É a primeira a chamar-se “maluquinha” para arrumar a conversa. Marta Rebelo é atualmente consultora de comunicação, mas foi no tempo de deputada que sentiu da forma mais dura o preconceito e o estigma da doença mental. Estava no pico da depressão, tinha episódios cada vez mais recorrentes de ansiedade e, após uma tentativa de suicídio, percebeu que mesmo o seu círculo de amigos próximos teve a reação que menos esperava. Quiseram protegê-la — e escondê-la —, mantendo o secretismo e aumentando o estigma: “E se se souber que a senhora deputada da Nação se tentou suicidar? Maluquinha de pedra, não é?”.
Nesta entrevista inserida na série “Labirinto — Conversas sobre Saúde Mental”, uma iniciativa do Observador e da FLAD, gravada no Pestana Palace, em Lisboa, Marta Rebelo confessa que, a dado momento, deixou de saber se era o tabu imposto pela sociedade que lhe alimentava o estado depressivo ou se era a doença que ia à frente. Conta que, durante mais de uma década, foi ao fundo e aprendeu a “disfarçar” o sofrimento com a estratégia da “cara alegre e bola para a frente”. Mas agora pensa: “Como raio é que não perceberam?” “Por melhor atriz que eu pudesse ser, não devo ter disfarçado assim tão bem.”
Preocupa-se com o estado da nova geração, os zoomers, a quem não se tem dado qualquer atenção, e não tem dúvidas de que “o problema da saúde mental só se resolve quando der votos”.
[Veja aqui a entrevista completa a Marta Rebelo]
Define-se muito como “ex-deprimida”. Mas se já não é ou já não está, porque é que a expressão continua a ser importante para si, como definição?
Porque é um estado. Não sei por quanto tempo é que vou continuar a ser ex-deprimida. Pode ser a vida toda, mas posso reincidir. As doenças mentais e a depressão em concreto têm uma taxa de reincidência muito grande. Portanto, não curei a depressão, neste momento sou ex-deprimida. Porque não estou deprimida. Amanhã, espero que não, mas nunca se sabe. E depois porque, a partir do momento em que resolvi falar sobre o tema da saúde mental, essa apresentação arruma logo a conversa. Se quiserem chamar-me maluquinha, se quiserem dizer mal de mim pelas costas ou pela frente… pronto, eu já me chamei maluquinha, não há problema. Tudo o que vier a seguir é simpático da vossa parte.
Portanto, abre o jogo logo à partida. Lembra-se de quando é que começou a estar doente, a estar deprimida?
A sensação, por volta dos 23, 24 anos. No finzinho da faculdade, mas sobretudo quando comecei a trabalhar. Aí, não só a depressão, mas a ansiedade, tornaram-se muito patentes e foi quando procurei ajuda especializada. Hoje, auto-analizando-me e olhando para trás, acho que desde miúda, desde pequena.
E isso era o quê? O que é que lhe acontecia já em miúda que tivesse esses sinais da depressão e da ansiedade?
Um humor muito cíclico. Não era bipolar, mas era uma coisa cíclica, como se precisasse de fazer uns intervalos do mundo. Como se os meus sentidos ficassem em overload [sobrecarga] e eu precisasse de desligar. Isso tornava-se muito patente porque eu deixava de ir à escola, ou tentava. Tentava um, dois dias, de vez em quando: de quinze em quinze dias, uma vez por mês. E, com o passar dos anos, isso acentuou-se até os intervalos da necessidade de parar se tornarem cada vez mais próximos. Era como se recarregasse baterias. Punha a pilha a carregar um dia, a ver séries, a desligar totalmente, a dormir, e depois voltava energizada.
Que idade tinha? Era adolescente nessa altura em que faltava à escola?
Ainda não era adolescente. Talvez tenha começado a fazer isto às escondidas, porque a minha mãe não estava em casa, estava a trabalhar. Era uma operação mais difícil quando eu vivia com os meus avós, porque a minha avó estava em casa. Mas por volta dos 10 anos, talvez, quando entrei para o quinto ano. Tinha mais aulas, um horário mais diverso do que na primária.
E o que é que se passava? Não era aquela ideia da transgressão? Precisava mesmo de parar?
Era uma necessidade.
Não era para ir com os amigos passear?
Não, não. Eu queria ficar mesmo em casa, quieta, sossegada no meu canto. Não era nada aquela coisa da balda às aulas. Até porque eu sempre fui uma marrona do pior, sempre fui muito boa aluna e não deixava de ser, porque era uma questão de honra própria. Não era querer a balda, não era querer estar com os amigos e não me apetecer ir às aulas. Era mesmo precisar de desligar. De não existir, como digo hoje. Ainda hoje, quando consigo, quando posso, tenho uns dias em que não existo. Estou só a fazer os mínimos olímpicos cá na Terra. Porque preciso. Tenho noção hoje, organizada, de que preciso disso. Claro que, na altura, não tinha noção nenhuma. Não pensava muito no assunto. Tentava simplesmente fazer.
