O discurso de Marcelo Rebelo de Sousa

numa comunicação ao país na décima renovação do estado de emergência.

“Portugueses, vou ser breve e claro. Vivemos o período, de longe, mais difícil da pandemia que dura há quase onze meses. Temos dos mais elevados números da Europa. A variante inglesa do vírus surgiu e propagou-se vertiginosamente, abarcando mais de 50% dos casos em áreas como a Grande Lisboa. A pressão sobre estruturas da saúde, sobretudo nessa Grande Lisboa é extrema.”

O Presidente da República diz logo no início do discurso ao que vem: não há eufemismos quando os responsáveis públicos dizem que a situação é grave. E para que dar um comparativo aos portugueses diz mesmo que este é “de longe” o “período mais difícil da pandemia”. A ideia é reforçar que as coisas estão hoje muito piores do que na primeira e na segunda vaga e que tudo piorou com a variante inglesa do vírus, lembrando que os hospitais estão no limite em zonas como a Grande Lisboa. Marcelo lembra ainda que Portugal tem dos mais elevados números da Europa, naquilo que, sendo um alerta, peca por defeito: o país tem, neste momento, dos mais elevados números do mundo, não apenas da Europa.

“O número de mortes cresce a ritmo há meses inimaginável e com ele cresce a perigosa insensibilidade à vida e à morte, mesmo de familiares, amigos, vizinhos, companheiros de tantos lances da vida. Com essa insensibilidade crescem ainda a negação do vírus, da sua gravidade, a negação da necessidade do estado de emergência e até do confinamento. Mas nada disso, nenhuma dessas negações resolve a multiplicação dos mortos, as esperas infindáveis por internamentos, o sufoco nos cuidados intensivos, o sofrimento de doentes Covid e não-Covid.”

No pior dia da pandemia, com 303 mortes e 16.432 casos, Marcelo Rebelo de Sousa enaltece como parecia impossível há alguns meses ter o atual ritmo de mortes diárias. Na sequência dessa reflexão, alerta como a convivência com esta situação acabou por banalizar a morte e a perda, mesmo de pessoas próximas. Isso, adverte, faz crescer os negacionistas da pandemia. Para essa negação, de quem não quer ver a gravidade do vírus, Marcelo lembra o que é palpável e está à frente dos olhos: as mortes, os internamentos o estado dos cuidados intensivos e as consequências que isto tem em doentes que sofrem com este vírus, mas também nos que sofrem de outras morbilidades.

“O que verdadeiramente importa nestes momentos mais difíceis e mesmo mais dramáticos é não perder a linha de rumo, não perder a determinação, não perder a capacidade de resistir, de melhorar e de agir. Se for verdade que, desta vez, a vaga começou a Ocidente e Portugal é dos primeiros e não dos últimos a sofrer a pandemia, então é preciso agir depressa e drasticamente. É esse o sentido das medidas hoje mesmo tomadas ao abrigo do decreto que assinei, logo após a autorização da Assembleia da República. Temos de ser mais estritos, mais rigorosos, mais firmes no que fizermos e do que não fizermos. Ficar em casa. Sair só se imprescindível e com total proteção pessoal e social. Só assim será efetivamente viável testar a tempo e rastrear os possíveis infetado, diminuindo a disseminação do vírus.”

Marcelo Rebelo de Sousa faz aqui um apelo aos portugueses, mas também ao Governo de não perder a “linha de rumo”. É um apelo motivacional. Tenta ainda, de alguma forma, justificar o facto de Portugal estar a sofrer mais do que outros países europeus, lembrando que esta onda começou a ocidente (em mais uma alusão à variante britânica). O facto de ter começado por esta ponta da Europa, avisa o Presidente, torna necessário que haja uma resposta “depressa e rapidamente”. E aqui, como fará mais à frente do discurso, o chefe de Estado deixa cair o primeiro apelo aos portugueses que sejam mais cumpridores (o que pressupõe que não estejam a ser os melhores alunos, como em março e abril). “Mais estritos, mais rigorosos, mais firmes”, pede Marcelo, que volta a sublinhar um novo “fiquem em casa”.

“Temos de continuar a vacinar sempre, melhor e ainda mais depressa e sem criar especulações que nos enfraqueçam.”

O Presidente faz aqui uma exigência que pode ser também entendida como uma crítica ao atual ritmo de vacinação. Para o chefe de Estado é preciso continuar a vacinar “melhor e ainda mais depressa”, o que sugere que o país poderia estar a ser mais rápido neste processo. Chegou a ser noticiado que Marcelo Rebelo de Sousa defendeu em audiência com partidos em Belém — em anteriores renovações do estado de emergência — o envolvimento dos privados na vacinação, de forma a acelerar o processo. O Governo (ainda) não cedeu nesse ponto.

“Ninguém de bom senso quereria fazer passar centenas ou um milhar de titulares de cargos políticos ou funcionários por muito importantes que fossem, de supetão à frente de milhares de idosos, com as doenças mais graves e, por isso, de mais óbvia prioridade.”

Esta é a frase mais ambígua de todo o discurso de Marcelo. Não se percebe se está a criticar a vacinação de políticos ou se está a atacar os que a criticam. O Presidente não é assim claro se concorda com a vacinação de titulares políticos e de altos cargos do Estado, mas sugere que nunca permitiria que este tipo de vacinação fosse feita à pressa (“de supetão”) para safar os políticos, deixando os que mais precisam para trás. Há duas hipóteses: por um lado, Marcelo pode estar a visar os que, por via do populismo ou convicção, criticam a vacinação de políticos;  por outro, a frase é abrangente o suficiente para Marcelo estar a criticar o facto de “centenas” ou um “milhar” de titulares irem receber a vacina, já que diz claramente que não seria de “bom senso” passar todo esse número de pessoas à frente de idosos “de mais óbvia prioridade”. Quando foi questionado publicamente sobre o assunto, Marcelo não se alargou nos comentários o que torna difícil descodificar a frase.

