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Tribunal Internacional da Justiça, em Haia, Países Baixos
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ANP/AFP via Getty Images

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Longe do campo de batalha, Ucrânia trava uma guerra judicial contra a Rússia que pode prolongar-se "por décadas"

Ucrânia tem à frente um longo caminho para perfurar o escudo da Rússia e obter justiça. Ao Observador, advogado de Kiev garante que estão prontos para expor russos como agressores perante o mundo.

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Longe das frentes de combate, onde as forças ucranianas procuram avançar diariamente numa ofensiva e contraofensiva que tem produzido resultados lentos, Kiev trava outra batalha, mais discreta. Não se faz a partir de trincheiras ou com recurso ao armamento moderno cedido pelos aliados, mas decorre nas salas de tribunais das instituições europeias e internacionais. Aí, as equipas de advogados em representação da Ucrânia fazem valer a argumentação e uma extensa documentação de provas com um único objetivo: garantir que a invasão lançada pela Rússia e os crimes cometidos pelas suas tropas são punidos. O norte-americano Harold Hongju Koh é um desses advogados e, desde 2016, faz parte da equipa legal da Ucrânia no Tribunal Internacional da Justiça. Ao Observador sublinha como as provas reunidas contra a Rússia são “esmagadoras”, destacando o apoio que Kiev está a receber nas instituições de justiça internacionais. “Isto mostra que não é apenas a Ucrânia contra a Rússia. É realmente a Rússia contra o mundo e contra a ordem legal que existe desde a Segunda Guerra Mundial.”

A justiça é o sétimo ponto da Fórmula de Paz apresentada pelo Presidente Volodymyr Zelensky e, sem ela, não poderá existir uma paz verdadeira e duradoura, defendem as autoridades do país em guerra. “Dificilmente passou um dia nos anos de agressão russa sem que civis fossem mortos ou feridos pelos seus bombardeamentos. Em todos os territórios libertados, o mundo testemunhou valas comuns, câmaras de tortura e muitos mais horrores da ocupação russa”, refere a proposta de paz, deixando a ressalva de que “nenhum crime deve ficar impune”.

Esse trabalho começou logo nos primeiros dias da invasão, estando a decorrer processos no Tribunal Internacional da Justiça, no Tribunal Penal Internacional e no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. Mas o que pode cada um deles trazer à Ucrânia? O primeiro examina a responsabilidade ao nível dos Estados — neste caso, da Rússia — e pretende apurar se existem violações da lei internacional e das obrigações internacionais para com outros países. O segundo debruça-se sobre a responsabilidade criminal individual e, por isso, pode procurar julgar as figuras de topo por trás da invasão russa, enquanto o tribunal europeu ouve casos sobre abusos de Direitos Humanos. No entanto, “em termos de responsabilização pela invasão, trata-se de um crime de agressão e, infelizmente, não pode ser processado em nenhum destes três tribunais”, diz ao Observador a especialista em direito internacional Jennifer Trahan.

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A Ucrânia quer criar um tribunal especial para julgar a agressão russa

Anadolu Agency via Getty Images

“Geralmente, é o Tribunal Penal Internacional (TPI) que tem jurisdição sobre este crime, mas existe uma divisão na jurisdição quando se trata do crime de agressão por parte de Estados não pertencentes ao Estatuto de Roma [tratado que deu origem à instituição]”, aponta a professora do Center for Global Affairs da Universidade de Nova Iorque e membro do Global Institute for the Prevention of Aggression. Assim, explica, o TPI só pode investigar crimes de guerra, crimes contra a Humanidade e genocídio (se aplicável), mas não o crime de agressão contra a Ucrânia.

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Daí advém o argumento da Ucrânia de que, para julgar a invasão russa, é necessário criar um tribunal especial, uma iniciativa para a qual Kiev já conta com o apoio de alguns países. Há, no entanto, quem proponha, como o Global Institute for the Prevention of Aggression, ao qual pertence Jennifer Trahan, uma alteração à jurisdição do TPI para harmonizar a sua ação quando está em causa um crime de agressão. Isso implicaria, no entanto, que os Estados signatários do seu estatuto chegassem a um acordo sobre a mudança, que diz ser uma via concebível para abordar este e futuros crimes de agressão.

