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Máscaras em desfiles, empresários receosos e perdas de milhões. O novo coronavírus é o pior pesadelo da indústria da moda

Entre ausências e precauções, Paris cumpre o calendário. O luxo acumula prejuízos milionários. Em Portugal, os empresários esperam que o Covid-19 não devaste os setores do calçado e do vestuário.

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[em atualização]

Há muito que o coronavírus deixou de ser apenas uma preocupação para as autoridades de saúde pública. A cada notícia sobre a propagação do vírus, a economia estremece e a indústria da moda tem sido um dos setores mais expostos. Por um lado, uma China parada compromete as necessidades de produção das empresas de fast fashion, bem como as, por vezes, complexas cadeias de fornecimento que afetam até os produtos made in Europe. Por outro, uma China enquanto força de consumo e que representa à volta de 40% do mercado das marcas de luxo, obrigadas pela quarentena a encerrar dezenas de lojas. Estima-se que, para essas, a atual crise possa traduzir-se num prejuízo de 40 mil milhões de euros.

Portugal não está a salvo. No setor do calçado, que exporta 98% do que produz, são temidas sobretudo as consequências macroeconómicas e a longo prazo. Já no vestuário, com o enfraquecimento das ligações logísticas ao oriente e com o coronavírus a ameaçar Itália, grande fornecedor de tecidos, a indústria pode colapsar mais cedo, momento para a intervenção do Governo. E porque moda é também sinónimo de ajuntamento, quais serão os planos para os dois principais eventos desta área em território nacional? A ModaLisboa começa já a 5 de março.

Paris e Milão. Semanas da moda e feiras já sentem efeitos

Paris cumpre religiosamente um dos seus calendários mais sagrados, o da semana da moda. Ainda antes do início do evento, que se estende até 3 de março, a Fédération de la Haute Couture et de la Mode anunciou o cancelamento de cinco desfiles de designers asiáticos e a passagem de um sexto para o formato de apresentação. Ao mesmo tempo, assegurou uma visibilidade especial destas marcas nas suas redes sociais. Com dezenas (até mesmo centenas) de asiáticos obrigados a permanecer em terra, dado o risco de contágio do coronavírus, a federação comprometeu-se a reforçar a cobertura dos desfiles, principalmente nas plataformas Weibo e Douyin.

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Desfile de Dries van Noten, esta quarta-feira, em Paris © ANNE-CHRISTINE POUJOULAT/AFP via Getty Images

AFP via Getty Images

Fora do calendário de desfiles, a Hugo Boss decidiu fechar o showroom na cidade luz. Ao mesmo tempo, a marca optou por manter isolados os colaboradores que marcaram presença na Semana da Moda de Milão — durante os próximos dias, não vão viajar. No que toca às feiras que decorrem em paralelo com a semana da moda, além da ausência dos clientes chineses, também as habituais comitivas japonesas e coreanas estão a registar uma quebra. Marcas e feiras enfrentam agora o desafio de fazer chegar informação sobre as coleções ao outro lado do globo. É tempo de desenvolver ferramentas alternativas, como é o caso dos showrooms virtuais.

As precauções surgem ainda da parte dos próprios convidados dos desfiles. As máscaras podem não ser o acessório mais apetecível para quem ocupa um assento na prestigiante primeira fila, mas isso não impediu o belga Dries van Noten de distribuir algumas pelos seus convidados, no desfile desta quarta-feira. Por outro lado, nunca a pergunta “Esteve em Milão?” teve uma conotação tão grave. A ausência de jornalistas faz-se sentir, sobretudo do lado da imprensa italiana e asiática. A revista Vogue, que optou por encerrar os seus escritórios em Milão com o escalar da ameaça no norte de Itália, já ditou que esta será uma estação de “acenos e sorrisos à distância”, pelo menos para os seus editores. Até à data foram diagnosticados pelo menos 130 casos de coronavírus em França e três pessoas morreram na sequência da infeção.

No panorama internacional, as semanas da moda de Nova Iorque e de Londres, entre os dias 3 e 18 de fevereiro, decorreram sem constrangimentos. Com o crescendo da ameaça de contágio na Europa, em particular com o aparecimento dos primeiros casos em Itália, foi precisamente em Milão que os eventos do setor começaram a demonstrar sinais de prevenção.