“Temos de estar preparados para confinamento e ensino à distância mais duradouros do que se pensava antes desta escalada.”

Não há hipótese. O confinamento está para durar e não há como dourar a pílula. Marcelo Rebelo de Sousa começa nesta fase do discurso a avisar os portugueses que isto não será uma questão de semanas, mas de meses. Não é só um confinamento de quinze dias que acaba em breve, serão outra vez várias semanas de recato. Com o aviso de um confinamento mais longo, vem também um aviso para pais e alunos de que se têm de preparar para voltar a ter aulas a partir de casa por um período relativamente prolongado. E muito mais prolongado do que se pensava quando começou este novo confinamento. Puxa aqui por algo que fez questão de consagrar no último decreto re renovação do estado de emergência: o ensino não-presencial.

“Temos de, na medida do necessário, usar o controlo de fronteiras na entrada e na saída, e num como que auto-confinamento a limitação de deslocação de nacionais para fora do território do continente. Temos de esgotar todas todas as hipóteses na capacidade de resposta em reformados, reservistas, formados no estrangeiro. Não vale a pena esconder a realidade, fazer de conta, iludir a situação, porque essa situação é mesmo a pior que vivemos desde março do ano passado.”

Estas frases de Marcelo podiam ter sido ditas pela ministra da Presidência no briefing do Conselho de Ministros que decorreu uma hora antes. E na verdade foram, pelo menos em parte. Mariana Vieira da Silva até utilizou a imagem do “auto-confinamento” para explicar como Portugal estava a impor a si próprio um confinamento por ser um dos países com a situação mais complicada. A mensagem é simples: ao não sair do país, os portugueses não ajudam a espalhar o vírus pelo mundo nem correm o risco de juntarem novas variantes às que já fustigam o país. Além disso, o Presidente dramatiza e diz que é preciso ir buscar todos os recursos necessários para responder à pandemia. Fala acima de tudo em “reformados, reservistas e formados no estrangeiro” e também isso parece concertado como Governo. É que Mariana Vieira da Silva disse que quer ir buscar o maior número possível de médicos e enfermeiros para combater a pandemia em Portugal. E podem ser médicos ainda sem a especialidade, mas também médicos ou enfermeiros estrangeiros que possam exercer no país. Para promover isso, esses profissionais estrangeiros passam a ter menos de cumprir menos exigências: cai a necessidade de prova oral, continuando a ser necessária a prova escrita e de comunicação. Recorrer a todos estes profissionais significa que se está num cenário de guerra? Segundo Marcelo, sim, e não vale a pena escamotear essa realidade. Por muito alarmante que seja, segundo o Presidente, “não vale a pena esconder a realidade” e tentar esconder o que se está a passar. Que é grave. E pior do que alguma vez o país já viveu.

“O que fizermos todos, poderes públicos solidários e portugueses, até março, até março, inclusive, determinará o que vai ser a primavera, o verão e quem sabe se o outono. E joga-se tudo nas próximas semanas, até março, inclusive.”

Marcelo repete três vezes “até março”. E em duas delas complementa: “Inclusive”. E não podia haver maior sinal de que esta será uma pausa de média-longa duração. O Presidente da República diz claramente aos portugueses que é para ficar em casa, no mínimo, o resto de janeiro, o mês de fevereiro e até todo o mês de março (“inclusive”, como faz questão de repetir), o que atira um eventual desconfinamento para abril. O apelo é ao jeito do que fez noutras alturas: quando pediu um melhor comportamento em abril para ganhar maio ou um melhor novembro para ganhar o Natal. Com uma diferença: a situação é agora muito pior do que nessas alturas e um passo em falso pode adiar a liberdade para o outono seguinte. Para o Presidente os portugueses têm de fazer uma espécie de all-in (ou um at-home) para salvar o verão: “Joga-se tudo nas próximas semanas”.

“Para que a vaga inglesa passe sem surgir outra vaga de outros continentes, o que desde já estamos a prevenir. E a que custo, como sabem. Mas sabemos todos que o custo brutal destas medidas mais duras é, de longe, muito inferior ao custo em vida, saúde, economia e sociedade destruídas por uma pandemia que vá até outubro deste ano. Temos mesmo de travar a escalada em curso. E já. Seguindo o exemplo dos nossos profissionais de saúde: em carácter, consistência, entrega e espírito de missão. Portugueses será que ainda vamos a tempo? Claro que vamos a tempo. Mas este é o tempo de fazermos todos, poderes públicos e portugueses, mais e melhor.”

O Presidente alerta que, estando instalada a variante britânica no país, é preciso travar a escalada antes que o país seja atingido por novas variantes do vírus. Diz, aliás, que essa prevenção já está a ser feita, numa alusão ao facto de Portugal ter suspendido os voos de e para o Brasil, onde se desenvolveu a já chamada de variante brasileira. Marcelo reconhece que as medidas são duras, mas avisa que, se não as tomar, o custo para a vida das pessoas, para a saúde e para a própria economia vai ser ainda maior. O Presidente faz uma crítica subliminar aos portugueses e uma auto-crítica a si quando diz que é preciso fazer “mais e melhor” do que têm feito até aqui. O que fizeram até agora claramente não chega.