Encerrada há mais de um ano para profundas obras de remodelação, a Casa Fernando Pessoa, em Lisboa, prepara-se para voltar a abrir portas este sábado. A renovação foi a maior desde que o espaço museológico foi inaugurado no edifício onde Pessoa viveu os seus últimos 15 anos de vida, em Campo de Ourique. A Casa está, por isso, diferente. Ganhou um novo piso, uma maior área expositiva e melhores acessibilidades. O auditório mudou de sítio, abandonando o primeiro piso e passando para o rés do chão, e a biblioteca funciona agora num lugar mais recatado, longe do circuito de visitas. A exposição de longa duração foi renovada e tem uma nova museografia e uma coleção mais alargada, que conta com a biblioteca particular de Pessoa no seu centro — o segundo piso é-lhe inteiramente dedicada, assim como à sua marginália, as notas que Pessoa deixou e que são tão importantes para o estudo da sua obra.
Esta foi a primeira grande remodelação feita na Casa desde que esta abriu portas em 1993 e uma das principais preocupações dos responsáveis foi melhorar a sua acessibilidade, não só em “termos de circulação”, mas também em “termos de discurso museográfico, de acessibilidade das peças”, salientou a diretora, Clara Riso, que acompanhou o Observador numa visita ao novo espaço. “‘Acessibilidade’ é uma palavra-chave em todo este projeto. A obra civil de remodelação teve muito que ver com essa acessibilidade em termos de circulação. Passou pela entrada e pela reorganização dos espaços, mas é uma palavra que nos é muito cara também nesta forma de construir a exposição. As peças estão expostas de uma maneira que é mais acessível. Os livros estão agora mostrados, com as devidas medidas de conservação. [Estão] mais próximos [do público], do contacto direto dos visitantes”, disse.
Talvez contrariando o que seria lógico, é no último andar que a exposição começa, com uma sala dedicada ao sistema dos heterónimos e à sua construção. A máquina de escrever do poeta dá as boas vindas aos visitantes, que têm um primeiro contacto com as figuras literárias que Pessoa criou através da projeção de dezenas de nomes, gerando uma “ideia de multidão”. É neste espaço que se encontra agora o famoso retrato de Fernando Pessoa pintado por Almada Negreiros em 1954, anteriormente instalado no grande pé direito da Casa, que as obras fizeram desaparecer. Pendurado num recanto inesperado da primeira sala expositiva, é com surpresa que os visitantes se deparam com ele sobre uma parede cinzento escuro, onde ganha um novo destaque. É um “privilégio” poder observá-lo agora “tão de perto e reparar em pormenores que, quando o víamos ao longe a partir do varandim, não conseguíamos detetar ou fruir”, apontou Clara Riso.
Em frente ao retrato de Almada foram colocados três estudos da figura de Pessoa que Júlio Pomar fez para os azulejos da estação de metro do Alto dos Moinhos, em Lisboa. Estas obras fazem a transição entre os dois espaços da sala — um primeiro, onde se apresentam vários livros que pertenceram a Fernando Pessoa, com diferentes assinaturas e posses, mostrando como os heterónimos são “um sistema” com “inúmeros cruzamentos”, e um segundo, dedicado aos três principais heterónimos e ao autor do Livro do Desassossego, Bernardo Soares. Entre os exemplares em exibição nesta sala, encontram-se, por exemplo, Pioneer Humanists, de John Mackinnon Robertson, importante por conter um poema de Alberto Caeiro (“Gosto do céu porque não creio que ele seja infinito”) descoberto em 2010 por altura da digitalização da biblioteca do poeta, o único poema manuscrito em posse da Casa Fernando Pessoa (os papéis de Pessoa estão à guarda da Biblioteca Nacional de Portugal), e The Gem Pocket Pronouncing Dictionary of the English Language, talvez o livro mais usado da biblioteca pessoal do escritor.
“Acabamos por mostrar que não se trata apenas de uma criação de nomes, cada um por si”, afirmou Clara Riso. “Às vezes são parentes, familiares; escrevem-se, confrontam-se contradizem-se.” Essa troca de correspondência dá “uma ideia da complexidade deste sistema”, composto por uma constelação de mais de 100 nomes, dos quais a Casa Fernando Pessoa escolheu 25 e apresentou, num quadro interativo, as suas biografias, salientando ligações e remetendo de uns para os outros.
Todos os textos, os que acompanham os objetos em exibição mas também os de parede, foram escritos para serem informativos, mas também apelativos. “[Foram escritos] com o cuidado de serem comunicativos, de aguçarem a curiosidade dos visitantes e resistindo à tentação de contar as histórias todas, até porque não era de todo possível”, salientou a diretora da Casa Fernando Pessoa, acrescentando: “Os textos estão escritos dessa maneira, que quer ser convidativa, comunicativa e de deixar espaços em aberto para cada um preencher da maneira que lhe interessa mais diretamente.”