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Ao mesmo tempo, tinha crises de ansiedade. Já nessa altura?
As crises de ansiedade começaram a tornar-se mais patentes na adolescência. E muito patentes na faculdade.
Que se manifestavam como?
Nunca teve uma crise de ansiedade? Ainda bem, não desejo isto a ninguém. Os ataques de ansiedade são uma sensação física muito parecida com um ataque cardíaco, porque começamos a sentir-nos nervosos. Parece que o coração tem uma taquicardia e não entra. Às vezes, transpira-se muito. É assim uma espécie de pico de stress agudo por alguma razão, ou às vezes por razão nenhuma. Esse é o momento mais estranho, quando não se consegue perceber qual é a razão. Quando era adolescente, a coisa era mais espaçada. Talvez. Porque não tenho esta cronologia muito organizada na minha cabeça. Não tinha a ver com um momento, uma hora concreta: por exemplo, antes de um teste ou uma coisa assim. Mas a fase de testes ou a fase de exames depois na faculdade, que eram momentos de maior stress, mais intensos, propiciavam isso. Mas os ataques de ansiedade foram uma coisa que veio com o tempo, a acompanhar a depressão — a depressão terá vindo primeiro —, e foram-se tornando mais agudos, conforme as exigências da vida também se tornavam mais sérias. A faculdade é diferente do liceu, o trabalho é diferente da faculdade.
Diz que foi por volta dos 23 anos que tomou mais consciência do problema. Tomou-a sozinha ou o seu círculo — a família, os amigos — percebeu antes de si?
Ninguém percebeu antes de mim. E mesmo quando lhes disse, não sei se acreditaram à primeira. Aos 23 anos, estava no último ano da faculdade, sobretudo a ansiedade começou a tornar-se muito constante e patente. E depois, quando comecei a trabalhar ainda nesse ano… Essa coisa que eu descrevia de precisar de descansar é fazível quando andamos na escola ou na faculdade. Quando começamos a trabalhar, já é muito complicado. Portanto, a impossibilidade de utilizar esse registo, essa escapatória, só acrescentava camadas à minha ansiedade. E, por consequência, à depressão também. É muito difícil explicar o que é ter depressão e ansiedade ao mesmo tempo, porque são polos opostos e tornam a coisa um bocado esquizofrénica. Mas nessa altura — por isso é que digo, por volta dos 24, 25 anos — já tinha uma consciênciazinha do que se ia passando. E achei mesmo que tinha de procurar ajuda. Porque a minha vida profissional não podia ser posta em causa por isto. Pelo menos, de uma forma tão intensa.
Porque estava a ser? Começou a prejudicar-se profissionalmente?
Não começou a ser nessa altura. Atuei antes de. Ou pelo menos tentei. O procurar ajuda, procurar um psiquiatra, no caso, não significa que aconteça alguma coisa curativa no imediato ou até no médio prazo. Mas tive essa iniciativa. Na altura, o meu ex-marido percebeu e tínhamos uma relação bastante cúmplice e despudorada em termos de saúde mental, e procurou apoiar-me. Não só não me censurando vagamente por eu procurar um psiquiatra, que é uma coisa que maridos e mulheres ainda fazem muito hoje aos seus respetivos significant others, como tentando apoiar-me nos meus momentos mais complicados.
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Mas a iniciativa partiu da Marta?
Sim.
Quem avisou antes? O seu ex-marido?
A minha melhor amiga. A minha mãe também, talvez.
E a reação foi de apoio?
Sim, foi.
Disse há pouco que se calhar nem acreditaram à primeira que tivesse uma depressão.
Sim, porque eu sempre fui muito boa aluna. Na medição de resultados — que é uma coisa que nós usamos muito na vida: medir os resultados —, o sucesso existia. Era constante. Mesmo sendo o meu percurso de vida, a infância e a adolescência não muito típicas, digamos assim, acho que na minha família — não tanto a minha mãe, mas mais os meus avós, o meu pai — achavam sempre que havia um potencial para correr mal. E como corria muito bem, estava tudo perfeito. Portanto, com o passar dos anos, isso estendeu-se a outras pessoas: de acharem impossível que eu estivesse a passar por uma depressão e tivesse ansiedade generalizada. Porque a aparência negava qualquer coisa desse género.
