O diretor do serviço de Neurorradiologia do Hospital de Egas Moniz, que é assumidamente contra o uso generalizado de máscaras como medida preventiva contra a transmissão da Covid-19, tem passado declarações médicas para que os doentes não tenham de usar máscaras ou viseiras nos locais em que são obrigatórias. Dores de cabeça, falta de ar e ansiedade são algumas das justificações referidas por Gabriel Branco para dispensar adultos e crianças do uso destes equipamentos de proteção individual.
Esses atestados dispensam pessoas com determinados problemas de saúde da obrigação de usar máscara ou viseira em espaços onde o seu uso é obrigatório — como supermercados, transportes públicos ou escolas —, de acordo com o decreto-lei n.º 24-A/2020. Essa isenção pode ser aplicada também a “pessoas com deficiência cognitiva, do desenvolvimento e perturbações psíquicas”. Mas, segundo a Direção-Geral da Saúde (DGS), os médicos que estão habilitados a passá-los são os que seguem o doente “e na especialidade diretamente relacionada com a não possibilidade de utilização” das máscaras ou viseiras.
À primeira vista, isso excluiria o neurorradiologista. Ao Observador, Gabriel Branco garante que “99,9%” das declarações que passou descrevem sintomas que estão relacionados a Neurologia e destaca que a sua área “tem a ver com a parte neurológica”. Não é esse, porém, o entendimento do presidente da Sociedade Portuguesa de Neurorradiologia, que considera que os atestados que o médico do Egas Moniz já passou são “uma prática excessiva a abusiva” das competências de um neurorradiologista.
O Observador teve acesso a 13 declarações médicas passadas no hospital por Gabriel Branco só no mês de setembro — cinco delas passadas num único dia — em que o médico alega que “a condição clínica” do doente “não se coaduna com o uso de máscaras ou viseiras”. No registo da consulta associada a cada um desses documentos, o médico descreve as causas que levaram a que fosse passada a declaração que isenta o doente do uso de máscaras ou viseiras. Justificações que vão desde problemas do foro psicológico/psiquiátrico a sintomas ligados à Pneumologia e à Neurologia.
Quase todos os casos consultados pelo Observador têm um elemento comum: a consulta que dá origem ao atestado é a primeira de cada doente com Gabriel Branco. E também a última: depois de passado o atestado, o doente recebeu “alta”, ou seja, deixou de ser seguido por aquele médico.
Contactado pelo Observador, o Centro Hospitalar Lisboa Ocidental — a que pertence o Hospital Egas Moniz — não adiantou ao Observador se os doentes a quem foram passados estes atestados eram seguidos por Gabriel Branco, argumentando “sigilo médico” — apesar de o Observador não ter pedido qualquer dado pessoal ou clínico. Já o Ministério da Saúde não só não respondeu às perguntas enviadas ao Observador — que eram as mesmas que foram enviadas ao centro hospitalar —, como também não adiantou se a situação seria investigada.
“Médicos Pela Verdade”. Ordem abre processo contra movimento que nega a gravidade da Covid-19
O médico é um dos fundadores do movimento Médicos Pela Verdade, que desvaloriza a gravidade da Covid-19, e mostra publicamente que é contra o uso das máscaras, argumentando que a pandemia não passa de uma gripe, através da sua página de Facebook e em artigos de opinião — como este, publicado no Observador. O movimento tem sido alvo de várias queixas na Ordem dos Médicos, noticiou o Observador em outubro. Uma das queixas entregues na Ordem está relacionada precisamente com o facto de, alegadamente, Gabriel Branco apelar à desobediência no uso de máscaras.
Ao Observador, o neurorradiologista garante que “quase” todas as pessoas a quem passou atestados são mesmo seus doentes.
O que são as declarações médicas?
O Observador teve acesso a dois tipos de documentos: as declarações médicas de isenção do uso de máscaras ou viseiras e os registos das consultas externas de Neurorradiologia de Intervenção através das quais foram passados os atestados.
As 13 declarações são praticamente iguais, apenas difere o nome do doente associado ao documento. Com o nome do centro hospitalar e do hospital no canto superior esquerdo, lê-se que a declaração médica é passada ao abrigo do decreto-lei 24-A/2020, publicado em Diário da República a 20 de maio de 2020. No documento, onde consta o nome completo do médico e número de cédula profissional, Gabriel Branco declara que o paciente está “dispensado do uso de máscara ou viseira, por motivos clínicos”, de acordo com o que está na legislação.
