Há vários anos que a Universidade Católica tem a ambição de ter um curso de Medicina e a concretização desse desejo está mais perto do que nunca. O pedido de acreditação foi feito em outubro do ano passado e, para abrir as salas de aulas, nas antigas instalações da Faculdade de Engenharia da universidade, basta que chegue a luz verde da Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior (A3ES) — processo que costuma demorar um ano. António Almeida, futuro diretor da Faculdade de Medicina, está confiante de que não faltará muito tempo para receber os primeiros 80 a 100 alunos: tudo o que a lei exige, a Católica tem, garante. Apesar disso, há duas semanas, o novo curso de medicina foi motivo de polémica entre o primeiro-ministro e a Ordem dos Médicos.
Basílio Horta, presidente da Câmara Municipal de Sintra, município que irá receber a faculdade, acusou o bastonário Miguel Guimarães de estar a atrasar o processo, depois de a Ordem dos Médicos ter dado parecer negativo (não vinculativo) à abertura do novo curso. Logo depois foi António Costa a apoiar as declarações de Basílio Horta, sublinhando que faltam médicos no país e que são precisas mais vagas em Medicina. O bastonário retorquiu: o que falta são médicos no Serviço Nacional de Saúde e não em Portugal.
Ainda esta segunda-feira, as grávidas da Grande Lisboa estavam a ser encaminhadas para Hospital de Loures por falta de médicos especialistas nos outros hospitais.
Do lado da Católica, António Almeida não se alonga muito sobre este assunto, mas diz estar curioso em saber quais são as objeções que a Ordem dos Médicos apresenta. Concorda com o primeiro-ministro e diz até que “a falta de médicos está a chegar ao privado” e que é preciso olhar para o perfil dos médicos que exercem, já que muitos deles não têm um papel ativo no sistema de saúde.
O curso da Católica terá propinas a oscilar “entre os 12 e os 20 mil euros por ano” — e, ainda assim, abaixo dos preços praticados na Europa —, mas António Almeida sabe que, nos primeiros anos, não chegará “a nata, os melhores alunos”. Antes de ter provas dadas da qualidade do curso, sabe que os estudantes irão escolher primeiro as universidades estatais, embora acredite que irão preferir a Católica, em vez de terem de mudar de curso ou de irem para o estrangeiro. Foi algo que ele próprio teve de fazer e, por isso, considera ser um ponto forte que leva consigo para a direção da futura Faculdade de Medicina. Depois de estudar em Cambridge, não foi fácil voltar a entrar no sistema em Portugal. Conseguiu e hoje trabalha no Hospital da Luz, em Lisboa, onde é diretor do serviço de hematologia.
Sobre o curso, diz que trará inovações importantes como, por exemplo, a metodologia usada — será centrada no aluno, fugindo à aula tradicional. Os primeiros anos serão lecionados em inglês, o que abre a porta à internacionalização e à possibilidade de ter um corpo docente vindo de qualquer canto do mundo. Atualmente, a Católica já tem compromissos escritos com 160 professores, entre médicos e investigadores, prontos para arrancarem com o curso, provavelmente no ano letivo 2020-2021. Os seus alunos, promete, serão profissionais com mais competências sociais, prontos para tratar os doentes com compaixão e empatia, valores que lhes serão incutidos durante o curso. “O doente procura a empatia, o contacto humano, uma explicação sensata daquilo que leu no Dr. Google. Estas competências não estavam nos cursos durante a minha formação médica e só recentemente começámos a pensar nelas.”
A ética será outra vertente forte, e que considera que tem tido pouca atenção na formação que existe atualmente. “Queremos gerar profissionais, adultos responsáveis, capazes de tomar as suas próprias decisões, as técnicas e as éticas.” No final, espera que os empregadores, estatais ou privados, acabem a escolher os seus alunos, antes dos dos outros cursos, devido à sua elevada qualidade.
Ter um curso de Medicina é uma ambição antiga da Universidade Católica. Houve muito trabalho desenvolvido antes de se chegar aqui, prestes a abrir as portas?
É uma ambição antiga da Universidade Católica Portuguesa, penso que se pode dizer que se enquadra dentro da missão do que é uma universidade católica, com a sua missão de cristianismo, de cuidar das pessoas e dos doentes. Como tal, seria impensável uma universidade católica, tal como se vê noutras espalhadas pelo mundo, não abordar a questão da saúde. Já temos vários cursos nessa área, medicina dentária, enfermagem, psicologia, etc. Temos uma longa tradição na área da saúde, mas só agora é que se reuniram as condições ideais para se ter um curso de Medicina de qualidade sediado na Universidade Católica.