Apesar de insistir na criação de um tribunal especial, a Ucrânia espera também ver nas instituições europeias e internacionais a responsabilização da Rússia. E os mecanismos da justiça começaram a trabalhar cedo, ainda que cada um dos tribunais tenha as suas limitações. “A principal é que demoram muito tempo a chegar à justiça, e o tempo é um bem muito valioso para os ucranianos neste momento“, sublinha David Scheffer, antigo embaixador geral dos Estados Unidos para questões relacionadas com crimes de guerra e atual membro do think tank Council on Foreign Relations.

Esta não é a única limitação à atuação destas instituições, que exigem muitas vezes a participação dos governos para resolver as questões sob litígio. E não é esperado que Moscovo esteja interessado em colaborar, tendo já admitido, por exemplo, a hipótese de abandonar o Tribunal Internacional da Justiça devido à queixa avançada pela Ucrânia. “Este é o dilema do direito internacional: como perfurar o escudo soberano e alcançar uma justiça credível“, afirma David Scheffer. A Ucrânia, antecipa, “vai enfrentar esse desafio durante décadas”.

Tribunal Internacional da Justiça: Kiev quer provar que o genocídio foi usado como “pretexto” para a invasão

Quando as tropas russas cruzaram, a 24 de fevereiro de 2022, a fronteira para o território ucraniano, marchando em direção a Kiev numa tentativa para derrubar o governo do Presidente Volodymyr Zelensky, já uma equipa de advogados especializada em direito internacional preparava um caso contra a Rússia para apresentar ao Tribunal Internacional da Justiça (TIJ). Os sinais de alarme de uma invasão iminente somavam-se já desde o final de 2021 e, chegado o dia 24, o grupo de advogados estava a trabalhar nos preparativos para apresentar dois dias depois uma queixa ao tribunal das Nações Unidas, criado depois da Segunda Guerra Mundial com o objetivo de resolver disputas entre os Estados que participam voluntariamente na sua constituição — é o caso da Rússia e da Ucrânia.

“Foi uma reação ao que se passava. [O Presidente] Putin fazia soar os tambores da guerra desde 2021, chegou aos Jogos Olímpicos na China [em fevereiro de 2022] e havia quem tentasse convencê-lo a não avançar com os planos. O Ministério dos Negócios Estrangeiros queria estar pronto para avançar e foi aí que nos entrámos”, explica ao Observador Harold Koh, um dos advogados que atualmente representa Kiev no TIJ. Na última semana, o especialista em direito internacional e professor na Universidade norte-americana de Yale esteve no tribunal sediado em Haia, nos Países Baixos, com os membros da equipa legal de Kiev, composta por cerca de 30 pessoas de várias nacionalidades.

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Harold Hongju Koh (à esquerda) faz parte da equipa legal que representa a Ucrânia no Tribunal Internacional da Justiça

ANP/AFP via Getty Images

“Pode um Estado poderoso acusar falsamente o seu vizinho de genocídio e depois usar a força ilegal para matar os seus cidadãos, devastar a sua pátria e desestabilizar a ordem global legal sob o pretexto de prevenir e punir um genocídio?”, questionou Harold Koh perante o painel de juízes, referindo-se a um dos principais argumentos usados pelo Presidente russo para justificar o início da “operação militar especial” — o termo cunhado pelo Kremlin para designar a invasão. Este é o ponto central da queixa apresentada pela Ucrânia no TIJ. Kiev acusa Moscovo de ter deturpado a lei internacional, nomeadamente a Convenção de Genocídio (1948), ao justificar a invasão com base na ideia de que estaria a decorrer um genocídio contra os falantes de russo no Donbass (no leste da Ucânia), onde desde 2014 decorrem confrontos com as forças separatistas. Este, sublinham os representantes de Kiev nas instâncias de justiça internacionais, foi apenas um “pretexto” para lançar o ataque de larga escala sobre território ucraniano.

O que significa o genocídio segundo a lei internacional?

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O genocídio foi reconhecido pela primeira vez como um crime ao abrigo da lei internacional pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 1946. Dois anos depois foi codificado como um crime independente na Convenção de Prevenção e Punição do Crime de Genocídio — mais conhecida como a “Convenção do Genocídio” –, que foi ratificada por 153 estados.

Segundo a convenção, o genocídio engloba qualquer um dos seguintes atos, se “cometidos com o intuito de destruir, no seu todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso”:

  • Assassinar membros do grupo;
  • Provar danos corporais ou mentais graves;
  • Infligir deliberadamente ao grupo condições de vida destinadas a provocar a sua destruição física, total ou parcial;
  • Impor medidas com o objetivo de impedir nascimentos no seio do grupo;
  • Transferir de forma forçada crianças do grupo para outro.