Na aparência estava tudo bem, mas sabia que não estava. Quer dizer que quando vai ao médico pela primeira vez já estava à espera do diagnóstico que lhe foi apresentado?
Estava. Talvez seja melhor fazer aqui um parêntesis: eu tenho 44, portanto isto foi há 20 anos. Há 20 anos, quando nós íamos a um psiquiatra ou a um psicólogo, esta coisa do diagnóstico não era tão explicado como é hoje. Provavelmente, a alguém que vá hoje pela primeira vez a um psicólogo ou a um psiquiatra e tenha um quadro depressivo (aquilo que se designa por transtorno depressivo maior) é dito assim: o que tem é isto. Na altura não. Eu passei anos na minha vida a saber que tinha “uma depressão”. Eu sou do tempo em que os burnouts se chamavam esgotamentos e era uma coisa física, não era um problema mental. Portanto, eu sabia que se passava alguma coisa comigo. Sabia que, manifestamente, era depressiva. Agora: com as letrinhas todas e muito bem explicadinho, e com acesso direto ao Google para sabermos o que é, não. Isso foi auto-conhecimento. Foi muita pesquisa e muita vontade de descobrir o que se passava comigo ao longo de muitos anos.
Então como é que sai dessa primeira consulta? Pouco esclarecida?
Mais esperançosa do que pouco esclarecida. Naquele momento — e creio que será assim com toda a gente —, quando nós sentimos que precisamos de pedir ajuda, queremos é uma solução. E eu saí de lá com uma promessa de solução, uma receita: de anti-depressivos, ansiolíticos para SOS e, portanto, naquele momento ter-me-á parecido uma promessa de solução. Era qualquer coisa mais, face ao que eu tinha uma hora antes de ali entrar. Sei que, naquela altura, esta questão do diagnóstico e da explicação não eram assim tão relevantes. Lá está, também não se falava muito sobre isto, não havia muita informação. Portanto, essa coisa dos porquês de eu estar assim, o que é que originava, o que era exatamente, o que é que eu podia fazer… estava numa fase digamos que obediente. De seguir aquilo que me dissessem, de procurar que me guiassem. Infelizmente, percebi depressa que não ia longe se ficasse tão passiva. Apesar de me ter cruzado ao longo deste tempo todo com médicos, com psiquiatras, com psicólogos ótimos, porventura não eram as pessoas ideais para mim. Mas tenho a certeza de que terão ajudado muitas outras pessoas com quem se cruzaram.
Diz que, infelizmente, percebeu depressa que não era este o caminho. Estava com 24, 25 anos. A depressão vai-se agravando, mesmo com essas receitas que foi tendo?
A depressão vai-se agravando e acho que era sobretudo muito parva quando tinha 20 e tal anos, porque tinha um grande complexo de super-mulher. Achava que conseguia fazer tudo e tudo o que fazia — que era muito — tinha de fazer no limiar da perfeição. Mas que conseguia, não havia problema nenhum. Tudo correria pelo melhor. Tinha um plano detalhado para a minha existência. Por isso é que digo que era profundamente parva. Isso também ia agravando o meu estado de saúde mental. A pressão que eu colocava sobre mim própria era muita, mesmo que não tivesse consciência que me estava a fazer mal. A base, o ponto de partida, já eram esses. Portanto, a coisa foi obviamente piorando. Fui desenvolvendo novos mecanismos para disfarçar, para fingir, para lidar com.
Como por exemplo? Que mecanismos é que pode ter quando há essa necessidade de desligar, as crises de ansiedade? Que truques arranjou?
Quando há crise de ansiedade num local público, o único truque é mesmo disfarçar. É a chamada cara alegre e bola para a frente. Não foi de todo o meu primeiro ataque de ansiedade num local público, mas foi um que me marcou particularmente pela dureza: não sei se teria mais de 25, 26 anos, dava aulas na Faculdade de Direito de Lisboa. Como ainda era muito novinha nessa atividade, tinha por hábito assistir às aulas teóricas do regente da cadeira. Estava a assistir a uma aula teórica, sentada. Para dar um cenário a quem nos ouve, aquele Anfiteatro 1 que aparece sempre na televisão quando se fala da Faculdade de Direito, onde cabem 600 pessoas, os professores estão quase num púlpito porque a mesa está elevada face à plateia. Eu estava sentada ao lado do professor que estava a dar a aula. E comecei a sentir um ataque de ansiedade a instalar-se. Galopantemente, intenso. A única coisa que eu podia fazer, porque a aula tinha começado há 10 minutos e era de 50, era tomar discretamente um ansiolítico. A seco, porque nem sequer havia uma garrafa de água, um copo de água, para ajudar, e esperar que passasse. E foi isto que tive de fazer. Se acho que alguma daquelas largas dezenas de pessoas que estavam ali percebeu? Acho que não. Tive de esperar, tive de disfarçar, tive de fazer conversa quando a aula acabou e tive de correr para uma casa de banho para chorar e morder o casaco. Esse ataque de ansiedade marcou-me porque foi realmente muito duro. Talvez por ter sido uma experiência tão durinha, tudo o que veio a seguir na capacidade de disfarçar tornou-se mais simples. E nem sempre acontecem num sitio de onde não haja fuga possível. A maior parte das vezes há. Portanto, para resolver a ansiedade: ou fugir, ou manter cara alegre. E depois, quando se está sob efeito da depressão mesmo, há toda uma panóplia de doenças físicas que se usam como desculpa para poder ficar em casa, ou para poder ir para casa.