E já há data para arrancarem com o curso?
O processo de acreditação é complexo e de avaliação cuidadosa, como deve ser. Nós submetemos a proposta do curso à Agência de Acreditação e Avaliação do Ensino Superior [A3ES] em outubro do ano passado e estamos à espera da resposta. Assim que a tivermos, temos tudo preparado para avançar. Não estamos em stand-by, há muita atividade académica. O corpo docente — não contratado, mas que tem um compromisso escrito com a universidade —, está de tal forma comprometido que os docentes do 1.º e do 2.º ano já estão a avaliar o currículo, a adaptá-lo para a realidade portuguesa, uma vez que vem da Holanda. Vamos acabar essa revisão em setembro, planeando a formação dos docentes a partir daí.
Da vossa parte está tudo feito? Em que parte do processo de acreditação é que se encontram?
Assim que tivermos resposta da agência, avançamos com o resto: no fundo, é reabilitar as instalações que temos no campus de Sintra. Da nossa parte, está tudo e já entregámos o projeto. Tivemos o cuidado de ver se preenchemos todos os requisitos que um centro académico clínico tem de ter, segundo o decreto lei publicado no ano passado. Preenchemos todos, estamos só à espera de resposta.
Vão trabalhar em conjunto com um hospital. Qual será?
Vai ser o Grupo Luz Saúde, que tem não só um hospital muito grande aqui em Lisboa como várias unidades hospitalares na região e também fora de Lisboa, o que lhe dá uma capacidade muito grande de receber alunos. A nossa aposta é ter nos primeiros anos poucos alunos por serviço, de maneira a que se integrem no serviço e que tenham uma verdadeira experiência do que é ser médico. Não queremos que seja aquela metodologia clássica de 20 alunos a olhar para o doente lá ao fundo. Este parceiro é muito importante, pela qualidade que tem, por ser polivalente e porque não vamos estar a competir com as outras faculdades ao enviarmos os nossos alunos para lá. Não queremos tirar lugares a alunos de outras faculdades, queremos somar os nossos à capacidade instalada de ensino. Assim que tivermos resposta da agência, avançamos com a reabilitação das instalações que temos no campus de Sintra.
Este ano letivo sabemos que é impossível, mas acredita que no próximo poderão estar a funcionar?
Tudo isso depende da resposta da acreditação.
O vosso curso foi muito falado há duas semanas. Basílio Horta, presidente da Câmara Municipal de Sintra, e António Costa, primeiro-ministro, falaram dele. Tudo porque, alegadamente, a Ordem dos Médicos deu um parecer técnico negativo à abertura do curso. Tem alguma ideia do porquê deste parecer negativo e em que que ele se poderá basear?
Infelizmente, ainda não me chegou a mim ou à universidade nenhum documento com as fragilidades técnicas de que a Ordem fala. Como disse, temos o decreto lei, sabemos que pontos temos de preencher, e preenchemos, sabemos que a comissão de avaliação apontou algumas fragilidades, todas superáveis. Tenho pena que a Ordem dos Médicos tenha vindo para as notícias dizer isto, sem nos comunicar a nós. Não sabemos em concreto quais são as fragilidades que a Ordem dos Médicos aponta.
Mas consegue imaginar o que possa ser?
Confesso que tenho alguma dificuldade. Tendo um documento que detalha aquilo que uma faculdade tem de ter e, conseguindo nós preencher todos os requisitos, não estou a ver que fragilidades técnicas haverá. Temos docentes suficientes, temos instalações adequadas em Sintra e teremos também um centro de investigação, como está previsto para um centro académico clínico. Temos um hospital universitário com capacidade suficiente para receber os alunos que vamos enviar. Tenho curiosidade em saber qual é a objeção da Ordem dos Médicos.
Mas esta é uma postura antiga da Ordem dos Médicos, defender que não são precisos mais cursos de medicina em Portugal.
Sim, o debate sobre o número de médicos é um debate longo e difícil. Quando olhamos para os números da OCDE estamos um bocadinho acima, mas quando vamos olhar para quem são esses médicos, muitos estão acima dos 65 anos, muito estão já reformados e mantém alguma atividade clínica porque a maioria não deixa de atender doentes.
