se traduz numa perda de 23%“.
Abel Mateus calcula que, em termos nominais, esse desvio entre aquilo que a economia deveria ter crescido e aquilo que cresceu, entre finais de 2019 até ao quarto trimestre de 2022, perdeu-se 48,4 mil milhões de produto económico, em termos acumulados nestes três anos. É, diz o especialista, um “sinal das cicatrizes” que ainda perduram na economia.