Da habitual dor de cabeça a alguma coisa que se comeu?
Uma gripe, uma gastroenterite, qualquer coisa.
Ia recorrendo a esse tipo de estratégias?
Ia. Não sei se é porque estou tão versada nestes dois bichos — deve ser isso, deve ser a minha experiência —, costumo dizer que farejo o mau estar nas outras pessoas. E penso: como raio é que não perceberam? Por melhor atriz que eu pudesse ser, não devo ter disfarçado assim tão bem. Porque hoje olho para as pessoas que claramente estão a tentar disfarçar um mau momento ou sensação e percebo. É muito fácil de perceber. Mas isto tem pavio curto. Porque não só a coisa vai-se intensificado, a nossa capacidade de disfarce também diminui, como inevitavelmente nós vamos fazendo coisas que não faríamos se estivéssemos bem: em termos de trabalho, prazos, não conseguir ir dar uma aula, não conseguir ir a uma reunião, perder oportunidades. Há uma série de coisas com o acumular do estado e a passagem do tempo que nós perdemos. E que nos fazem passar não por doentes mentais, mas por relapsos, incompetentes, preguiçosos. Portanto, é também misterioso para mim hoje como é que nós, coletivamente, continuamos a preferir ser vistos como incompetentes ou preguiçosos do que reconhecer que temos um problema de saúde mental. Este trade-off é exótico para mim. Mas eu vivi lá, alimentei o tabu e o preconceito, fui cúmplice.
Até quando? Foi proativa, procurou um médico aos 23, 24 anos. Até quando é que foi percebendo que essa solução não chegava?
À medida que a minha relação terapêutica com o médico não dava frutos, porque acho que percebemos rapidamente que não é propriamente como pôr um gesso num osso partido. Põe-se o gesso, dois, três meses, se for preciso faz-se fisioterapia e há cura. Isto não é propriamente um processo curativo e não é de todo rápido. Mas há aquilo que eu designo por química. Um psiquiatra ou um psicólogo, um psicoterapeuta, é uma pessoa que vai ficar ali muito próxima. É uma mistura de melhor amigo com confidente, confessor, com tudo. E se não confiamos naquela pessoa — não é confiar no sentido de desconfiar, é no sentido de aldrabar, mesmo. Porque temos muita dificuldade em confessar as nossas desgraças e os nossos momentos negros a alguém. Sobretudo alguém que não conhecemos e que, por obrigação de profissão e de sanidade, precisa de manter uma certa distância higiénica das dores do seu paciente. Eu aldrabava bastante — tentava! — os meus psicoterapeutas. Portanto, ia avançando. Ok: aqui não está a resultar, vou procurar outra pessoa, outro tipo de psicoterapia ou de psicanálise. E fui fazendo sempre isso. Às vezes ficava mais tempo, às vezes não corria bem de caras e seguia. E, à medida que o tempo passou também, e a coisa se agravava, fui tentado outras coisas. Fui procurando mais informação, fui tentado perceber-me, perceber o meu problema e fazer outras coisas. Do género, iogaterapia, ioga, meditação. Coisas que não acho que curem ninguém, mas ajudam bastante — e no caso da ansiedade, se calhar até não é curar, mas aliviam muitíssimo. Tentei sempre muito sozinha, foi uma tarefa muito solitária, até um determinado ponto, procurar soluções. E investigá-las.
E no meio disso tudo, já assumiu que chegou quase a um ponto de não retorno.
Cheguei a um ponto de não retorno em 2009. Tentei suicidar-me.
Tentou mesmo ou pensou nisso?
Tentei. Executei. E não foi um ponto sem retorno porque sobrevivi, mas, de certa forma, é um ponto sem retorno, porque nunca vou voltar ao que era antes. Para o bem e para o mal. No caso, se calhar mais para o bem do que para o mal. Mas sim, cheguei a esse ponto.