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Devido à idade, alguns deles podem já não ser obrigados a fazer noites e urgências, por exemplo.
Ou têm só um consultório e fazem uma hora de consulta por semana. Não têm um papel muito ativo no Serviço Nacional de Saúde, nem no privado. O seu papel é um papel pessoal de atendimento e não um papel ativo no sistema de saúde. Muito pragmaticamente, se olharmos para as listas de espera, para os tempos na urgência, tudo isto indica que, por uma razão ou outra, há falta de médicos para atender estes doentes. Se houvesse médicos suficientes, os doentes seriam atendidos mais rapidamente.
Somos o terceiro país da UE que tem maior rácio de médicos por 1000 habitantes, mas, de facto, essas estatísticas não nos dizem quem são esses profissionais. O problema passa por aí?
Para perceber este número, temos de perceber o que é que esses médicos fazem. Devíamos também olhar para o reverso da medalha: se os serviços estão a ser cumpridos, se os doentes estão a receber os cuidados que precisam — isso é um indicador muito melhor para ver se há corpo suficiente. Se preciso de um canalizador, podem dizer-me que há 20. Se nenhum vem arranjar o meu cano, é porque não há que chegue.
Volto aos argumentos do bastonário da Ordem dos Médicos que, por diversas vezes, afirma que em Portugal não faltam médicos, faltam médicos é no Serviço Nacional de Saúde.
Trabalho no Hospital da Luz [privado] e as cirurgias também estão cheias.
O que está a dizer é que o problema já chegou também ao privado?
O problema da falta de médicos também está a chegar ao privado. Se tentar marcar uma consulta para mim hoje, já só lhe marcam para setembro. No privado. Acho que é um problema generalizado. O primeiro-ministro e Basílio Horta disseram, e muito bem, que precisamos de mais médicos, temos poucos médicos nos centros de saúde. Esta é uma vertente importante no curso que vamos implementar: vamos focar-nos muito em cuidados primários de saúde. Os alunos vão ter muito tempo com os médicos de família. A formação pós-graduada será com o Governo e a Ordem dos Médicos, claro, mas iremos tentar fazer perceber aos alunos a importância dos cuidados de saúde primários da medicina familiar. E isso é uma grande mais valia para um país como o nosso.
No meio desta polémica toda, o primeiro-ministro acabou por apoiar indiretamente a abertura do vosso curso, um curso de medicina numa universidade privada. Isso dá-vos algum conforto e faz-vos crer que a acreditação estará para chegar?
A agência de acreditação é independente e tem como papel principal garantir a qualidade do curso, e é isso que queremos que faça, é aquilo que nós próprios queremos assegurar que temos. O papel da agência é muito importante para garantir que o curso vai ter qualidade. Achamos, e depois de termos falado com vários peritos, que o nosso curso tem a estrutura, os docentes e a capacidade científica suficiente para ter um curso de medicina. Por isso, repito, não sei o que a Ordem dos Médicos poderá dizer. Olhamos para o que é preciso, para o que temos, e tudo encaixa. O primeiro-ministro diz que há necessidade de formar mais médicos. O próprio Alberto Amaral [presidente da A3ES] diz que, se há falta, é preciso aumentar os lugares no ensino superior, falando de uma forma geral e não apenas de Medicina. É isso que queremos: aumentar o número de lugares para médicos, de maneira a que os nossos melhores alunos possam ficar no país. Não estou a dizer que vou já, no primeiro ano, ficar com a nata, com os melhores alunos. É natural que não. Não tenho ilusões. Mas aqueles que muitas vezes não entram em Medicina, que são obrigados a ir para outro curso ou para o estrangeiro — e que depois têm muita dificuldade em voltar, e sei-o bem porque estudei no estrangeiro —, poder retê-los cá com um novo curso é bom para o país.
O que é que podemos esperar da formação que a Católica vai oferecer? Que tipo de inovação vão ter neste curso?