A convenção do Genocídio estabelece que o crime pode decorrer num contexto de um conflito armado, internacional ou nacional, mas também num contexto de paz, ainda que seja menos comum. A intenção é o elemento “mais difícil de provar”, pode ler-se na página das Nações Unidas sobre o tema. “Para se constituir como um crime de genocídio, deve existir uma intenção comprovada da parte dos perpetradores para destruir fisicamente um grupo nacional, étnico, racial ou religioso. A destruição cultural não basta, nem a intenção de simplesmente dispersar um grupo”, refere.

O Tribunal Internacional da Justiça (TIJ) tem afirmado repetidamente que a Convenção do Genocídio incorpora princípios que fazem parte do direito internacional geral. Isto significa que, quer os estados tenham ou não ratificado a convenção sobre o genocídio, “todos estão vinculados, por uma questão de direito, ao princípio de que se trata de um crime proibido pelo direito internacional”.

Além de estabelecido como crime na Convenção do Genocídio, está também reconhecido no Estatuto de Roma, o tratado internacional que estabeleceu o Tribunal Penal Internacional (TPI).

A Ucrânia não está sozinha neste esforço. O TIJ aceitou pedidos de 31 países para apoiar o país em guerra no caso, entre eles os Estados-membros da União Europeia (à exceção da Hungria), bem como a Austrália, o Canadá, a Nova Zelândia, a Noruega e o Reino Unido. Os Estados Unidos, um dos maiores aliados de Kiev ao longo de mais de um ano de guerra, também requereram a participação, mas esta foi chumbada pelo tribunal porque Washington não aceitou parte da Convenção do Genocídio quando o tratado foi assinado. Apesar disso, este é o maior número de países a alguma vez juntar-se à queixa de outra nação no tribunal internacional. “Isto é algo sem precedentes”, sublinha Harold Koh. “Demonstra que a interpretação da Rússia em termos do tratado é tão extrema e pouco convincente que 31 países se aliaram para sublinhar a posição contrária.”

Os processos no TIJ são conhecidos por, devido à sua complexidade, se prolongarem durante anos para chegar a uma conclusão e o caso Ucrânia versus Rússia sobre o genocídio não deverá ser exceção. Koh não é estranho a este processo. Desde 2016 que faz parte da equipa legal formada pela Ucrânia para interpor junto do tribunal em Haia uma queixa contra a invasão da península da Crimeia (2014), o tratamento das minorais raciais e o financiamento de “terrorismo” na região do Donbass. O processo arrancou em 2017 e só em junho deste ano chegou ao fim, estando a equipa a aguardar uma decisão do coletivo de juízes.

A mesma equipa trabalha agora no caso sobre o genocídio. Koh destaca que, tendo em conta a complexidade do caso, o processo está a avançar com prontidão. “É difícil prever quanto tempo pode demorar, mas [o TIJ] moveu-se muito rapidamente“, aponta. De facto, depois da queixa ter sido apresentada a 26 de fevereiro, a primeira audição realizou-se a 9 de março. Logo sete dias depois, o tribunal decidiu por 13 votos a favor e dois contra — a oposição surgiu dos magistrados da Rússia e da China — uma ordem provisória para que a “Federação Russa suspendesse imediatamente as operações militares iniciadas no território da Ucrânia”, ainda que Vladimir Putin não tenha mudado os seus planos.

Nessa altura a presidente do tribunal, a juíza norte-americana Joan Donoghue, afirmou que “não estavam na posse de evidências substanciais” que comprovassem as alegações russas de um genocídio no território ucraniano. Sublinhou também que, de qualquer modo, era “duvidoso” que a Convenção de Genocídio concedesse qualquer autoridade para o “uso unilateral da força no território de outro Estado”. A Rússia não esteve presente na sessão, mas enviou uma carta ao TIJ em que alegava que o tribunal não tinha jurisdição sobre o caso, citando uma missiva enviada ao secretário-geral das Nações Unidas em que se justificava formalmente a invasão com base na defesa pessoal e não no genocídio.

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A presidente do TIJ, juíza Joan Donoghue, afirmou que o tribunal "não estava na posse de evidências substanciais" que comprovassem as alegações russas de um genocídio no território ucraniano

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Este pedido russo atrasou a continuação dos trabalhos que Kiev planeava. Foram marcadas várias rondas de audições para que a Rússia, a Ucrânia e os países que se aliaram ao caso apresentassem os seus argumentos, que culminaram nas últimas duas semanas com audições finais de Kiev e Moscovo. Os advogados russos alegaram que o caso “está irremediavelmente repleto de falhas e vai contra a jurisprudência de longa data do tribunal”, acrescentando que se trata de um “manifesto desrespeito à boa administração da justiça e constitui um abuso de processo”.

