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A fundação FunLeo nasceu praticamente em paralelo com o Leo, o restaurante de Leonor. Caminham de mãos dadas há quase 15 anos. Foi através dela que conseguiu concretizar a aposta junto das comunidades menos visíveis
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A fundação FunLeo nasceu praticamente em paralelo com o Leo, o restaurante de Leonor. Caminham de mãos dadas há quase 15 anos. Foi através dela que conseguiu concretizar a aposta junto das comunidades menos visíveis

Juan Pablo Gutiérrez

A fundação FunLeo nasceu praticamente em paralelo com o Leo, o restaurante de Leonor. Caminham de mãos dadas há quase 15 anos. Foi através dela que conseguiu concretizar a aposta junto das comunidades menos visíveis

Juan Pablo Gutiérrez

Leonor Espinosa, a nova melhor chef do mundo: “A cozinha não tem de ter género, tem de ter compromisso”

Todos os anos, a par da sua lista de melhores restaurantes, a “The World’s 50 Best Restaurants” escolhe a mulher que mais se destacou no mundo da cozinha. Falámos com a colombiana Leonor Espinosa.

Leonor Espinosa: estás em que parte do Brasil?

Observador: estou em Portugal, em Lisboa.

Leonor Espinosa: Ah! Portugal! Sim! Tenho uma amiga que mora em Cascais e que ainda ontem me disse que estava à procura de um sítio para ir passar uns dias fora porque está um calor tremendo por aí!

Foi com esta pequena confusão que começou a conversa do Observador com Leonor Espinosa, colombiana responsável pelo restaurante Leo, em Bogotá, que foi escolhida pelo The World’s 50 Best Restaurants como a melhor chef feminina do mundo. Se a vida de uma cozinheira já é tudo menos tranquila, por estes dias Leonor andava a mil, daí a confusão entre Brasil e Portugal. Entre pedidos de entrevista, vídeos, fotografias e, claro, o normal trabalho do dia-a-dia no seu restaurante, o descanso era pouco — a prestigiada distinção internacional assim o justificava.

Alegre e amistosa — duas características que destaca como típicas de quem nasce no seu caribe colombiano –, explicou como foi mudar de vida aos 35 anos, trocando o mundo corporativo ligado à publicidade e economia para se entregar à alta cozinha. Mulher, mãe solteira e sem qualquer experiência em cozinha profissional deste nível: assim se lançou Leonor nesta aventura. Por muito que o começo não tenha sido fácil, cresceu, impôs-se e é atualmente um dos pesos pesados do panorama gastronómico mundial, demonstrando a sua criatividade e entrega não só nos pratos que serve, mas também no extenso trabalho de cariz social que desenvolve junto de comunidades indígenas e menos favorecidas da sua Colômbia — contacto que acaba por ser uma das suas principais fontes de inspiração. Explora ingredientes ancestrais da sua cultura, de sementes e frutos da Amazónia a destilados e outras bebidas que já os seus antepassados sorviam.

Esta segunda-feira, 18 de julho, estará em Londres na grande gala de revelação dos The World’s 50 Best Restaurants para subir ao palco e receber formalmente o seu prémio. Servem as linhas que se seguem para a dar a conhecer um pouco melhor.

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Parabéns pelo prémio de melhor chef feminina do mundo. Como foi saber que o 50 Best a tinha escolhido para essa distinção?
Há coisas na vida de que estamos à espera e outras que não. Ainda assim, quando és consciente de quem tu és, do teu trabalho, da tua proposta culinária, a qualquer momento pode “acontecer-te” uma coisa deste género. Neste tipo de prémios costumamos saber tudo uns dias antes do anúncio público porque é sempre preciso fazer uns vídeos, uns artigos, etc,  nunca podes ser apanhado completamente de surpresa. De qualquer forma, é sempre impossível não ficarmos surpreendidos e imensamente felizes quando nos escolhem. Há muitas mulheres no mundo, não tantas na alta cozinha, ainda assim, que estão a fazer um trabalho maravilhoso! Seguramente chegará a sua vez também!