Tem vertentes de inovação muito fortes. A primeira é a colaboração com uma universidade estrangeira. Vai ser o primeiro curso de medicina em Portugal a ter uma colaboração tão estreita com, neste caso, a Universidade de Maastricht, na Holanda. Esta parceria não só abre à internacionalização, mas também nos permite ter contactos privilegiados com a Europa e com outras universidades. Sobretudo permite-nos adotar um currículo e uma metodologia de ensino já testada, muito sólida, e que permite aos alunos acabarem o curso com uma grande bagagem de competências a nível médico. Passando para o currículo: claro que vamos ensinar conhecimento, mas vivemos num mundo em que o conhecimento está facilmente acessível a todos. Não há nenhum doente que entre no consultório que não tenha ido antes ao Google ver o que é que tem antes de falar comigo.
O Dr. Google é o grande rival dos médicos?
Exatamente. O que temos de ensinar aos médicos é onde ir procurar conhecimento fidedigno, como é que ele se enquadra no dia a dia, mas sobretudo as competências que um médico tem de ter. São competências técnicas, como observar o doente, como interpretar exames, mas também competências humanas que é o que leva os doentes aos médicos. O doente procura a empatia, o contacto humano, uma explicação sensata daquilo que leu no Dr. Google. Estas competências não estavam nos cursos durante a minha formação médica e só recentemente começámos a pensar nelas.
É verdade, até já começámos a falar dessas competências no ensino primário e secundário.
Exatamente. Cada vez mais temos de ensinar os alunos a pensar e menos a decorar informação. Essa é a grande inovação do nosso curso: é o foco nas competências, o foco no ensino centrado no aluno. Por que é que ele é tão importante? Porque todos aprendemos de forma diferente. Eu não vou aprender a ver um esfregaço de sangue se já o souber fazer, mas, se calhar, vou aprender a olhar para uma radiografia. Há alunos que chegam já com conhecimentos e que têm de os completar. Por isso, vamos adequar o máximo possível o conhecimento e as competências àquilo que o aluno precisa. Individualmente. Fazemos através de metodologias de ensino em que são os alunos que vão buscar a informação, o problem base learning. Não será a única metodologia, mas será uma em que os alunos serão muito mais ativos do que passivos na sua aprendizagem.
Uma metodologia mais centrada no aluno e menos no professor?
Muito mais. O professor vai funcionar mais como mediador.
Como mentor?
Como mentor. Vamos ter vários. Vamos ter especialistas que vêm dar aulas teóricas — especialistas em anatomia, em fisiologia.
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Sem esse conhecimento não seriam médicos…
Claro. Não quero dar a ideia de que o conhecimento vai ser posto de parte. Não. Vamos ensinar o conhecimento mais atual que existe, mas vamos também ter os tutores que, ao longo de cada disciplina, vão guiar os alunos no conhecimento que eles próprios têm de ir buscar à biblioteca, à experiência própria, aos hospitais, aos colegas. Vamos ter mentores que vão acompanhar os alunos ao longo de todo o percurso, olhar para atitudes de profissionalismo, dificuldades de interação com doentes, colegas, que os alunos vão encontrando, ajudando-os a desenvolver cada vez mais o seu profissionalismo.
Por vezes, cria-se a ideia de que se apostamos nas competências deixamos de lado o conhecimento. A aposta é na interligação das duas?
Na interligação das duas, claro. Já houve muita investigação sobre este método de ensino e o que ela mostra é que os alunos saem com o mesmo conhecimento do método clássico letivo, mas com mais confiança profissional e, sobretudo, com mais competências técnicas de saber como é que hão-de funcionar em sistemas diferentes dos que têm. Ou seja, têm muito mais flexibilidade apesar de terem os mesmos conhecimentos.
Sendo o curso da Universidade Católica, saem também com valores cristãos na forma como vão lidar com os seus doentes?
O cariz da universidade faz com que isso seja inevitável, a própria medicina tem de recuperar esse cariz de olhar para um doente com a compaixão e empatia que ele precisa. Não é uma questão de filosofia. Eu e todos os médicos o dizemos: os doentes vêm sobretudo à procura de quem mostre compaixão. É muito importante ensinarmos isto aos alunos e passar-lhes esse cariz de respeito pela pessoa, pela sua liberdade, mas também todo um cariz ético. A nossa missão como Faculdade de Medicina não é endoutrinar de que é assim que têm de pensar, mas dar-lhes as ferramentas e conhecimento ético que os ajude a tomarem as suas próprias decisões. Queremos gerar profissionais, adultos responsáveis, capazes de tomar as suas próprias decisões, as técnicas e as éticas.