Na quarta-feira passada, a fase das audições chegou ao fim com uma última palavra dos advogados de Kiev e espera-se uma deliberação do TIJ. Com base na anterior determinação do tribunal, a equipa de defesa antecipa uma decisão favorável à Ucrânia. “A verdadeira questão é se aconteceu algo que os tenha levado a mudar de ideias. Eu penso que não, por isso estamos otimistas”, admite ao Observador Harold Koh um dia depois de terminadas as audições, antes de partir dos Países Baixos para os Estados Unidos. E garante: “Estamos prontos para provar o nosso caso e avançar com todas as evidências, que, claro, aumentam de dia para dia e mostram como os russos estão a usar meios ilegais de agressão e crimes de guerra para prevenir um genocídio que não existe.”

Por agora, a equipa legal continua os preparativos para, no caso de um decisão favorável à Ucrânia, seguir com o caso em tribunal e vai mantendo o contacto permanente com as autoridades ucranianas, através de reuniões frequentes à distância, ocasionalmente interrompidas pelos ataques russos. “Às vezes, o alarme de ataque aéreo dispara e eles desaparecem para ir para um abrigo. Outras vezes, ficam e continuam na ligação para garantir que tudo fica feito”, refere Koh.

"Estamos prontos para provar o nosso caso e avançar com todas as evidências, que, claro, aumentam de dia para dia."
Harold Koh, advogado que representa a Ucrânia no Tribunal Internacional da Justiça

Um dos principais objetivos da Ucrânia no caso que decorre no TIJ é o de obter resultados concretos de um parecer que defendia a obrigação da Rússia de pagar reparações de guerra, um assunto que já não é novidade. “Nós pedimos que o tribunal determinasse que a Ucrânia não cometeu um genocídio, mas, mais do que isso, que a base sobre a qual a Rússia mobilizou as suas tropas é um pretexto e que, assim sendo, não garante uma sustentação legal para as suas tropas ou paramilitares estarem no território da Ucrânia”, aponta o advogado. Isto significa que, se forem considerados culpados, cada dia em que foram cometidas violações da lei “é parte das reparações que podem ter de pagar”. Para já, ainda é cedo para definir um valor, que poderá chegar às centenas de milhões de dólares.

Os julgamentos de reparações podem oferecer uma alavancagem altamente credível para a Ucrânia nas suas negociações com a Rússia nos próximos anos, considera o ex-embaixador norte-americano David Scheffer. Mas este é um processo que está longe de chegar ao fim. “O planeamento a longo prazo ainda mal começou, já que muita energia é absorvida na tentativa de pôr fim à guerra de uma forma que não capacite a Rússia a continuar a agressão ali e noutros lugares”, aponta ainda Ian Hurd, do departamento de ciências políticas da Universidade Northwestern.

Tribunal Penal Internacional: dos mandados de detenção ao dossier para acusar Rússia de usar fome como arma

Se o processo no Tribunal Internacional da Justiça é particularmente relevante, porque junta no mesmo espaço os dois Estados em guerra, o Tribunal Internacional Penal acrescenta uma outra dimensão, ainda que a Ucrânia e a Rússia não estejam entre os seus 123 signatários. É o único que pode avaliar a responsabilização criminal individual e, como tal, eventualmente responsabilizar as figuras que forem consideradas responsáveis pela invasão russa, entre elas o próprio Presidente Vladimir Putin.

O TPI, que à semelhança do tribunal das Nações Unidas tem sede nos Países Baixos, pode julgar crimes de guerra e crimes contra a Humanidade, além do crime de genocídio. Quatro dias depois do início da invasão, os mecanismos da instituição foram acionados, com o procurador Karim Khan a anunciar que estava a trabalhar para iniciar uma investigação à atuação russa em território ucraniano o mais rapidamente possível. A investigação foi oficialmente aberta a 2 de março do ano passado, depois do tribunal ter recebido referências de 43 Estados signatários. É que, não sendo um desses membros, a Ucrânia reconheceu em duas declarações — uma em 2013 e outra em 2015 — a sua jurisdição para julgar alegados crimes cometidos no seu território.

