Índice
Índice
Mais de 300 vagas do concurso de formação de especialidade de médicos ficaram por ocupar este ano. As especialidades com mais lugares por preencher voltaram a ser Medicina Geral e Familiar e Medicina Interna, as mais carenciadas do Serviço Nacional de Saúde. Segundo os dados avançados ao Observador pelo Conselho Nacional do Médico Interno, ficaram ‘desertas’ 307 das 2.167 vagas colocadas a concurso (14% do total), um número, ainda assim, inferior ao do ano passado.
Desta forma, o concurso para a formação de médicos especialistas terminou com 1860 colocados. Trata-se do segundo número mais baixo de colocados dos últimos seis anos. No ano passado, foram colocados nos hospitais e centros de saúde 1.836 médicos. Em 2022, tinham sido 1.883, e, em 2021, 1871.
Vendo de outra forma, ficaram por ocupar, este ano, 307 vagas, menos que os 406 lugares que ficaram vazios em 2023. No entanto, é preciso ressalvar que, no ano passado, o número de vagas foi o maior de sempre — foram abertos 2.242 lugares para formação especializada, mais 75 do que este ano. Ainda assim, o número de vagas que acabaram vazias é mais elevado do que em 2022 (quando ficaram por ocupar 161 dos 2.044 lugares) e do que em 2021 (que não foram preenchidas 50 das 1.921 vagas). Ao todo, nos últimos quatro anos, mais de 920 vagas ficaram por ocupar.
“É a sustentabilidade do SNS que está em causa”, avisa presidente do Conselho do Internato Médico
Um cenário que preocupa o presidente do Conselho Nacional do Médico Interno, um órgão da Ordem dos Médicos. “É a sustentabilidade do SNS que está em causa, devido à sustentabilidade dos recursos humanos. Os serviços vão perdendo qualidade e capacidade de prestar cuidados à população vai diminuindo“, alerta José Durão, ao Observador. O responsável destaca a diminuição do número de vagas por preencher em relação ao ano passado mas realça que “mais de 300 vagas por ocupar ainda é um número muito elevado”.
“É extremamente preocupante, porque demonstra que os internos não olham para o SNS como um local onde queiram trabalhar“, alerta a presidente da Federação Nacional dos Médicos, Joana Bordalo e Sá. “Há vários serviços do SNS que não são escolhidos pelos médicos, e que assistem à saída de médicos mais velhos. Daqui a cinco anos, vamos ter serviços que não formaram internos suficientes para colmatar as saídas. E um serviço sem internos acaba por se ir degradando lentamente”, lamenta José Durão.
Como esperado, a maior parte dos lugares que ficaram por preencher são na região de Lisboa e Vale do Tejo, a mais carenciada do país. Das 741 vagas da especialidade abertas nesta região, 137 ficaram por ocupar, 18,5% do total. Um cenário bem diferente da região norte, a que abre mais vagas para formação de especialidade: nesta zona, foram colocadas a concurso 797 vagas, das quais apenas 35 não foram preenchidas (4,4% do total).
Mais de um terço dos médicos internos não voltariam a escolher o curso de Medicina
A segunda região com mais vagas por preencher é o Centro. Aqui, ficaram vazios 71 lugares, 18% das 387 vagas a concurso. Em terceiro lugar, surge o Alentejo, com 36 lugares por ocupar. No entanto, em proporção, esta região foi a que teve um pior desempenho no concurso: mais metade das 70 vagas ficaram ‘desertas’. Com o mesmo número de vagas (também 70), o Algarve conseguiu preencher quase todos os lugares disponíveis. Sobrou apenas uma, de Medicina Intensiva, no Hospital de Faro. Na Região Autónoma da Madeira, foram colocadas a concurso 51 vagas, das quais 11 ficaram por ocupar (21,5%). Com o mesmo número de vagas (51), os Açores não conseguiram preencher 16 lugares (31% do total).
Este ano, e tal como aconteceu em 2023, Medicina Geral e Familiar e Medicina Interna (as especialidades basilares dos cuidados de saúde primários e dos cuidados hospitalares, respetivamente) foram as que deixaram mais vagas por preencher. No caso da MGF, ficaram por ocupar 168 das 625 vagas colocadas a concurso, o que significa que ficaram concentrados nesta especialidade mais metade dos lugares que não foram ocupados neste concurso. Sem surpresa — e à semelhança do que acontece com os concursos para a colocação de médicos nos centros de saúde e Unidades de Saúde Familiares —, a região de Lisboa foi a que registou mais lugares não preenchidos em MGF, seguida pela região Centro. Ainda assim, o número de colocados aumentou em relação ao ano passado.
