Este artigo foi inicialmente publicado em 2019 e é agora republicado quando a eutanásia volta a ir a votos no Parlamento

A história de Noa tem sido mal contada. Não houve eutanásia no caso da jovem holandesa, de 17 anos, que no em junho do ano passado e morreu em casa dos pais, depois de ter deixado de comer e beber. Poderia ter havido — a lei do seu país permite a morte medicamente assistida de menores de idade e, na base do pedido, podem estar distúrbios psiquiátricos. Noa Pothoven somava vários: depressão, anorexia e stress pós-traumático, consequências de ter sido vítima de abusos sexuais e violação. A primeira vez que foi abusada tinha 11 anos. A última, 14.

As marcas ficaram e, antes de morrer, Noa tentou o suicídio diversas vezes. Foi internada compulsivamente outras tantas. Os pais acreditavam que era possível curar a depressão de Noa, que chegou a estar em coma induzido para ser alimentada com uma sonda. Desta vez, pais e médicos decidiram não voltar a fazê-lo, mesmo sabendo que forçar a alimentação  seria a única forma de travar a morte. Noa recusava comer e beber e na sua conta de Instagram — entretanto apagada — deixou claro que a morte se aproximava: “Não vou estar com rodeios: vou estar morta dentro de dez dias. Depois de anos a sofrer, a minha luta terminou. Por fim, vou ficar libertada do meu sofrimento, que é insuportável. Não me tentem convencer de que isto não é bom. É uma decisão bem pensada e definitiva”.

Em casa dos pais, em Arnhem, numa cama de hospital instalada na sala de estar, acabou por morrer no domingo passado.

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Noa pediu para morrer com assistência médica?

Sim, mas não agora. Sem que os pais soubessem, em 2018 chegou a contactar a clínica Levenseinde, onde procurava ajuda para morrer. O seu pedido foi recusado: a justificação prendia-se com a sua idade. Noa relatou tudo nas redes sociais: “Acham que sou demasiado jovem, que primeiro devo completar o tratamento do trauma e que o meu cérebro deve acabar de se desenvolver completamente. Isso só acontece aos 21 anos. Estou devastada porque não posso esperar tanto tempo”.

Então, como é que Noa morreu?

A jovem de 17 anos, que sofria de anorexia, recusou continuar a alimentar-se. Deitada numa cama de hospital, instalada na sala de estar de casa dos pais, não comia nem bebia. A única forma de evitar a morte por desnutrição era alimentá-la através de uma sonda — como já tinha acontecido no passado. Desta vez, pais e médicos decidiram não fazê-lo, prestando-lhe apenas cuidados paliativos. Antes de morrer, Noa chegou a tentar suicidar-se várias vezes.

Foi um suicídio assistido?

Segundo a lei, não. Para ser considerado como tal, teria de haver uma substância letal, disponibilizada por um médico e auto-administrada por Noa que lhe causasse a morte. Até agora, os relatos da imprensa holandesa não são nesse sentido: Noa decidiu morrer, deixou de alimentar-se para que a morte chegasse, e ninguém a impediu.

Segundo o The Guardian, na Holanda um profissional de saúde pode optar por não providenciar o tratamento médico a um paciente quando este não dá o seu consentimento. Situação semelhante acontece em Portugal: no testamento vital qualquer pessoa pode inscrever os cuidados de saúde que pretende ou não receber.

A morte iminente de Noa era pública?

Para quem seguisse a jovem nas redes sociais, sim. Poucos dias antes de morrer, anunciou que não teria mais do que dez dias de vida pela frente, tempo que usou para se despedir de familiares e amigos. Entre as pessoas que a visitaram esteve Lisa Westerveld, uma deputada que tem feito campanha por melhores cuidados psiquiátricos para os jovens.

À imprensa, Lisa Westerveld disse que tanto quanto sabia Noa morreu “porque deixou de comer”.

Como é que a notícia da falsa eutanásia de Noa se espalhou?

Os jornais holandeses nunca noticiaram a morte de Noa como sendo um caso de eutanásia. A sua história naquele país tornou-se conhecida quando publicou a autobiografia “Winnen of leren” (“Ganhar ou Aprender”), onde relata os abusos que sofreu e as suas consequências na sua saúde.