E esse ponto foi um clique para procurar outro caminho? Ou foi sempre em experiências, umas que funcionam melhor outras não. Andou sempre assim em saltos?
Não foram saltos. Há uma coerência cronológica nisto. Ou seja, há muita gente que, quando não corre bem a experiência com um terapeuta, por exemplo, ou os medicamentos não fazem efeito, ou o que seja, desiste. Eu nunca desisti. Insisti. Fui foi variando, porque, quando não resolvia, não solucionava, tentava encontrar outra solução, mas persisti e resisti muito. Claro que, mais uma vez, há a referência ao esquizofrénico, porque isto é o nosso racional: o lado objetivo tenta resolver; subjetivamente, sentia-me completamente em baixo, nas profundezas. Lá em baixo no inferno, muitas vezes.
Portanto, isto são dois caminhos antagónicos. O que sentimos e sabemos, aquilo que procuramos objetivamente fazer, e aquilo que a subjetividade nos obriga a fazer.
Há um momento, e esse momento é em 2009, em que o subjetivo, o que eu sentia, ganha claramente ao objetivo, ao racional. Não sei se foi um momento, um clique assim tão intenso, porque eu não estava propriamente nos anos anteriores a não fazer nada. Foi um clique a outros níveis: foi talvez o momento em que comecei a sentir um incómodo muito grande com o secretismo não só da minha experiência com a tentativa de suicídio, como com toda a forma como se vive, se ignora, ou tenta ignorar-se a doença mental e os problemas de saúde mental. A partir daí, comecei a sentir um incómodo muito grande, que se foi instalando. Demorou ainda cinco anos a instalar-se de forma definitiva, mas talvez o grande clique que identifico nessa fase tenha sido esse.
Como se vivesse obrigada a viver um segredo. Não podia partilhar este sofrimento e esta dor?
Claramente um segredo. Imagine: 2009. Eu ainda era deputada. Meus Deus! O que é que acontece se a senhora deputada da Nação assumir, ou se se souber? Não é assumir, que isso não estava em cima da mesa. Se se souber que ela se tentou suicidar. Maluquinha de pedra, não é? Nem pensar! E mesmo as pessoas à minha volta — que são pessoas despreconceituosas, sempre foram, com temas de saúde mental — tiveram essa reação, e se porem em meu redor, a proteger-me. Proteger-me é esconder-me. Isso é uma coisa que me incomodou muito. Na altura, incomodou-me, mas eu tive de passar à frente porque o que tinha de fazer era recuperar-me. Mas foi um bichinho que ficou lá e que hoje é o que é.
Ficou com esse incómodo e gostava de o explorar já daqui a pouco. Mas antes, a Marta escreveu uma vez sobre a relação com a medicação. Que houve uma altura em que se sentiu mais uma toxicodependente do que uma tratada. O que foi isso?
Cada médico será um médico, mas, neste percurso, tive o azar de encontrar — e acho que toda a gente passará por isso — um psiquiatra que acreditava ou acredita, não sei, que a terapia medicamentosa é essencial e deve ser exponencial. Aliás, foi na sequência da tentativa de suicídio. Houve uma altura em que estava a tomar à volta de nove medicamentos diferentes. Um deles é um simpático, chama-se ALDOL, serve para muitas coisas. Não tem uma associação especifica ou única com saúde mental e dava-me tonturas. Não era capaz de andar de saltos altos na rua. E às vezes caía mesmo. E tomava um antidepressivo que me fez ganhar imenso peso — que é uma coisa que qualquer mulher adorará, não é? Está deprimida, a vida não lhe está a correr bem e toma lá mais dois ou três quilinhos para cima que é para ficares bonita e ainda mais bem disposta. Mantive-me aí dois meses, talvez. E depois achei que aquele não era claramente o caminho para mim. De facto, nessa altura, sentia-me mais uma dependente de drogas do que uma pessoa que estivesse num processo curativo.
Quando é que entra naquilo em que sente que está a curar-se, em que está nesse processo curativo?
Não gosto da palavra cura, fujo um bocadinho dela, porque toda a nossa medicina física e mental e a nossa predisposição quando falamos em doença é dirigida à cura. A minha depressão tornou-se crónica, a dado momento. E eu tenho-lhe muito respeito. Não posso com ela, mas tenho-lhe muito respeito. E parte do respeito vem do receio de lá voltar. Tenho sobre mim uma grande vigilância, mantenho-a o mais distante que consigo, mas estou sempre à coca. E, portanto, não me considero uma curada. Lá está, voltamos à conversa do ex-deprimida. É um processo de melhoria. Para mim, a palavra é melhorar, não é curar. Quando é que senti que estava a melhorar? De uma forma sustentada, talvez em 2014, 2015, que foi também quando me senti suficientemente robusta para dar voz ao incomodo com o secretismo.