Outra preocupação foi a de criar uma exposição que fosse interativa e que permitisse ao público intervir e aproximar-se. Essa vertente da nova mostra da Casa Fernando Pessoa é especialmente visível na segunda zona expositiva do primeiro andar, dedicada a Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos e Bernardo Soares, onde existem bancos de escuta onde é possível ouvir textos declamados por diferentes autores sobre os heterónimos e semi-heterónimos e a sua criação, nomeadamente a famosa carta sobre a génese dos heterónimos enviada por Pessoa a Adolfo Casais Monteiro, em janeiro de 1935. Foi esta que serviu de base para a biografia destas figuras que é apresentada em quatro painéis distintos. É aqui que é possível encontrar uma das mais recentes aquisições da Casa — os desenhos preparatórios de Almada Negreiros para a fachada da Faculdade de Letras de Lisboa que representam Caeiro, Rei e Campos. O depósito destes esboços foi transferido pelas herdeiras de Almada, as suas netas, para a Casa Fernando Pessoa.
A casa onde Fernando Pessoa viveu
A Casa Fernando Pessoa tem a particularidade de existir num espaço que foi habitado pelo poeta. Não é, por isso, uma casa qualquer: “Não é um museu sobre Pessoa num lugar qualquer de Lisboa. [Esta] foi a sua última morada, durante 15 anos”, frisou Clara Riso. Essa ideia de “morada” é uma das que os responsáveis pelo museu querem que fique na memória de quem o visita. “Queremos que fique na memória do visitante uma experiência que é também a de estar no lugar. Há aqui uma palavra que é fundamental, que é ‘morada’. Pessoa viveu aqui, no primeiro andar direito”, declarou a diretora.
Fernando Pessoa mudou-se para o primeiro andar direito do n.º 16 da Rua Coelho da Rocha, o apartamento em frente ao das tias-avós de Jorge de Sena, no primeiro dia de abril de 1920. É essa a data que consta do contrato, integrado na nova exposição. O apartamento foi arrendado para ser uma casa de família — Pessoa, que viveu em quase 20 moradas diferentes ao longo da sua vida, decidiu estabelecer-se no bairro de Campo de Ourique para ter condições para receber os três irmãos e a mãe que estavam prestes a chegar da África do Sul. Foi nesta casa que irmãos, João e Luís, viveram até partirem para Inglaterra e que nasceram os sobrinhos, Maria Manuela e Luís Miguel, filhos da irmã Madalena Henriqueta, a Teca; e foi aqui que Pessoa viveu até morrer, a 30 de novembro de 1935, aos 47 anos.
Um primeiro conjunto de objetos da antiga casa do escritor pode ser encontrado na segunda sala da exposição, no segundo piso, construído durante as obras de remodelação aproveitando o grande espaço que existia entre o primeiro e últimos andares da Casa Fernando Pessoa. É aqui que se encontra grande parte da biblioteca particular de Pessoa, “o coração da exposição” e “o tesouro mais preciso” da coleção do museu, e a estante onde estavam guardados os livros que o poeta leu e anotou. Estes permitem “ver a variedade de temas que lhe interessou, ver que há aqui uma relação muito direta com alguns dos autores lidos e depois o que veio a ser a sua própria criação [literária], e como é que Pessoa, a partir da leitura desses textos, também envergou por um caminho ou outro enquanto escritor”, disse Clara Riso.
A biblioteca que foi de Pessoa ocupa o espaço central do segundo piso. De um lado, fica a sala de leitura, onde os visitantes poderão manusear edições recentes das obras do poeta, de várias editoras, várias línguas e também em braille. É um espaço “para as pessoas tomarem o seu tempo, puxarem um banco e sentarem-se calmamente a ter contacto direto com os textos. Levamos todo o tempo da exposição a falar desses textos. Pois bem, também há um momento em que o visitante pode ter esse contacto direto, sem a nossa intermediação”, apontou a diretora da Casa Fernando Pessoa, esclarecendo que, devido à pandemia de Covid-19, os exemplares disponíveis serão por enquanto menos do que se pretendia, para que seja possível estabelecer um sistema de rotatividade para ficarem em quarentena. Uma terceira zona deste andar será dedicada a exposições temporárias. Para o arranque, a Casa Fernando Pessoa terá em exibição o filme ensaístico “O Passageiro”, de Luís Alves de Matos, sobre a biblioteca pessoal do poeta. A produção de 25 minutos foi apresentada no festival de cinema Indie Lisboa, em 2018.
O terceiro piso é o apartamento onde Fernando Pessoa viveu de 1920 a 1935. Partindo de vários testemunhos, nomeadamente o de Manuela Nogueira, sobrinha do poeta, que viveu na casa da Rua Coelho da Rocha com os pais e o irmão, Luís Miguel, foi possível reconstituir o desenho da casa, definindo as várias divisões, que estão marcadas no chão a preto. No primeiro espaço, onde ficava a sala, foi concentrada a biografia de Pessoa. Numa grande mesa em madeira, com diferentes vitrinas e gavetas, foram colocados diferentes objetos pessoais do escritor e seus familiares que ajudam a contar a sua vida. No mostrador dedicado à infância em Lisboa, estão expostos, entre outros objetos, uma colher de bebé com um “F” gravado e “o primeiro cabelo que se cortou ao Fernando no dia 2 de junho de 1889”, alguns dias antes de Pessoa completar um ano de idade, a 13 de junho.