Considera que este tipo de prémios são importantes para destacar o trabalho das poucas mulheres que diz existirem na alta cozinha?
A intenção deste prémio é reconhecer o trabalho de uma mulher na alta cozinha. Somos realmente muito poucas para conseguir vários lugares de relevo neste universo. Noutras plataformas culinárias como a cozinha rural, as cozinhas identitárias ou de infância, o lugar primordial sempre pertenceu à mulher. Ainda assim, há atividades económicas que ao longo da história foram sempre masculinas, como a engenharia civil, pilotos de aviões… Coisas que foram sempre catalogadas como sendo do género masculino, seja por causa da força física que exigiam ou pelo tempo de trabalho muito longo. Acho que podemos dizer que essa divisão de trabalho foi sendo consensual, até certa medida, mas o mundo tem vindo a mudar, felizmente, e há cada vez mais mulheres com objetivos de vida diferentes daqueles que existiam antes. Que a sua prioridade não é apenas criar uma família e ficar em casa, querem outras coisas.

Leonor Espinosa e a filha, Laura Hernández

Felipe Pardo

E como acha que isso se reflete entre as mulheres que têm escolhido a área da alta cozinha?
Cada vez há mais interessadas, que têm uma grande paixão pela área, que lhe dedicam a vida. Acho que o caminho para nós está a ficar cada vez mais aberto. Este prémio, parece-me, realmente reconhece esse esforço, essa dedicação das mulheres que estão a abrir caminho neste meio.

E é também um incentivo?
Sem dúvida. A cozinha não tem de ter género, tem de ter compromisso. Tem de ter uma vocação e uma responsabilidade social. O que é preciso são pessoas, não homens ou mulheres. São precisas pessoas que cozinhem, que sejam apaixonadas por isso e que consigam reinterpretar a realidade culinária aos olhos da natureza, do clima, do terroir. Isso sim é muito importante. É um caminho difícil, mas existe.

A sua vida profissional não começou por esta área. Antes disso passou pela publicidade e a economia até que aos 35 anos deu o salto. Como se fez essa transição?
Estudei numa escola artística dos 12 aos 20 anos e depois fui estudar economia e publicidade. Acabei por entrar no mundo corporativo mas sempre quis ser artista. Na vida, à medida que vamos caminhando, vão aparecendo oportunidades quase divinas. De repente aparece-te algo à frente que te faz pensar “isto pode ser um bom trajeto para mim”. Com a cozinha foi algo assim. De qualquer forma não vejo esta realidade como sendo sinónimo de “eu percorri três caminhos diferentes”, isto porque todos estão ligados, a cozinha é interdisciplinar. É por isso mesmo que ela é tão interessante e enriquecedora. A publicidade, a economia e as artes plásticas (sobretudo compreender as artes plásticas contemporâneas) são muito importantes para o meu trabalho na cozinha. Tudo está unido e dá uma visão muito mais ampla daquilo que deve ser um cozinheiro hoje em dia. Talvez tenha sido isso que me ajudou a perceber que a comida é uma ferramenta social.

Mas já tinha alguma ligação familiar à área da restauração?
Ninguém da minha família tinha restaurantes mas toda a gente, à sua maneira, é cozinheira. Quase todos.

Mas todos gostavam de comer, isso de certeza. Não?
[risos] Claro! Eu sou de uma região conhecida como o caribe colombiano. Nesta zona as pessoas têm uma maneira muito própria de se manifestar. Fazem-no através da música, da comida, da poesia… Somos muito generosos na nossa forma de receber. Abrimos sempre as portas da nossa casa a qualquer um, servimos sempre alguma coisa para comer ou beber. Faz-se sempre comida a mais para poder oferecer a alguém que apareça. Isto é muito característico das pessoas “caribeñas”. E não só das do caribe colombiano mas também das de Porto Rico, Cuba, República Dominicana, Venezuela, Panamá… Temos essa visão da vida porque o ecossistema assim o permite. São coisas muito nossas. Eu venho de uma família assim, onde toda a gente é cozinheira, adoramos receber.