Rapaz a posar de máscara, durante a Semana da Moda de Milão © Edward Berthelot/Getty Images

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Na MICAM, a maior feira de calçado do mundo, foram instalados dispensadores de gel desinfetante. A quebra no número de visitantes acabou, no entanto, por se revelar menor do que o estimado pela organização. A feira perdeu 5% dos visitantes em relação à edição anterior, ausências que se fizeram notar, sobretudo, entre os buyers asiáticos e britânicos. A Semana da Moda de Milão arrancou em seguida, mas só nos últimos dias, com os primeiros casos de infeção pelo Covid-19 no país, é que o vírus começou a interferir no calendário de desfiles.

No dia 23 de fevereiro, o desfile de Giorgio Armani decorreu sem público por iniciativa do próprio criador, embora, no mesmo dia, a marca Dolce & Gabbana tenha optado por apresentar a coleção outono-inverno 2020/21 diante de uma plateia com dezenas de convidados. Quem assistiu ao desfile de Armani fê-lo através da transmissão em direto na internet.

A mesma medida foi, mais tarde, anunciada pela Camera Nazionale della Moda Italiana para a apresentação da portuguesa Alexandra Moura, marcada para a manhã seguinte. Em poucas horas, a organização optou por cancelar os dois desfiles agendados para o último dia da fashion week, na sequência de novas medidas preventivas anunciadas pelo Ministério da Saúde e pelo Governo Regional da Lombardia.

E as semanas da moda portuguesas, estão preparadas para o coronavírus?

Em Portugal, avizinham-se os dois maiores eventos desta área. A ModaLisboa arranca já no próximo dia 5 de março, com os desfiles a decorrerem entre sexta-feira e domingo nas Antigas Oficinas Gerais de Fardamento e Equipamento do Exército. “será implementado um conjunto de medidas pré e durante o evento enquanto Plano de Contingência perante o COVID-19, por forma a assegurar as melhores condições de segurança e saúde, tanto para trabalhadores como para visitantes”, informou a organização do evento, através de comunicado enviado esta segunda-feira, 2 de março.

As medidas incluem a “monitorização dos diferentes públicos-alvo, nomeadamente convidados e equipas internacionais, que tenham como país de origem áreas com transmissão comunitária ativa nos último 14 dias”, a “implementação de medidas de rastreio junto dos colaboradores e todos os parceiros em atividade no evento”, o “reforço de medidas de desinfeção em todos os locais do recinto e disponibilização de dispensadores de gel desinfetante”, a instalação de um “posto médico no recinto com presença de enfermeiros e socorristas para rastreio e avaliação de sintomas” e ainda a preparação de uma sala de isolamento.

A organização da ModaLisboa prevê a possibilidade de o evento vir a decorrer à porta fechada, “no caso da situação se agravar”, com garantia da transmissão dos desfiles em livestream.

A próxima edição da ModaLisboa decorre entre os dias 5 e 8 de Março © Melissa Vieira/Observador

MELISSA VIEIRA/OBSERVADOR

A cada edição, a Modalisboa conta com uma média de 20.000 visitantes, dos quais cerca de 100 são convidados internacionais. São sobretudo jornalistas, designers e buyers, na maioria provenientes de Espanha, França, Itália, Reino Unido, Alemanha, Dinamarca, Países Baixos, Estados Unidos, Brasil e Dubai, entre outros.

O Portugal Fashion, cuja próxima edição decorre entre 12 e 14 de março, na Alfândega do Porto, anunciou esta tarde um conjunto de medidas para evitar a disseminação do novo coronavírus durante o evento, a começar pelo cancelamento do desfile do italiano Gilberto Calzolari, marcado para domingo, “uma vez que este jovem criador e a sua equipa de produção são oriundos de uma área com transmissão comunitária ativa do COVID-19”.