Isso quer dizer que a forma intensa com que publicamente fala sobre doença mental faz parte do seu processo, não de cura, mas de manter a doença controlada? Contribui para isso, pelo menos?
Não, acho que não é tanto por aí. Acho que é uma outra característica minha, ou duas: eu sou, por natureza, protestativa e, portanto, quando há alguma coisa que acho que está estruturalmente mal, às vezes nem é preciso estar estruturalmente, mas neste caso estava, tenho, temos todos, o dever de fazer alguma coisa para mudar. Por outro lado, há aqui também uma racionalização que é: passei mesmo muito mal durante mais de uma década. Foi uma coisa horrível. E sei que há milhões de pessoas a passar por isto. Portanto, tenho de encontrar uma utilidade para este sofrimento todo. A utilidade que encontrei é falar sobre ele e tentar mudar aquilo que é mutável de forma não mais imediata, porque vai levar muito tempo, mas é o preconceito, é o estigma, é o secretismo. Há uma música dos Ornatos Violeta em que o Vítor Espadinha, no fim, declama que o amor é uma doença quando nele pensamos ver a cura. E a vergonha, o estigma, o preconceito são um grande combustível das doenças mentais. A dada altura, não sei o que estava no comando: se era a vergonha e o secretismo, ou o estigma. A vergonha nunca senti, propriamente, porque não tinha junto de quem me envergonhar. Ninguém sabia. Mas não sei o que é que liderava, se eram o preconceito e o estigma que alimentavam o meu estado depressivo, se era a depressão que ia à frente. E falar sobre isto — mais do que falar, tentar realmente fazer alguma coisa para este estado de coisas mudar — é uma forma de dar utilidade ao meu sofrimento. E isto é um processo extraordinariamente racional e tão frio quanto uma experiência pessoal pode ser.
Como é que a Marta está hoje?
Hoje, ao dia de hoje?
Também.
Hoje estou um bocado neurótica por causa da chuva. Hoje estou bem, estou ex-deprimida, lá está. Ocasionalmente ansiosa, de vez em quando tenho os meus momentos. E vigilante. É talvez este o trio.
Mas ainda tem momentos em que precisa de deixar de ser, de existir?
Tenho, tenho. Mas tudo isto em mim é agora muito mais organizado, porque conheço-me muito bem. Raramente tomo ansiolíticos. Não porque não tenha ansiedade, mas porque sei que ela vem a caminho. Sei que há triggers [gatilhos], sei que há sensações físicas e sei o que devo fazer antes de chegar à necessidade do comprimido, do ansiolítico. Acho que falar sobre isto ajuda, mas não é isso que me mantém à tona. E acho que o facto de ter conseguido melhorar depois de tantos anos a lidar com isto me dá uma força para achar que, se a coisa correr mal, consigo dar a volta outra vez.
Mas tem campainhas que tocam? Há dias em que tem sinais de alerta?
Tenho, tenho. Tenho nos últimos anos. Há uma coisa engraçada — e mesmo neste vosso Labirinto, que acho que é serviço público da mais alta necessidade e qualidade —, há uma coisa curiosa, que é: os vossos convidados têm um problema de saúde mental, em concreto. E em muitos casos é assim. Mas nem sempre. Quando nós temos problemas de saúde mental de uma forma mais prolongada no tempo, o catálogo ou a prateleira torna-se um bocadinho mais diluída. Eu tive burnout, tive dois. E um burnout é uma coisa diferente da depressão. A doutrina divide-se: há cientistas que acham que não, mas, de todo o modo, nós identificamos como fenómenos diferentes. Além da ansiedade. E, em dado momento, percebi, devagarinho, que os meus momentos maus se identificavam com uma fase especifica do mês, que é o período. Com a chegada.
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Não, TDPM, que é um bicho mais exótico. Transtorno Disfórico Pré-Menstrual. Não sei se tenho, é um tipo de depressão específica. Não acho que tenha, mas claramente é uma fase periclitante. E como ela tem a vantagem de ter data marcada, reconheço que estou a x dias, uma semana, 8 dias, 10 dias de chegar o período e portanto que a coisa pode tornar-se um bocadinho mais ou emocional ou irritante ou irritativa. Ou às vezes, mesmo com episódios, não uma crise de depressão, mas com episódios ou sintomas mais depressivos. E tenho de encontrar uma certa paz no saber porquê e no deixar acontecer, da maneira menos intensa ou mais fácil possível.
Já falou destas doenças, da depressão e da ansiedade, como bichos. Sabe dominá-los agora, é isso que sente?