Alguns dos objetos já integravam a antiga museografia, mas outros são novidades, como é o caso do desenho de um jovem Fernando Pessoa feito por um ainda mais jovem Almada Negreiros, que fazia parte do espólio de Luís Miguel Rosa Dias, irmão de Manuela Nogueira. “É um desenho de 1913, ano em que Almada e Pessoa se conheceram”, contou Clara Riso. “Almada tinha 20 anos e Pessoa 25, e fez este retrato a lápis cor de rosa.” O registo é o de um jovem artista (Almada Negreiros ainda não tinha estabelecido o estilo pelo qual ficaria mais tarde conhecido) e Pessoa, com um desgrenhado cabelo ondulado e sem chapéu, é muito diferente da imagem que o mesmo Almada imortalizou no mais famoso retrato do poeta, exposto no último piso deste mesmo museu.
No espaço que corresponde ao antigo quarto de Pessoa, um pequeno quarto interior, é dedicado à obra publicada em vida, a Mensagem e os dois opúsculos em inglês, mas também às colaborações em variadas revistas literárias portuguesas, das quais se destaca Orpheu. “Pessoa não deixou livros publicados além da Mensagem e dos pequenos folhetos em inglês, mas era um homem muito conhecido no seu tempo, no círculo literário. Participava numa série de revistas literárias, publicou muitos textos em prosa também. Era um homem considerado”, afirmou a diretora da Casa Fernando Pessoa, chamando a atenção para o exemplar da Athena que pertenceu ao escritor e que tem anotações e correções a lápis que são fundamentais para o estudo da obra do do heterónimo Ricardo Reis, apresentado no primeiro número da revista.
Por cima da vitrina que apresenta os números 1 e 2 da Orpheu e as cópias tipográficas do número 3, que nunca chegou a sair, foi colocada a placa que assinalava o nascimento da revista modernista no café-restaurante “Irmãos Unidos”, no Rossio. Os “Irmãos Unidos” pertenciam à família de Alfredo Pedro Guisado, membro fundador do Orpheu. Era neste estabelecimento, que ocupava o número 12 da Praça D. Pedro IV, que o grupo começou por se reunir. Em 1954, quando o restaurante foi alvo de uma grande remodelação, o gerente, António Guilherme Guisado, irmão de Alfredo, mandou fazer uma placa em mármore para assinalar a criação da publicação, em 1915. Esta foi colocada ao lado do retrato de Pessoa pintado por Almada Negreiros, encomendado na mesma ocasião. Por altura do encerramento do estabelecimento, em 1970, a placa foi doada ao Museu da Cidade de Lisboa. Depois de vários anos em depósito, foi decidido que integraria a nova exposição da Casa Fernando Pessoa, noticiou o Observador em janeiro.
A viagem pela vida e obra de Fernando Pessoa termina, na nova exposição do museu que lhe é dedicado, no antigo quarto dos sobrinhos do poeta. A peça central desta sala, “com caráter de instalação artística”, é a cómoda onde Pessoa costumava escrever e onde, de acordo com o relatado na carta a Casais Monteiro, criou, na noite de 8 de março de 1914, Alberto Caeiro e restantes heterónimos. Com o teto forrado com folhas manuscritas, o espaço dá uma “ideia de tumulto ou turbulência da criação literária”, remetendo para o “êxtase do triunfo daquele dia”. “Até aqui vamos acompanhando o visitante de uma maneira mais informativa e direta com os textos de parede, as legendas. Agora que estamos a chegar ao fim, queremos que o visitante se atire de outra forma”, explicou Clara Riso.
Com a mostra a chegar ao fim, as palavras que enchem as folhas de papel vão desaparecendo, dando lugar ao silêncio que abraça uma última frase: “I know not what tomorrow will bring” (“Não sei o que o amanhã tratá”). “Aqui o visitante entra mais num espaço de experiência, menos agarrado ao texto e já mais no seus caminhos pessoais de pensamento”, apontou a responsável. “Evocamos aquela que é a última peça do museu, a última frase que Pessoa escreveu, que aqui se encontra muito sumida no topo de uma folha, escrita a lápis, com a data de 29 de novembro de 1935, a véspera do dia em que Pessoa morreu”.
Diz a história que, pouco antes de morrer, Pessoa terá pedido os óculos e escrito estas palavras numa folha de papel. Esta dúvida, que assaltou o poeta nos últimos momentos de vida, parece estar de alguma forma ligada às palavras que escreveu num livro e que abrem a exposição no último piso “Não o que sei, mas o que sou, é o fundo de todos os problemas”. A três meses de se assinalarem os 85 anos do desaparecimento de Fernando Pessoa, e no ano em que se completaram 100 anos da sua mudança para a Rua Coelho da Rocha, a pergunta continua sem resposta, mas a renovada exposição da Casa Fernando Pessoa espera poder ajudar os visitantes a conhecer melhor este homem que foi poeta.
A Casa Fernando Pessoa volta a abrir portas este sábado, 29 de agosto. As visitas realizam-se mediante marcação por email. As entradas são gratuitas até ao final de setembro