“O Portugal Fashion não prevê tomar mais medidas que condicionem o regular funcionamento do evento”, contudo, caso o número de infetados se agrave em Portugal e se as autoridades de saúde assim o recomendarem, a organização admite a possibilidade de “restringir o acesso aos desfiles ou mesmo decidir pela sua realização à porta fechada, assegurando a respetiva transmissão on-line”.

Entre as restantes medidas, está a elaboração de um plano de contingência “que contempla o diagnóstico e o encaminhamento de casos suspeitos de COVID-19 durante o evento, em articulação com os serviços de saúde local e de saúde pública” e a correta higienizarão de superfícies no recinto e irá recomendar a convidados e ao staff técnico a não comparecerem no evento se estiverem doentes ou se tiverem estado em contacto com casos confirmados de COVID-19 ou, ainda, numa área com transmissão comunitária ativa nos 14 dias anteriores à data dos desfiles.

O Covid-19 e a indústria da moda. Epidemia leva a perdas de milhões e exige plano B

Por todo o mundo da moda, o impacto do Covid-19 é real, das grandes cadeias de fast fashion às marcas de luxo. O encerramento de lojas na China, ainda em janeiro, começou por ser a mais imediata consequência da propagação do vírus. Para o setor mais elevado da indústria, as perdas financeiras já rondam os 40 mil milhões de euros, segundo o Business of Fashion. Os consumidores chineses representam quase 40% do mercado de luxo mundial.

Burberry e Prada já cancelaram desfiles a oriente. Há uma semana, a primeira já tinha encerrado mais de um terço das 64 lojas que tem em território chinês. Só a Capri Holdings, detentora das marcas Versace, Jimmy Choo e Michael Kors, estima atingir uma quebra de 92 milhões de euros no próximo trimestre. Uma queda também visível em marcas de desporto. Na China, a faturação da Adidas caiu 85% em relação ao mesmo período de 2019. A Under Amour estima que a epidemia lhe custe mais de 55 milhões de euros. A Puma já fechou mais de metade das lojas no país.

Vendedor numa loja de luxo em Sydney, na Austrália © Jenny Evans/Getty Images

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Do lado da fast fashion, grupos como a Inditex e a Hennes & Mauritz tendem a dispersar a rede de produção, mantendo unidades na Turquia e no Norte de África. Contudo, uma análise feita pela suíça UBS, e divulgada pelo Finantial Times, determinou que estas eram, precisamente, as duas empresas mais expostas às consequências económicas do coronavírus. A Edited, uma start-up de análise de dados na área do retalho, registou uma quebra de 3,5% na quantidade de novos produtos lançados pelas marcas  de mass market nos mercado britânico e dos Estados Unidos, desde o início do ano.

Nos últimos dias, foi a vez do gigante Primark acusar sintomas da crise gerada pelo vírus. Se a epidemia persistir na China, algumas linhas de roupa poderão falhar nas lojas. Com mais de 40% dos produtos produzidos nesse país, a empresa tenta agora avaliar a capacidade das fábricas chinesas para cumprir as encomendas, embora o Ano Novo Chinês tenha obrigado, como é regra, ao reforço dos stocks. Ao mesmo tempo, a Primark já está em conversações com fornecedores no Bangladesh, Cambodja, Vietname, na Turquia e na Europa de Leste, para o caso das fábricas chinesas falharem.

Calçado e vestuário. O ponto de situação dos dois setores em Portugal

Anualmente, o setor português do calçado importa 5 milhões de euros da China. Falamos de palmilhas, saltos, solas e acessórios que, ainda assim, não vão além de 10% dos componentes requeridos por esta indústria. “Os fornecedores chineses não são assim tão relevantes. Importamos componentes para calçado e peles, num total de quase 60 milhões de euros por ano, e em nenhum desses produtos a China é um fornecedor de primeira linha”, afirma Paulo Gonçalves, diretor de comunicação da Associação Portuguesa dos Industriais de Calçado, Componentes, Artigos de Pele e seus Sucedâneos (APICCAPS), em declarações ao Observador.