As questões éticas estão na ordem do dia. O avanço da tecnologia, da biomedicina, coloca-nos perante questões com que não precisávamos de nos preocupar no passado. Esse lado da ética vai ser uma parte importante do curso?
Esse lado é essencial. Estamos numa fase de desenvolvimento da Ciência muito estimulante, muito entusiasmante, com descobertas fantásticas. Acho que nunca até hoje conseguimos ter tanto desenvolvimento, tanto conhecimento, tantas coisas novas. Como em tudo, há limites que podem ser perigosos ultrapassar e há questões que se levantam com todos os tratamentos. Não estou apenas a falar das questões de que se fala muito, como o aborto, o embrião, ou a eutanásia. Estou também a falar de, por exemplo, quando se deve continuar, ou não, um tratamento, quais são os adequados, quais são os que têm eficácia de custo para o doente, se estamos a reduzir o sofrimento continuando a tratar ou não. Tudo isto são questões éticas muito importantes, com que os médicos se deparam no dia a dia e para as quais, até agora, tem havido preparação limitada.
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Houve casos recentes nos jornais. A história da jovem holandesa Noa, apesar de não se ter tratado de uma morte assistida, pôs o mundo a discutir a eutanásia de jovens. E o caso da bebé Matilde, que precisava do medicamento mais caro do mundo, e cujo pedido extraordinário de uso do medicamento seria apenas para ela e não para todas as crianças afetadas. Um médico tem de estar muito preparados para lidar com estas questões?
Sem comentar casos específicos, são situações um bocado extremas, mas com as quais nos deparamos no dia a dia. É injusto ter um aluno que sai de uma faculdade com todo o conhecimento técnico e teórico, mas que não tem alguma capacidade para tomar estas decisões. Claro que com a maturidade e a experiência, as decisões vão-se tornando mais fáceis.
Não serve de nada ter um médico que tem a técnica toda, mas que não sabe falar com o doente?
‘Não serve de nada’ é um bocado forte, mas percebo o que quer dizer. Temos de voltar à origem daquilo que é ser médico e que é o respeito pelo doente, pela ética do ser humano, a empatia, a compaixão… São competências profissionais que achamos importante os nossos alunos terem.
Essa vai ser então a grande inovação do curso, a aposta nas competências. E o dia a dia dos alunos também vai ser diferente? O funcionamento das salas de aulas vai ser diferente do tradicional?
Sim. As metodologias de ensino vão ser muito diferentes. O curso está dividido em blocos, os alunos vão ter aulas teóricas, cerca de oito por mês, e vão ter tutoriais. Nestes, os alunos em grupo resolvem problemas. Vou dar um exemplo: chega ao tutorial, encontram o professor e têm o problema de uma criança que tem diarreia e que está desidratada. Entre eles, discutem qual é o problema, o que têm de resolver, a questão que têm de perceber para conseguir resolver a questão — que é a desidratação da criança — vão estudar isso, permitindo-lhes enquadrar todo o conhecimento à volta daquela questão, desde a fisiologia do rim, da diarreia, do por que é que a criança fica desidratada, qual a melhor maneira de a hidratar. No final, voltam com as soluções e têm de discuti-las. Através da resolução destes problemas, angariam muito conhecimento e adquirem competências de resolução de problemas.
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Aprendem a raciocinar?
Sim, não é só saber de cor o que é a diarreia. Aprendem a raciocinar e a resolver questões. No dia a dia vão ter tutoriais, uma secção muito inovadora a que chamamos skills lab e que tem treino técnico de competências. Ali vão aprender como o rim funciona, vão ter modelos anatómicos, experiências com fisiologia do rim, vão poder tirar sangue uns aos outros. Vamos ter laboratórios com um aspeto muito diferente do normal, com macas, com modelos. Claro que vamos ter uma secção de anatomia grande e a anatomia adequada a cada sistema vai ser aprendida integrada no sistema. A grande aposta do currículo é a integração de todas as disciplinas à medida que se vão aprendendo. No meu tempo, aprendíamos anatomia, fisiologia, bioquímica e, no fim, juntávamos o puzzle. Aqui entregamos o puzzle já feito, eles desmontam-no, voltam-no a montar e ficam com o quadro completo logo ao princípio.
Foge à aula tradicional em que o professor fala e os alunos ouvem?