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O procurador do TPI Karim Khan está à frente da investigação sobre crimes cometidos durante a invasão da Ucrânia

Long Visual Press/Universal Imag

Nunca o TPI respondeu tão prontamente com uma investigação após o início de um conflito e, até agora, o passo mais significativo foi a emissão de dois mandados de detenção. Um tem como alvo o Presidente russo, Vladimir Putin, e outro a comissária russa para os Direitos das Crianças, Maria Lvova-Belova, por suspeitas de crimes relacionados com a deportação ilegal de crianças ucranianas — as autoridades de Kiev dizem que são mais de 19 mil casos. “Já vimos o avançar de duas acusações e estão mais para vir”, antecipa Jennifer Trahan, do Global Institute for the Prevention of Aggression.

Há mais em jogo e um grupo de advogados de Direitos Humanos está a trabalhar com a procuradoria da Ucrânia para preparar um dossier de crimes de guerra a apresentar TPI e acusar a Rússia de usar a fome como arma de guerra, como avançou o jornal The Guardian. A acusação é particularmente sensível tendo em conta que na história dos dois países está a marca do Holodomor, a grande fome provocada por Estaline e que entre 1932 e 1933 levou à morte de milhões de ucranianos — este período é já reconhecido por alguns países, como Portugal, como um genocídio.

O que são crimes de guerra e crimes contra a Humanidade segundo a lei internacional?

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O Estatuto de Roma do TPI define que os crimes de guerra dizem respeito a violações graves da Convenção de Genebra (1949). Inclui-se, nomeadamente, a tortura e tratamento desumano, por exemplo através de experiências biológicas; o ato de provocar intencionalmente sofrimento ou lesões graves; a destruição e apropriação extensiva de propriedades, “não justificada por necessidade militar e realizadas de forma ilegal”.

Também pode ser constituído como crime de guerra o ato de fazer reféns, obrigar um prisioneiro de guerra a servir nas forças de uma potências hostil ou privá-lo intencionalmente de um julgamento justo.

Já os crimes contra a Humanidade dizem respeito a atos “cometidos como parte de um ataque generalizado ou sistemático dirigido contra qualquer população civil”. Inclui-se assassinatos, exterminação, escravização ou deportação e transferência forçadas da população. O mesmo acontece no caso do crime de apartheid, de tortura e de violência sexual.

À semelhança do que acontece com o genocídio, um crime contra a Humanidade não tem de estar necessariamente ligado a um conflito armado e pode acontecer também durante um período de paz.

Ao jornal The Guardian, Yousuf Syed Khan, advogado sénior da Global Rights Compliance, explicou que as acusações estão a ser estruturadas em três fases. A primeira está relacionada com o período logo após o início da invasão russa, em que cidades ucranianas foram cercadas e os fornecimentos de alimentação interrompidos. Um dos principais focos é o cerco russo a Mariupol, altura em que o fornecimento de alimentos aos civis foi bloqueado e os corredores de ajuda humanitária  bombardeados em vários ataques.

Uma segunda fase diz respeito à destruição de “objetos indispensáveis à sobrevivência da população civil”. Aqui entram os ataques a estruturas de abastecimento de alimentos e água, bem como a infraestruturas energéticas, particularmente visíveis nos bombardeamentos durante os meses de inverno. Já uma última fase está relacionada com as restrições russas às exportações de alimentos ucranianos e aos ataques às infraestruturas de armazenamento. Nesta categoria entra o bloqueio e os bombardeamentos aos portos ucranianos responsáveis por exportações de cereais, que têm sido alvos frequentes desde que a Rússia anunciou em julho a suspensão do acordo de cereais do Mar Negro.

A Global Rights Compliance (GRC) começou a trabalhar com a procuradoria ucraniana este ano e conta com o apoio de uma equipa de cerca de 70 pessoas na Ucrânia- O objetivo é invocar o artigo 15.º do Estatuto de Roma, que permite a fontes terceiras enviar informações sobre alegados crimes de guerra ao procurador do TPI. Será ele a decidir se o caso prossegue. Parte dos esforços do grupo de advogados de Direitos Humanos passa por identificar os perpetradores e Yousuf Syed Khan acredita que o nome do líder russo poderá eventualmente constar entre os acusados. “Putin pode carregar a responsabilidade por ter cometido atos diretamente, em conjunto com outros e através de outros”, segundo explicou ao The Guardian.