Nessa altura, tornou-se também conhecida a luta e o desespero dos pais para conseguirem respostas dos hospitais e instituições públicas para os problemas psiquiátricos dos jovens. “Se tiveres uma doença cardíaca grave, fazes uma cirurgia dentro de algumas semanas. Mas, se estiveres mentalmente doente, a resposta é: infelizmente, estamos cheios, volte à lista de espera. Um em cada dez pacientes com anorexia na Holanda morre dos efeitos do distúrbio alimentar”, relatou Noa ao jornal local De Gelderlander.

No resto da Europa, começando no Reino Unido, a notícia foi divulgada como sendo um caso de eutanásia. Segundo o The Guardian, que falou com vários órgãos de comunicação social, na origem do erro esteve a agência Central European News, especialista em fornecer notícias fora do comum aos jornais britânicos. Esta agência já foi anteriormente acusada de distribuir informação pouco credível.

Qual é a diferença entre suicídio assistido e morte medicamente assistida?

Quando se fala da morte a pedido do doente é costume usar a terminologia “eutanásia” como chapéu para abranger as diferentes situações clínicas.

Na maioria dos países, há dois conceitos distintos: a morte medicamente assistida e o suicídio assistido. Na primeira, há intervenção direta do profissional de saúde e é provocada a morte ao doente que está em fase terminal para lhe evitar sofrimento relacionado com uma doença ou estado de degenerescência. Para que seja possível requerer a morte medicamente assistida, cada país, consoante a sua legislação, determina os critérios a que é preciso obedecer.

O mesmo acontece com o suicídio assistido. A grande diferença é que neste caso o profissional de saúde ajuda o paciente a pôr termo à vida para se livrar do sofrimento, mas o medicamento letal é administrado pelo próprio doente.

A eutanásia é permitida na Holanda?

Sim. A legislação holandesa é de 2002, mas há muitos anos que a eutanásia é praticada no país sem que haja consequências pesadas para quem a pratica. Um dos casos que fez história, em 1973, foi o de Gertrude Postma, uma médica que ajudou a própria mãe a morrer. O tribunal considerou-a culpada, mas atribuiu-lhe pena suspensa. Houve manifestações a favor e contra e o debate ganhou forma no país.

Ainda hoje não são conhecidas penas pesadas para um médico que viole a legislação, apesar de estarem previstas: se for acusado da prática de crime, a pena do médico que realizou a eutanásia vai até aos 12 anos de prisão. Se for suicídio assistido, vai até três anos de prisão.

A exemplificar esta cultura de tolerância em relação à eutanásia está um dos casos apontados no relatório de 2016 sobre eutanásia: um médico assistiu a morte de um paciente com demência em estado avançado e que não estaria em condições de dar o seu consentimento. A consequência? Uma advertência.

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Um menor pode requerer a eutanásia na Holanda?

O que a lei holandesa prevê é que a eutanásia possa ser solicitada a partir dos 18 anos por um doente consciente, em sofrimento insuportável, e sem perspetiva de melhorar, tendo de ser um pedido reiterado e convicto.

Mas a morte ou o suicídio assistido pode também ser pedido para menores de idade, pelos seus pais, quando estão em causa crianças entre os 12 e os 16 anos. A partir dessa idade, e até aos 18 anos, os pais têm de ser consultados durante o processo, embora os menores possam decidir sozinhos.

O médico não tem de pedir qualquer tipo de consentimento para realizar a eutanásia, mas tem de seguir determinados procedimentos, como ouvir a opinião de um segundo especialista. Depois da morte, tem de notificar o patologista do seu município e o RTE, o comité regional de revisão da eutanásia holandês.

Quantos casos de eutanásia são reportados por ano na Holanda?

Desde que a eutanásia foi legalizada em 2002, o número de casos tem vindo a crescer. Os números mais recentes, de 2017, mostram que a morte medicamente assistida representa 4,4% de todos os óbitos no país.

No ano seguinte à legalização, em 2003, foram registados 1.626 casos. Em 2017, os números oficiais apontavam para 6.585 pedidos de eutanásia — 6.306 de morte medicamente assistida, 250 de suicídio assistido e 29 que envolviam uma combinação dos dois.

O relatório anual do RTE apontava ainda que em 12 casos de eutanásia as regras não tinham sido totalmente cumpridas, por exemplo por não ter sido consultado um segundo médico (obrigatório por lei). No ano anterior, houve mesmo uma situação em que um médico foi repreendido por ter “pisado o risco” num caso que envolvia um paciente que sofria de demência severa.

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O que motiva os pedidos de eutanásia na Holanda?