Digamos que lhes pus uma trela. Não é um açaime, é uma trela. E eles agora andam comigo. A depressão anda pouco, é um gato, talvez. Fica em casa, não precisa de ir à rua. E a ansiedade, quando vai comigo, vai de trela, a coisa está mais controlada.
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Tem mais de uma dezena de anos a viver disto. Já falou muito de estigma, parece-lhe que hoje em dia quem sofre de uma doença como a depressão já não vai passar por todo esse estigma e essa vergonha que a Marta teve de enfrentar?
Talvez não precise de passar pelo secretismo todo, nem por uma certa ignorância, porque há muita informação. Mesmo que optemos por viver secretamente ou não partilhar que temos um problema deste género, o acesso à informação está muitíssimo facilitado. Depois, já há pessoas a falarem na primeira pessoa dos seus bichos, o que ajuda muito a um processo de identificação, de pertença. Nós somos bichos tribalistas, precisamos de pertencer à tribo. Nem que seja à tribo dos maluquinhos. Às vezes há pessoas que levam a mal, mas acho que utilizar o humor também é uma arma importante para lidar com estes problemas. E, portanto, saber que há muitos milhões, milhões, milhões de maluquinhos no mundo é uma coisa que nos torna menos maluquinhos a todos, nomeadamente a quem está a passar por um mau momento.
Mas o preconceito e o estigma continuam a existir?
Ainda. Passámos nos últimos dois anos a falar muitíssimo mais de saúde mental abstrata. É um abstrato, é um bolo, é uma massa anónima coletiva, é um número, ou são vários números. Mas mesmo, muitas vezes, tenho conversas sobre saúde mental com pessoas que sei que é óbvio, patente, que não estão bem e que procuram falar sobre esses temas por necessidade. Mas não são capazes — isto é uma expressão que eu não gosto de usar —, não personalizam, não assumem, não falam de si e do seu problema. Acho que há muita gente, sendo muitos milhões as pessoas que têm problemas de saúde mental, há muitos outros milhões que não têm, mas que vivem perto de pessoas que têm. E por mais solidariedade, empatia, que se tenha, quem não passou por ela tem dificuldade em compreender. Reconheço isso, percebo e entendo. Mas a tendência é para não lidar bem, por incompreensão. Às vezes, por desespero com o problema da pessoa que está ao lado e que nós não temos. Depois, no local de trabalho é o que é. Acho fantástico que se comece a falar em licenças menstruais e essas coisas todas, mas se de manhã telefonarmos para o escritório a dizer que estamos com uma gripe terrível, dizem: “Fica em casa porque ainda vens para aqui e pegas isso a alguém”. Se telefonarmos para o escritório e dissermos que não conseguimos sair da cama porque estamos a ter um episódio depressivo, enfim, teria de usar vernáculo para descrever o que se segue, e não pode ser. E depois, temos toda uma circunstância social e pública em torno das doenças mentais. O que eu quero dizer? Socialmente, é claramente o estigma, mas é também a forma como podemos encontrar ajuda.
Como assim?
Vivemos num país que tem um sistema de saúde público ao qual recorremos muitíssimo. Agora já usamos muito seguros de saúde privados, mas a verdade é que no SNS não existem respostas para quem precise de cuidados especializados de saúde mental. No privado existem, são caríssimos. São inacessíveis a muitíssimas pessoas. E temos, neste momento, um Governo que diz que a saúde mental é uma prioridade e que orçamenta — como todos os governos anteriores, isto não é uma questão de cor política, estou-me nas tintas para a cor política nesta matéria — 4% do Orçamento da saúde. 4% é uma estimativa simpática, por cima, para a saúde mental. E depois diz que o PRR vai resolver tudo com 88 milhões previstos para construir hospitais e infraestruturas. Quando nós temos nos cuidados primários do SNS cerca de 700 psiquiatras e 250 psicólogos. Podemos falar muito sobre o assunto, podemos muito querer melhorar ou curar, escolham a palavra, mas nem toda a gente consegue pagar cem euros ou 80 euros por uma consulta recorrente. Que tem de frequentar muitas vezes. E depois temos, por cima disto, aquela coisa fantástica de achar que as pílulas mágicas resolvem tudo. Este ano, o Governo já comparticipou antidepressivos, ansiolíticos e antipsicóticos em 32,5 milhões de euros. São muitas embalagens de medicamentos ao dia. Nós somos o segundo país em ansiolíticos e o primeiro em antidepressivos na Europa. Em consumo, em receituário e em venda. E todos estes números — não gosto muito de citar números, embora eles deem uma expressão à grandeza do problema — são sub-calculados, porque não sabemos. Sabemos aqueles que são comparticipados, não sabemos aqueles que são vendidos pelo farmacêutico por simpatia. Da mesma forma que não sabemos quantas pessoas têm depressão ou ansiedade ou outro problema qualquer deste género porque as pessoas não procuram ajuda e não entram para a estatística.