Completamente. Vamos ter essas aulas para questões específicas, mas muito da atividade de aprendizagem vai ser feita pelo próprio aluno. É ele que vai tomar a iniciativa de ir à biblioteca, de ir à anatomia ver os modelos que tem de ver. Claro que haverá partes obrigatórias e avaliação de cada disciplina, módulo e ano. Vão ter vários pontos de avaliação ao longo do ano, seja teórica com exames, seja presencial através de apresentações. Vamos ver como está o aluno em cada momento para poder guiá-lo da melhor forma.
Vão ter alunos a fazer percursos muito próprios, quase individuais?
Sim, dentro do que é possível. Temos uma estrutura curricular, uma base, mas os alunos vão ser acompanhados individualmente e vão ter avaliações muito personalizadas. Os alunos de Medicina vão ter um portfólio, como os estudantes de Arte, no qual vão pondo as experiências, o que aprenderam, o resultado dos trabalhos e que vai ser avaliado pelo mentor. Será uma avaliação muito importante.
Outra novidade é que vai ser lecionado em inglês.
Sim, os primeiros três anos. O inglês é uma competência importantíssima para todo o mundo científico, os alunos vão ter os materiais em inglês, as aulas em inglês, tudo de maneira a conseguirmos ter o curso todo em inglês. Isto permite não só o aperfeiçoamento do inglês dos alunos, mas também o contacto com o mundo médico internacional. E permite-nos trazer conhecimento exterior para dentro com mais facilidade.
Corpo docente ou alunos estrangeiros?
Ambos. Vamos ter professores convidados da Universidade de Maastricht, mas também de outros sítios. É muito fácil fazê-lo sendo o curso em inglês e é mais fácil aumentar a internacionalização do curso. E isso é outra grande novidade, também poderemos trazer alunos estrangeiros e Portugal é cada vez mais um destino de eleição para os universitários.
Aliás, o ministro do Ensino Superior, Manuel Heitor, tem insistido muito nessa tecla, que as universidades de Lisboa e do Porto têm obrigação de apostar na atração de estudantes estrangeiros.
Claro, isso traz uma riqueza cultural e de conhecimento e de aprendizagem muito grande.
O inglês não poderá ser um obstáculo a terem um corpo docente português?
É uma pergunta que nos preocupou muito no início do projeto. Como deve imaginar, o projeto já está todo montado, já temos corpo docente e ninguém levantou problemas a que o curso fosse em inglês. Apesar de ter sido uma preocupação, no final não se verificou e isso mostra-nos a importância do inglês no mundo científico, é a língua franca. Quase todos os médicos e cientistas — quase metade dos nossos docentes não vão ser médicos, serão cientistas — têm um inglês muito bom. E todos os alunos hoje em dia têm um inglês muito bom. Vai ser uma mais valia e não um obstáculo.
Há vários anos que as privadas tentam ter um curso de Medicina e tudo indica que a Católica será a primeira a consegui-lo. Pensando que haverá propinas a pagar, o que acha que levará um aluno a candidatar-se ao vosso curso e não a tentar entrar no público?
Gostava de começar por esclarecer o nosso estatuto. Vamos ser não estatal, mas não somos uma universidade privada, somos uma universidade pública não estatal. O Hospital da Luz é um privado, mas através dos acordos com a ADSE, com o SAMS, acabamos por ter uma grande proporção de doentes que naturalmente iriam para o público e que acabam no privado. Aqui há uma simbiose muito maior com o Serviço Nacional de Saúde do que noutros países onde há uma separação total. Os alunos não vão ter acesso só a uma classe privilegiada de doentes, com mais dinheiro, que consegue ter medicina privada. Vão ter acesso a todo o tipo de doentes. Um dos grandes atrativos que pode trazer os alunos para a nossa universidade é poderem ficar em Portugal. Muitos alunos que não conseguiram entrar nas universidades estatais tiveram de ir estudar para fora e penso que teriam preferido ficar cá. A novidade no método de ensino, a parceria com uma universidade estrangeira, a hipótese de internacionalização, de abertura de mais portas vai ser um atrativo. E tenho esperança de que à medida que nos formos desenvolvendo e formando médicos com elevada qualidade, a própria qualidade do curso será atrativa para os alunos. Mas tenho de ser realista: no princípio a atração não vai ser essa.
Para o primeiro ano já tem definido qual será o valor de uma propina e da média de acesso?