E a transição do mundo corporativo para a cozinha, como aconteceu?
Não foi uma transição, as áreas encaixam-se. A arte relaciona-se com a forma de empratar, por exemplo, que é uma maneira do ator (o cozinheiro) dialogar com o espaço, o território, os ingredientes… A economia também está implícita, não por eu saber ou não gerir o meu negócio, mas sim porque ela é uma ciência onde cabem muitas variáveis que tocam várias áreas da cozinha. A publicidade então nem se fala! Não houve uma transição.

Certo. Mas referia-me à troca física de atividade. Passar de ter um trabalho para ter outro totalmente diferente…
Uma mudança como a que eu fiz aos 35 anos, mãe solteira (quer dizer, divorciada), com uma filha, quando a sociedade à tua volta acha que nessa fase já deves estar a seguir um caminho sólido e claro, custa muito. O meu contexto familiar e de amizades tiveram alguma dificuldade em perceber isto. Foi complicado.

Inaugurou o seu restaurante, Leo, em 2007. Como foi abrir esse espaço?
Antes de abrir passei por outros espaços, a aprender, e aos poucos as pessoas foram-me conhecendo, provando o meu trabalho. Isso permitiu-me ter já algum público quando abri o restaurante. Creio que o meu espaço foi um dos primeiros na Colômbia onde mais se exploraram os ingredientes da cozinha regional e histórica colombiana. Mas a minha proposta, desde o início, foi ter a responsabilidade social num plano principal, desenvolvendo projetos junto de comunidades indígenas e desfavorecidas. Comecei a trabalhar com faixas étnicas colombianas quase invisíveis. Procurar junto deles ingredientes únicos, muito especiais, de forma a que isso melhorasse a sua vida, que gerasse valor, que levasse à criação de pequenos produtores de isto ou aquilo.

Esse trabalho materializou-se na sua fundação, a FunLeo, correto?
A FunLeo nasce praticamente em paralelo com o Leo. Caminhamos de mãos dadas há quase 15 anos. Foi através dela que consegui concretizar estas apostas junto das tais comunidades menos visíveis, com financiamento de organizações internacionais, nacionais e até algumas empresas privadas. Criar esta fundação obrigou-me a estudar muito: o território, a memória, os usos, os costumes.

SIMON BOSCH PHOTOGRAPHY

E esse trabalho fez com que a Leonor utilizasse ingredientes de proveniência indígena, menos conhecidos. Consegue dar alguns exemplos?
Uns 85 a 90% dos ingredientes que utilizo provêm de territórios biodiversos do meu país. Coisas que quase só se conhecem nestas subculturas. Nem a nível nacional são todos conhecidos! Durante demasiado tempo ninguém ligava nenhuma a estes povos e por isso foi ficando muito difícil contactar com eles. Nós demorámos muitos anos até conseguir desenvolver o trabalho conjunto que fazemos hoje não só para melhorar a sua qualidade de vida mas também para dar a conhecer a sua cultura. Reuni toda esta informação e depois foi preciso criar comércio para que se terminasse o ciclo, para que a voz destas pessoas chegasse mais longe. Não se ganha nada em desenvolver projetos junto destas comunidades se não se criar uma cadeia de valor que permita tirá-los do sítio onde estão fechados.

Mas e exemplos específicos desses produtos?
Normalmente há muitas sementes, frutos, peixes, folhas, raízes… Os nossos mares não têm a riqueza que o vosso tem. Não temos lingueirão, não temos percebes… O caribe é de águas quentes por isso a oferta de peixe e marisco é mais limitada. A nossa riqueza está precisamente no tipo de produtos que enumerei, em coisas que ancestralmente foram sempre consumidas por povos indígenas. Espécies como a capivara, o tatu, jacarés, a cuíca [uma espécie de roedor da família dos porcos-da-índia].