Em 2017, do total de notificações, 89% das mortes envolveram casos de pacientes com cancro (4.236), com desordens neurológicas (374) como por exemplo esclerose lateral amiotrófica, esclerose múltipla ou Parkinson, com doenças cardiovasculares (275) e desordens pulmonares (226). Registaram-se também 782 casos em que havia uma combinação das várias condições de saúde.

Quanto ao local, quase todas as mortes (5.308) aconteceram em casa.

Houve pedidos motivados por desordens psiquiátricas? E pedidos de eutanásia a menores?

Sim. Os casos de demência (169) ou os que envolveram desordens psiquiátricas (83) foram em menor número, embora tenham sido registados mais casos do que em 2016. Porquê? Porque as desordens psiquiátricas são situações mais subjetivas de analisar e a lei prevê que o doente sofra de doença incurável.

Em relação às idades dos pacientes, o relatório do RTE refere que três das notificações de eutanásia diziam respeito a menores, com idades compreendidas entre os 12 e os 17 anos, não esclarecendo o motivo da eutanásia.

A maioria dos casos notificados era de pessoas na faixa etária dos 70 aos 80 anos.

A eutanásia é permitida em Portugal?

Ainda não. Em maio de 2018, a legalização da morte medicamente assistida foi debatida no Parlamento. Nenhum dos projetos-lei foi aprovado. A esquerda assumiu a derrota mas prometeu que o tema voltaria, mais cedo ou mais tarde, à Assembleia da República. Vai voltar, esta quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020, com propostas de 5 partidos diferentes.

O que foi votado no Parlamento em 2018?

PAN, Bloco de Esquerda, PS e Verdes foram os partidos que apresentaram os quatro projetos de lei, todos chumbados. A primeira diferença é que cada partido usava uma determinação diferente para se referir à morte medicamente assistida. No entanto, e embora divergissem nos termos, os projetos de lei convergiam no essencial — quem podia requerer a eutanásia.

O perfil do doente era o mesmo: apenas uma pessoa portadora de uma doença incurável e fatal, que esteja num sofrimento insustentável, maior de idade, de nacionalidade portuguesa ou que resida legalmente no país e que não padeça de doença do foro mental pode fazer o pedido.

Nos projetos de lei do PS, BE e do PAN (o dos Verdes era o que apresentava maiores diferenças), o processo tinha de passar por três médicos: o que recebia o pedido, o médico especialista na patologia do doente e um psiquiatra. Se algum deles elaborasse um parecer desfavorável, o procedimento era interrompido. No final desta ronda, era necessário reconfirmar a vontade do doente. Por outro lado, se o paciente ficasse inconsciente, o procedimento era interrompido. Os projetos de lei apontavam, com uma ou outra variação, para que a eutanásia pudesse ser levada a cabo ou num hospital ou no domicílio do doente.

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Para além da Holanda, em que outros países da União Europeia é permitida a eutanásia?

Na Bélgica e no Luxemburgo. Em 2002, a Bélgica tornou-se o segundo país do mundo a despenalizar a eutanásia. Tal como na Holanda, para poder requerer a morte medicamente assistida o paciente — que tem de ser belga — deve sofrer de uma doença incurável e estar em sofrimento insustentável. A partir de 2014, passou a ser possível o pedido ser feito também para doentes menores sem limitação de idade.

No Luxemburgo, a lei, de 2009, é semelhante à belga.

Há outros países na UE, e fora dela, que apesar de não terem leis que despenalizem a eutanásia a toleram. No Uruguai, desde 1934 que existe a figura de “homicídio piedoso”. Na Suíça, a ajuda ao suicídio não é crime, a não ser que seja praticada por motivos egoístas, e há duas organizações, a Dignitas e a Exit, que ajudam doentes terminais de todo o mundo a suicidarem-se. A eutanásia é considerada crime.

São conhecidos casos de menores a quem tinha sido concedida a eutanásia?

Sim. Em agosto de 2018, foi noticiado que tinha sido autorizada a eutanásia a três menores nos últimos dois anos na Bélgica. As crianças de 9 e 11 anos tornaram-se os casos mais jovens de morte medicamente assistida conhecidos em todo o mundo, a que se somava a de um jovem de 17 anos.

Segundo o relatório da comissão reguladora da eutanásia naquele país, os casos remontam a 2016 e 2017. O jovem de 17 anos sofria de distrofia muscular, a criança de 11 de fibrose cística e a criança de 9 tinha um tumor cerebral.

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