Quase 50 vagas ficaram por ocupar em Medicina Interna
Quanto a Medicina Interna — a maior especialidade hospitalar e a ‘coluna dorsal dos serviços de urgência — ficaram 49 vagas por ocupar, ou seja, 27% do total. A terceira especialidade com mais lugares disponíveis e não preenchidos foi Patologia Clínica, com 32, seguido de Saúde Pública, com 15. Apesar de ter preenchido todas as vagas, a especialidade de Ginecologia/Obstetrícia (uma das mais carenciadas do SNS) colocou 60 médicos, menos 7 do que no ano passado. “Há outras especialidades em que o saldo acaba por ser negativo, como a Pediatria, a Cardiologia ou a Anestesiologia“, sublinha José Durão, alertando para a quebra da capacidade formativa ao longo dos anos.
O presidente do Conselho Nacional do Internato Médico destaca, no entanto, alguns pontos positivos do concurso que ficou concluído esta segunda-feira. “Entraram mais 30 pessoas em relação ao ano passado, o que é um bom sinal. E muitas das especialidades que, no ano passado, deixaram muitas vagas por ocupar este ano inverteram a tendência, como é o caso da Medicina Interna, Patologia clínica, Medicina Intensiva ou Doenças Infecciosas”, realça José Durão.
Ao longo dos anos, têm sido abertas cada vez mais vagas para formação na especialidade, mas o número de colocados não tem acompanhado o crescimento da oferta. Aliás, se antes da pandemia, o problema era a não abertura de vagas de especialidade para todos os médicos que terminavam a formação geral (o que fazia com que muitos médicos ficassem sem possibilidade de se formarem como especialistas), a partir de 2021 o cenário inverteu-se, e começaram a ficar vagas por ocupar. Nesse ano, 50 lugares não foram preenchidas. No ano seguinte, o cenário agravou, com 161 lugares a não serem escolhidos. Um número que mais do que duplicou em 2023, com 406 lugares a ficarem vazios. Este ano, registou-se uma melhoria mas ainda assim mais de 300 vagas ficaram por ocupar.
Ordem dos Médicos e FNAM pedem melhores condições de trabalho
Para José Durão, é necessária uma estratégia para melhorar as condições de trabalho no SNS para os jovens médicos, que vão entrar na especialidade, mas também para os médicos formadores. “Os internos conhecem bem os serviços e sabem o que esperar. E sabem que não vale a pena ir para determinada especialidade ou serviço porque não vão ter as condições de trabalho, a qualidade de vida e o trabalho que ambicionam. E não veem nenhum sinal da parte da tutela para inverter isto“, critica o responsável da Ordem dos Médicos, que realça a importância de atribuir incentivos aos médicos formadores.
“É preciso reter os especialistas no SNS e melhorar as condições de trabalho para que consigam formar internos. E motivá-los para que queiram formar internos: hoje não há estímulos. Apenas os orientadores de formação nas Unidades Locais de Saúde Tipo B é que têm um suplemento para formarem internos”, lamenta José Durão.
Este ano, entre os 2432 médicos que terminaram o ano comum — e que eram potenciais candidatos às vagas de especialidade agora colocadas a concurso — mais de 350 rescindiram o contrato com o SNS e escolheram não fazer formação especializada no SNS, segundo a Federação Nacional dos Médicos (FNAM). “Optam por fazer a formação especializada no estrangeiro ou trabalhar como médicos não especialistas em regime de prestação de serviço no SNS, ou no setor privado”, disse a presidente da FNAM, Joana Bordalo e Sá, ao Observador.
A dirigente sindical explica que os jovens médicos “percebem que vão encontrar condições de trabalho terríveis no SNS”. “É como se os internos fossem ‘carne para canhão’ em algumas áreas. Têm horários muito difíceis e trabalho extremamente pesado, e uma remuneração baixa”, sublinha Joana Bordalo e Sá, lembrando que os médicos internos têm de conjugar a atividade assistencial com a elaboração de trabalhos e do próprio currículo. “É preocupante porque não estamos a formar médicos suficientes numa altura em que temos tantas reformas e saídas. Os serviços ficam ainda mais desfalcados“, realça a presidente da FNAM.
A responsável defende que devem ser melhoradas as condições de trabalho dos médicos internos no SNS, nomeadamente a formação, e a inclusão do internato médico na carreira. “É uma forma de os internos estarem mais protegidos, com um vínculo permanente ao SNS e maior estabilidade laboral”, sublinha Joana Bordalo e Sá.