E a Leonor trabalha com a sua filha, Laura…
Eu não trabalho para ela nem ela trabalha para mim. Trabalhamos juntas. A Laura tem um mestrado em responsabilidade social e sempre me acompanhou nas minhas viagens pelos “territórios” [Leonor usa esta terminologia para se referir às tais áreas pertencentes a povos indígenas]. Ela já tinha feito um curso de sommellier, quando foi estudar ciência política na Argentina, e isso tudo acabou por se materializar no Leo, nos pairings que ela faz no restaurantes que junta vinhos, destilados e até algumas bebidas ancestrais colombianas. Não posso dizer que não temos conflitos, somos companheiras de trabalho, temos as nossas implicações. Ainda assim, ela é um complemento muito grande ao nosso trabalho. Somos muito amigas e cúmplices.

Quando chegou a pandemia a Leonor estava prestes a mudar o Leo de sítio. Como foi gerir isso?
Economicamente foi uma tragédia para todos. De qualquer forma acredito que este momento que o nosso planeta atravessou fez com que nós, cozinheiros, repensássemos aquilo que é o nosso trabalho. Saíram daqui coisas bonitas: saímos mais originais, mais conscientes do impacto das nossas escolhas… Nem tudo foi mau. Acredito que da mesma forma que a restauração foi dos sectores mais afetados pela pandemia, ela é hoje um dos que mais benefícios e mais rápido se conseguiu reerguer. Tudo isto fez-nos pensar muito sobre qual era, afinal, o nosso caminho. Isso é bonito. Dos momentos difíceis costumam sair coisas muito grandes. Este parece-me ser o caso.

Dos aperitivos ao "cerdo sabanero", sem esquecer o prato de atum e um outro à base de caranguejo. Eis alguns dos pratos da ementa.

Jorge H. González

A Leonor trabalha com muitas comunidades indígenas da mesma forma que o chef brasileiro Alex Atala. Neste momento, as comunidades indígenas do Brasil estão mais em risco que nunca. Acha que o tipo de trabalho que Atala faz junto destes povos, promovendo-os e dando a conhecer o seu conhecimento e ingredientes, pode ser um factor chave para garantir a subsistência destas minorias ameaçadas? E a forma de garantir uma maior inclusão?
O maior problema que tem a Amazónia — principalmente o Brasil — é a desflorestação. Na Colômbia também se sente o impacto disso, numa escala menor, mas com repercussões igualmente negativas. A Amazónia é a última floresta tropical do mundo e isso é um tesouro incalculável. A desflorestação tem o impacto imediato na saúde do nosso planeta — e nossa, obviamente — mas também tem uma influência destrutiva sobre a forma de vida das pessoas que nela habitam. Espécies animais, o homem em si, todos são afectados. No caso das comunidades, isso faz com que haja um anulamento de identidades. São estas comunidades indígenas que detêm a génese do património de países como a Colômbia ou o Brasil. É neles que se guardam tradições e saberes com milhares de anos, são eles que nos dão a consciência mais pura do que é viver com a natureza. Acredito que não só se estão a matar árvores e animais, estão-se a matar cosmovisões que nós, enquanto seres humanos, não podemos ver desaparecer. Nós, cozinheiros, temos um papel muito importante não só de dar visibilidade e forma de sustento a estas comunidades, mas também de divulgar as tais cosmovisões. Valorizar como um todo. Temos o dever de não ignorar que eles existem.

E agora a pergunta clássica: Já esteve em Portugal?
Sim! Várias vezes! [risos]. Já estive no norte, na região dos vinhos, assim como em Lisboa, claro, e no sul, no Algarve (ainda em novembro do ano passado aí estive). Não posso dizer que sou uma grande conhecedora do vosso país mas acho que posso dizer que uma das coisas que mais me encantou em Lisboa, por exemplo, é que vive-se a história em cada esquina. O velho funciona com o novo de forma integrada e acho isso encantador. E claro, a vossa comida é incrível. Adorei os vossos arrozes molhados e os percebes.

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