A GRC, que ao longo dos últimos cinco anos têm trabalhado em casos sobre o uso da fome como arma de guerra, incluindo no Iémene, no Sudão do Sul e na região de Tigray (Etiópia), começou a trabalhar com a procuradoria da Ucrânia este ano e tem vindo a partilhar “continuamente” informações com o TPI, a Comissão das Nações Unidas e outras instituições, enquanto decorre a investigação e análise de crimes de guerra, disse numa resposta escrita ao Observador Catriona Murdoc. Há ainda muito trabalho pela frente e a advogada da GRC, que está envolvida neste processo, refere que antecipam submeter o caso através do artigo 15.º em janeiro de 2025.

“As nossas expectativas são de que este crime seja investigado de forma robusta e que a justiça seja feita às centenas de milhares de civis ucranianos que sofrem o terror e as indignidades deste e de outros crimes”, aponta, recordando que o direito penal internacional é um processo longo. “Podemos esperar que esta situação seja particularmente prolongada, mas temos plena confiança de que a informação será devidamente avaliada. Estamos otimistas quanto à possibilidade de o TPI considerar a Ucrânia como um dos primeiros casos internacionais do uso da fome como método de guerra”, acrescenta.

"O arco da justiça internacional é muito longo e a história moderna demonstra que, em muitas ocasiões, os líderes acabam por enfrentar a justiça. Mas isso pode levar muitos anos."
David Scheffer, ex-embaixador geral dos EUA para questões de crimes de guerra e membro do Council on Foreign Relations

Ainda que assumam que o Presidente russo possa vir a carregar a responsabilidade por crimes cometidos na Ucrânia, de acusado até chegar ao banco dos réus, a distância é longa. Poderão o líder russo e as figuras de topo russas ser verdadeiramente responsabilizados? O ex-embaixador dos EUA David Scheffer não tem dúvidas de que é o único cenário possível. “[Putin] será responsabilizado. Se não for nos tribunais, será pela opinião pública mundial e, algum dia, também pela população russa”, sublinha. O investigador do Council on Foreign Relations antecipa que a Ucrânia deverá tentar julgar Vladimir Putin in absentia nos seus próprios tribunais e diz que o TPI poderá vir a tornar as provas do caso públicas, “mesmo que os acusados nunca apareçam em Haia e estejam essencialmente isolados em território russo para o resto das suas vidas”. “O arco da justiça internacional é muito longo e a história moderna demonstra que, em muitas ocasiões, os líderes acabam por enfrentar a justiça. Mas isso pode levar muitos anos“, sublinha.

A eficácia de tribunais como o TPI tem sido posta em causa. No passado, a instituição foi bem sucedida a ver as suas decisões terem consequências significativas, conseguindo aplicar sanções relativas a decisões judiciais sobre conflitos como o dos Balcãs, com vários líderes políticos e militares ainda a cumprir penas de prisão. Mas nem todas as deliberações têm o mesmo efeito e nos casos de mandados de detenção nem sempre é possível trazer os criminosos à justiça. É o caso de Omar al-Bashir, antigo líder do Sudão que é procurado pelo TPI desde 2009. Foi indiciado por genocídio e crimes de guerra do seu governo durante o longo conflito no Dafur, no qual morreram pelo menos 300 mil pessoas. Até agora, conseguiu escapar à justiça, mesmo depois de ser deposto em 2019, e é um dos exemplos à limitação da atuação do tribunal.

epa08211253 (FILE) - Sudan's ousted president Omar Hassan al-Bashir sits in the defendant's cage during his trial in Khartoum, Sudan, 14 December 2019 (reissued 11 February 2020). According to reports on 11 February 2020, Sudanese authorities will hand ousted president Omar al-Bashir to the International Criminal Court (ICC), where he will be facing charges of war crimes and crimes against humanity related to the war in the Darfur region.  EPA/MORWAN ALI *** Local Caption *** 55708364

Pende sob Omar al-Bashir, antigo líder do Sudão, um mandado de detenção emitido pelo TPI em 2009

MORWAN ALI/EPA

Casos com este explicam a reticência de alguns especialistas em direito internacional em apontar como certa a detenção de um líder como Vladimir Putin. “É impossível saber. Basta que um governo esteja disposto a detê-lo quando viajar para um determinado país”, refere Ian Hurd, da Universidade Northwestern. Se o líder russo viajar para um país que seja signatário do TPI, este tem a obrigação legal de o prender e enviá-lo a tribunal. A imunidade diplomática de Putin não o protege desse desfecho. Essa foi mesmo uma das razões que o levou a decidir participar à distância na cimeira dos BRICS, que se realizou no final de agosto na África do Sul, visto por alguns analistas como uma primeira vitória para o TPI.