Fábrica de calçado Savana, em Felgueiras © Hugo Delgado/Lusa

HUGO DELGADO/LUSA

“As empresas de calçado não estão paradas”, assinala ainda. “O que nos preocupa é o clima de instabilidade”, admite o porta-voz. A principal adversidade que paira sobre o setor (que exporta 98% do que produz) é, na realidade, a longo prazo. O abrandamento da economia mundial como consequência de uma eventual pandemia é o grande motivo de preocupação dos industriais portugueses. Itália e Espanha são fornecedores chave do setor, quer a nível de componentes, quer no que toca a peles. Ainda assim, Paulo Gonçalves assegura que o número de infeções pelo Covid-19 no primeiro país e as consequentes medidas de contenção sugeridas pelo governo “não afetam, para já” o setor nacional.

Quanto a medidas preventivas dentro das próprias unidades de produção, o mesmo porta-voz salienta a importância das diretrizes da Direção-Geral de Saúde (DGS). “Enviámos às empresas um conjunto de sugestões da DGS — lavar as mãos regularmente, de preferência utilizando líquidos próprios para uma correta desinfeção, e medir a temperatura duas vezes por dia, caso alguém tenha estado recentemente numa zonas com casos confirmados. Acima de tudo, continua a existir um clima de normalidade. Mas estamos vigilantes”, conclui.

Há pouco mais de uma semana, e na qualidade de presidente da Confederação Europeia de Indústrias de Calçado, Luís Onofre falou sobre o impacto do abrandamento do setor produtivo chinês neste mesmo setor. “A prevenção passa por tentarmos apostar em novos fornecedores europeus, que é a boa notícia”, sugeriu, face à falha de produtos provenientes da China. Uma posição, de certa forma, partilhada por César Araújo, presidente da ANIVEC (Associação Nacional das Indústrias de Vestuário e Confeção). “A Europa está refém da China e tem de começar a pensar na reindustrialização”, refere ao Observador, falando ainda num desequilíbrio nas relações comerciais e na atual crise como empurrão à reflexão.

No setor do vestuário, o problema é duplo — na cadeia de fornecimento, com componentes como forros, telas, acessórios, etiquetas e botões importados da China, e na crise enfrentada pelo retalho, sobretudo o do luxo, obrigado a encerrar lojas, o que se reflete na redução de encomendas. “Fomos das associações que mais cedo e rápido alertaram para o que o coronavírus pode trazer à nossa indústria. A China representa mais de 20% de todos os produtos transacionáveis do mundo, só por aí o impacto é brutal”, continua César Araújo.

Com 230 funcionários e uma capacidade de produção de 1.700 peças por dia, a Calvelex é uma das fábricas portuguesas que suspendeu recentemente parte da produção © Calvelex

De momento, o impacto na indústria portuguesa de vestuário não é quantificável, segundo afirma. O presidente da ANIVEC fala ainda na falha de “instrumentos de dinamização logística”, caso de companhias aéreas como a British Airways e a Lufthansa que suspenderam voos para a China, e dos “barcos [de mercadorias] que chegam da Ásia vazios”. O setor do vestuário representa uma faturação de 3,2 mil milhões de euros por ano, conta com cerca de 4.000 empresas e emprega à volta de 120.000 pessoas.

Quanto ao abrandamento de algumas fábricas portuguesas, César Araújo garante ser uma prática comum num setor sazonal. “O contrato coletivo de trabalho permite-nos ter esta adaptabilidade, através de férias. A maior parte das empresas faz isto todos os anos”, afirma. Numa altura em que as fábricas de vestuário estão, por norma, ocupadas com repetições de encomendas das coleções de verão e prestes a iniciar a produção de roupa de inverno, o presidente da ANIVEC defende que, por enquanto, nada foge ao normal funcionamento do setor.

Contudo, fala numa reavaliação da situação dentro de uma semana. Caso o coronavírus continue a afetar a produtividade a oriente e em Itália, importante fornecedor de tecidos, as soluções terão de ser articuladas com o Governo. “Já estamos em conversações com o Ministério da Economia, com o Ministério do Trabalho e com a Secretaria de Estado da Internacionalização”, revelou. César Araújo recusou, no entanto, adiantar detalhes sobre as medidas em causa.

Artigo atualizado dia 3 de março, às 17h20, com as medidas de contingência anunciadas pelo Portugal Fashion.

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