As propinas ainda terão de ser determinadas de acordo com os fundos que vamos angariar, com os financiamentos, etc. Mas estarão em linha com o valor das propinas das universidades de Medicina na Europa.
E isso será quanto?
Na Europa paga-se entre 12 a 20 mil euros por ano. Como digo, não está bem determinado, mas será abaixo disso.
E em relação ao acesso e às médias dos alunos?
Também aí vamos ser inovadores e ter provas de acesso personalizadas. Claro que grande parte do acesso vai ser feito através da média do ensino secundário, mas temos oportunidade de 15% da nota de acesso poder ser por seleção especial. Vamos usar isso: vamos ter entrevistas, um questionário curricular, e com essas metodologias vamos também conseguir selecionar os alunos que queremos. Inevitavelmente, aqueles que tiverem notas mais altas serão os que vão conseguir entrar.
Uma pergunta mais direta: acha que correm o risco de ficar com os alunos com médias mais baixas indo os que têm mais altas para o público?
Respondendo também diretamente, acho que sim. Qualquer aluno que tenha a possibilidade de ir para um sítio que já está estabelecido, que tenha provas dadas… É natural que prefira ir para uma universidade pública. Espero que com os anos, haja alunos que queiram vir para a Católica pelo curso. Tendo dito isto, espero também que o método de ensino inovador, mais prático, com muito mais contacto com os doentes, mais focado nas competências sirva também de atrativo para alguns alunos. Espero que haja alunos que ponham o nosso curso como primeira hipótese, apesar de haver universidades públicas.
Se tudo correr conforme os vosso planos, quantos alunos poderão receber no primeiro ano?
Estamos a pensar entre 80 a 100 alunos no primeiro ano e depois teremos cerca de 100 alunos por ano. A razão deste número é para termos a certeza de que mantemos a qualidade e o ensino personalizado de cada aluno.
E o corpo docente?
Vai ser relativamente grande, neste momento temos 160 pessoas já comprometidas, mas à medida que o curso for avançando vamos ter cada vez mais. Vamos ter um centro de investigação ligado à faculdade e muitos dos docentes virão daí. À medida que contratarmos investigadores, que ganharem bolsas e vierem trabalhar connosco, também vamos ter um corpo docente maior.
Chegou a ser avançado que iriam para as antigas instalações da Faculdade de Engenharia da Católica. Mantém-se essa ideia?
É esse o plano e que nos dá uma grande vantagem: é um edifício que já está feito para ser uma universidade, tem anfiteatros, laboratórios, cantinas, tudo o que é preciso. Teremos de fazer um laboratório de investigação mais específico, e um laboratório de anatomia que é uma coisa que Engenharia não tem. Não ter de fazer uma obra de novo, já nos adianta muito trabalho.
Depois de o curso começar, e quando formarem os vossos primeiros médicos, onde imagina que eles irão acabar? No Serviço Nacional de Saúde, no setor privado ou no estrangeiro?
Todas essas opções estão em aberto e uma das grandes mais valias do curso é essa, a de poder dar liberdade de escolha aos alunos. A carreira médica é muitas vezes vista como uma carreira apenas clínica e não é tanto assim. É muito heterogénea. Claro que a maioria dos médicos que faz clínica é para isso que entra na faculdade, é essa a sua vocação, mas há médicos que querem seguir o caminho da investigação, há quem queira ir para a indústria farmacêutica desenvolver novos medicamentos. Há médicos que acabam a fazer gestão hospitalar. E há quem queira ir para fora, seja para a Europa seja para os Médicos sem Fronteiras. A minha intenção é a de que este curso prepare os alunos para fazerem aquilo que querem, terem liberdade de escolha total. Isso é o mais importante na educação: não o que lhes ensinamos, mas a liberdade de escolhas que lhes damos.
Com o curso que pretendem ter os alunos que saírem para o Serviço Nacional de Saúde terão mais competências para lidar com os doentes, a tal empatia de que tanto falou?
A investigação mostra-nos que vão ter os mesmos conhecimentos dos médicos que saem do ensino clássico, mas com melhor preparação para as competências médicas do dia a dia, para lidar com situações difíceis.
Ou seja, para os empregadores, seja ele o Ministério da Saúde, seja um hospital privado, não haverá motivos para não escolher um dos vossos alunos em prol de um que estudou numa universidade pública?
A minha ambição é que seja o contrário, que os nosso alunos sejam os primeiros que os empregadores vão escolher.