Ainda que Putin consiga evitar uma detenção, já que pode deslocar-se apenas para países que não reconhecem a jurisdição do TPI — já anunciou uma visita à China a convite do Presidente Xi Jinping —, outras figuras podem não escapar a esse destino. Ian Hurd aponta que é bem possível que o TPI venha a emitir mais mandados de detenção em nome de outras figuras do sistema militar e político russo, muitas delas com menos proteções que o líder russo. “Poderemos ver a rede de detenções a expandir-se e, nesse maior número de pessoas, há uma maior probabilidade de acabarem realmente em tribunal.”

Tribunal Europeu de Direitos Humanos: Kiev denuncia “violações de direitos massivas”

O caso que decorre no Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH) é, possivelmente, o mais discreto. No mesmo dia em que avançou com a queixa no TPI, a Ucrânia apresentou um processo contra a Rússia no tribunal sediado em Estrasburgo, com base em “violações massivas dos direitos humanos cometidos pelas tropas russas no decurso da agressão militar”. Em mais um sinal da rapidez com que os processos avançaram, no dia seguinte a instituição respondeu e apelou ao governo russo para que se abstivesse de ataques militares contra civis e objetos civis, incluindo zonas residenciais, escolas e hospitais, e garantisse imediatamente a segurança dos serviços médicos e veículos de emergência dentro do território sob ataque. O pedido foi, sem surpresa, ignorado. Até agora, os ataques russos já destruíram, segundo a UNICEF, mais de 1.300 escolas e estima-se que um em cada dez hospitais na Ucrânia tenha sido danificado desde o início da invasão.

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Os ataques russos já destruíram, segundo a UNICEF, mais de 1.300 escolas

Global Images Ukraine via Getty

Este tribunal, criado pelos Estados-membros do Conselho de Europa (1959), da qual a Rússia foi expulsa após o início da invasão, trata especificamente de pedidos individuais ou estatais relacionados com violações da Convenção Europeia dos Direitos Humanos — documento que tanto Kiev como Moscovo ratificaram. Apenas regulamenta o cumprimento por parte dos Estados e governos, e não indivíduos. Mas como fazer a distinção entre estas violações e os crimes de guerra ou crimes contra a Humanidade que o TPI julga? “O tribunal não trata de nenhum tipo de crimes”, segundo explicou Michal Kowalski, professor de Direito Internacional na Universidade Jagiellonian, na Polónia, e juiz nomeado em 2023 para o TEDH.

Em declarações ao jornal Justice Info, Kowalski refere que nos conflitos armados, além do Direito Humanitário Internacional que proíbe crimes de guerra, as normas que garantem os Direitos Humanos fundamentais aplicam-se simultaneamente. “Algumas ações arbitrárias num conflito armado podem ser consideradas atos que violam os Direitos Humanos fundamentais (direito à vida; proibição da tortura). E essas violações podem tornar-se objeto de procedimentos iniciados por uma queixa individual ou interestadual perante a TEDH ao abrigo da Convenção Europeia dos Direitos Humanos”, explica. Assim, os mesmos atos cometidos durante a guerra na Ucrânia podem ser definidos como violações dos Direitos Humanos ao abrigo do TEDH e como crimes de guerra segundo o Direito Humanitário Internacional e o Estatuto do TPI. No entanto, ressalva Kowalski, conduzem a diferentes tipos de responsabilidade.

Se o tribunal concluir que existe uma violação, poderá determinar o pagamento de uma compensação e também exigir que o Estado em questão reembolse as despesas incorridas na apresentação do caso. Porém, a instituição “não é responsável pela execução dos seus acórdãos”. “Assim que tiver proferido o seu julgamento, a responsabilidade passa para o Comité de Ministros do Conselho da Europa, que tem a função de supervisionar a execução e garantir que qualquer compensação é paga”, como se pode ler no site do TEDH.

"A não execução das decisões e a não participação nos processos demonstraria que a Rússia é uma pária na comunidade internacional. Mas será que a Rússia se importa?"
Michal Kowalski, juiz polaco nomeado em 2023 para o Tribunal Europeu de Direitos Humanos

A Ucrânia já está familiarizada com os procedimentos, muitas vezes demorados, do TEDH. O tribunal em Estrasburgo está atualmente a deliberar, a pedido de Kiev, num caso sobre a violação de Direitos Humanos na Crimeia, na sequência da anexação, e de um outro sobre a queda de um avião da Malaysia Airlines — que em 2014 caiu na Ucrânia, resultando na morte de todos os 298 passageiros. Só em 2021 o tribunal aceitou a queixa ucraniana sobre alegados abusos cometidos na península anexada pela Rússia e a expectativa é que o caso iniciado após a invasão em larga escala seja igualmente um processo demorado. Ainda assim, é notório o apoio que a Ucrânia já conseguiu reunir: o tribunal concedeu a 31 países o direito de apoiar a Ucrânia no caso.