E vê uma solução para isto?
Esta parte do problema só se resolve quando a saúde mental der votos. E está, talvez, na hora de pegarmos todos neste problema — aqueles que têm problemas de saúde mental, aqueles que vivem com pessoas que têm e aqueles que não têm, mas que entendem a dimensão da crise — e começarmos a exigir soluções a quem decide as prioridades de governação dos países, cá e em qualquer outro sítio. Enquanto não conseguirmos domar o preconceito e não conseguirmos domá-lo de uma forma pelo menos coletiva — não exijo essa personalização de ultrapassagem do preconceito e do estigma, mas coletivamente — e não começarmos a exigir estas soluções, este problema não se vai resolver, vai continuar a agravar-se. Há uma coisa que me preocupa extraordinariamente este ano, porque são números que são trabalhados recentemente e têm a ver com a saúde mental das crianças e dos adolescentes. E que me fez também pensar que o meu problema começou lá atrás. E se existissem cuidados de saúde mental para crianças e adolescentes e alguém me tivesse tratado nessa altura, provavelmente não estávamos a ter esta conversa nestes moldes, hoje. A Organização Mundial de Saúde já chegou à conclusão que pelo menos 50% das doenças mentais dos adultos começaram até aos 14 anos. Neste momento temos uma geração especifica, a Z, os zoomers, que estão completamente avariados do juízo — falando uma linguagem mais informal, mas é reconhecido. Digo isto com um sorriso, mas é rir para não chorar. Os cientistas já dizem que a geração tem características tais que nem sabem bem que bicho é este em termos da saúde mental. O suicídio nesta geração é a primeira causa de morte em alguns países, a segunda na Europa, a segunda a nível mundial, já. Portanto, estamos aqui a começar a falar mais abertamente sobre a saúde mental dos adultos e estamos a esquecer-nos dos mais novos, que são adultos amanhã e que não estão a ganhar nada ainda com este debate que os adultos estão a fazer. E isto preocupa-me muitíssimo. Lá está, preocupa-me a mim, objetivamente, e preocupa a Marta que pensa no seu caso pessoal e vai lá atrás, à adolescência e à infância, e percebe que é lá que está a raiz do mal.
Agradecimentos: Pestana Hotel Group
“Labirinto – Conversas sobre Saúde Mental” é uma série de entrevistas do Observador em parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento. Em cada conversa, os convidados — figuras públicas de várias áreas, da política ao entretenimento — fazem um relato pessoal e detalhado da forma como lidaram ou lidam ainda com problemas de saúde mental — os sintomas, os tratamentos, as recaídas e a recuperação — num esforço para combater o estigma associado a este tipo de doenças. Pode ler aqui as entrevistas anteriores:
- Marisa Matias e o burnout. “Assustei-me quando percebi que podia não recuperar as minhas capacidades cognitivas todas”
- Hugo van der Ding e o transtorno bipolar. “Passei anos a pensar: como é que eu seria se não fosse bipolar? Isto sou eu. E não trocava por nada”
- Maria Botelho Moniz e o luto. “O tempo não cura absolutamente nada. É um mito”
- Raminhos e o transtorno obsessivo-compulsivo. “Já quase não saía de casa com medo de tocar nas coisas”
- Rita Redshoes e a depressão pós-parto. “Não acho que me vá esquecer disso. Aliás, pergunto-me muita vez se quero voltar a ser mãe”
- Bárbara Timo e a depressão. “Dizemos coisas a nós próprios que não diríamos a um inimigo”
- Fátima Lopes e o burnout. “Quando queria respirar fundo cansava-me. Quando estás aí, já não dá. Estás em cima do risco vermelho”
- Anna Westerlund e o luto. “A maior dor na perda do Pedro foi a solidão, sentir-me completamente sozinha sem estar sozinha”
- Liliana Campos e a depressão. “Pensava que era uma coisa para pessoas fracas”
- Vítor Emanuel e a depressão. “Fui trabalhar com o meu pai a conduzir e a minha mãe atrás a dar-me a mão”
- José Carlos Pereira e a adição. “Ter ficado rotulado foi uma das coisas mais difíceis de ultrapassar”
- Quimbé e a depressão. “Choras e não sabes porque é que choras, estás numa dor constante”
- João Vieira de Almeida e a depressão. “Tive a certeza de que tanto fazia estar vivo como não estar”
Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.
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