Se reúne um apoio expressivo que, noutras circunstâncias, não se manifestou, o caso não deixa de estar imune às limitações do tribunal. É que, ainda que as suas decisões sejam vinculativas aos Estados que o compõem, não dispõe de mecanismos para as executar. “Pessoalmente, as minhas expectativas quanto à Rússia são muito baixas”, disse ainda Kowalski. Moscovo “vai ignorar os procedimentos legais em Estrasburgo e nos outros tribunais internacionais (…), mas a não execução das decisões e a não participação nos processos demonstraria que a Rússia é um pária na comunidade internacional. Mas será que a Rússia se importa?” Sobre o impacto a longo prazo, essa ainda é uma hipótese em aberto: “Se a Rússia, de alguma forma, transitar para a democracia a médio e longo prazo e procurar voltar a juntar-se ao Conselho da Europa, então o cumprimento dos acórdãos do TEDH será indispensável nesse processo”, defende.

Ucrânia apela à criação de um tribunal especial. É para avançar?

Foi um dos grandes projetos que o Presidente ucraniano apoiou e do qual não tem intenção de desistir. “Todos queremos ver um Vladimir diferente aqui em Haia. Aquele que merece ser condenado por ações criminosas aqui mesmo, na capital do Direito Internacional”, disse Zelensky em maio, numa visita surpresa aos Países Baixos, sem esconder o desejo de ver o líder russo enfrentar ainda assim a justiça de um tribunal especial criado para julgar a invasão russa.

Se inicialmente a ideia tinha pouca adesão entres os aliados de Kiev, o cenário mudou e a proposta ganhou o apoio dos Estados Unidos, dos ministros dos Negócios Estrangeiros do G7, além de uma série de ministros europeus. O mesmo nível de consenso não existe entre os especialistas de Direito Internacional. “Do ponto de vista jurídico, é um pouco estranho”, considera Ian Hurd. “Implica inventar uma instituição adequada a circunstâncias particulares. É um pouco como ir criando as regras à medida que se avança, mas foi exatamente isso que aconteceu com o tribunal de Nuremberga depois da Segunda Guerra Mundial e também com os tribunais japoneses”, aponta. Há precedentes, “mas é uma forma peculiar de operar um sistema jurídico”.

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O Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, tem sublinhado a importância de criar um tribunal especial para julgar a invasão

ANP/AFP via Getty Images

Outras vozes mostram-se mais abertas à ideia. A perspetiva de criação do Tribunal Especial para o Crime de Agressão “não é tão assustadora quanto pode parecer”, já tinha defendido David Scheffer. O ex-embaixador dos EUA recorda que foi essencialmente isso que as Nações Unidas fizeram quando negociaram e estabeleceram o Tribunal Especial para a Serra Leoa e as Câmaras Extraordinárias nos Tribunais do Camboja, ainda que nenhuma destas tivesse autoridade para deliberar sobre um crime de agressão.

Não é só sobre a necessidade de criar um tribunal especial que as opiniões se dividem. Também não existe um consenso sobre que modelo seguir. Um grupo de vários Estados acredita que é necessário um Tribunal Especial sobre o Crime de Agressão (STCoA, na sigla em inglês) através das Nações Unidas, enquanto outros defendem uma câmara internacional nos tribunais da Ucrânia — hipótese defendida a certo ponto pelo Reino Unido.

“A primeira é a melhor opção, uma vez que significaria que os altos líderes não teriam imunidade“, considera Jennifer Trahan. No caso da segunda, “os líderes de topo teriam imunidade pessoal e não poderiam ser alvo de investigação criminal”, refere. “Há um caminho claro para processar e julgar crimes de guerra e contra a Humanidade, mas o mesmo não se pode dizer sobre a agressão”, refere. Para já, a Ucrânia continua a procurar o seu caminho por todas as instâncias ao seu dispor, mas o Presidente ucraniano tem deixado claro que todos os passos devem conduzir a um só rumo: “Cada assassino, carrasco e terrorista russo tem de ser responsabilizado por todos os seus crimes.”

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