“Por ser verdade e a pedido do próprio, passo a presente a declaração que dato e assino”, lê-se também.
Estes documentos a que o Observador teve acesso foram passados em Lisboa, nos dias 1, 2, 9, 15 e 22 de setembro, a adultos e crianças de vários pontos do país, sendo que só no dia 9 de setembro contam-se os referidos cinco atestados. Todos eles foram passados ou no próprio dia ou no dia seguinte (tendo em conta o registo das datas) a uma consulta de Neurorradiologia de Intervenção realizada por Gabriel Branco.
No diário médico dessas consultas, o especialista descreve diversas patologias para justificar a declaração que isenta o paciente do uso de máscaras ou viseiras. Dores de cabeça, falta de ar, ansiedade e ataques de pânico, rinite e sinusite são apenas alguns exemplos de justificações que constam do registo clínico. Ou seja, são patologias associadas a várias áreas da Medicina, desde Pneumologia, Psicologia/Psiquiatria, Neurologia, Otorrinolaringologia, entre outras especialidades.
Nesses documentos, é possível ver a data da consulta e, em alguns, a data de alta. Percebe-se, assim, que quase todos os casos têm outro elemento em comum: a consulta foi a primeira e última daqueles doentes com Gabriel Branco. No dia seguinte, passada a declaração, tiveram alta — ou seja, deixaram de ser seguidos pelo médico.
Dos 13 doentes a quem o médico passou uma declaração, 10 tiveram alta administrativa ou no próprio dia ou no dia seguinte à consulta. Por exemplo, um dos doentes teve consulta no dia 1 de setembro, mas só no dia seguinte é que Gabriel Branco passou a declaração e deu alta ao paciente. Num outro caso, foi tudo resolvido no mesmo dia: o doente teve a consulta, a alta e a declaração no dia 9 de setembro. Ou seja, estes 10 doentes deixaram de ser seguidos por Gabriel Branco, mas só depois de o especialista lhes passar a declaração.
Mais: destes 13 doentes, pelo menos 10 só tiveram uma primeira consulta com o neurorradiologista — a consulta através da qual foi passada a declaração — e desses, 7 tiveram alta nessa primeira consulta. Isso é possível de perceber através do processo clínico dos doentes, a que o Observador teve acesso, onde à frente da data da consulta aparecem as letras “P” e “A”. Fonte hospitalar explicou ao Observador que “P” significa “primeira consulta”; “A” significa “alta hospitalar” — ou seja, o doente deixa de ser seguido por aquele médico.
Dores de cabeça, falta de ar, ataques de pânico e ansiedade: as justificações
“Tonturas e desorientação espacial. Ataques de pânico. Relaciona com uso de máscaras. Seguido também ORL [Otorrinolaringologia] por obstrução nasal”, lê-se num dos registos associados a uma declaração passada a 2 de setembro.
“Queixas de grande instabilidade que não tem causa neurológica. Atribui causa a usar máscara no trabalho. Foi seguido por asma brônquica, refere dispneia [falta de ar]”, refere Gabriel Branco relativamente a uma declaração do dia 1 de setembro, em que indica ainda que, “ponderada a relação risco-benefício”, passou a declaração para o doente não ter de usar máscaras ou viseiras.
Para uma outra declaração, que data de 9 de setembro, o médico referiu que o doente pediu o documento e destacou as seguintes questões: “Cefaleias [dor de cabeça], tonturas. Refere bronquite alérgica (asma?). Dificuldade respiratória severa com máscara durante o trabalho. Grande ansiedade”. Além de indicar diversos medicamentos ligados a problemas respiratórios e psiquiátricos, nomeadamente lítio, que o paciente toma.
O psiquiatra e psicoterapeuta Diogo Telles Correia explica que o lítio é prescrito para doentes com perturbação bipolar, uma doença que pode ser “grave o suficiente” para uma pessoa não ter “noção dos seus atos e das suas consequências” e que, por isso, pode, de facto, levar a uma dispensa do uso de máscara. “Temos doentes que, devido a uma patologia psiquiátrica, não têm capacidade de compreender o alcance dos seus atos, nem atuar de acordo com essa compreensão”, diz o docente da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa.
Mas o especialista lembra que tem de ser o médico que segue o doente a fazer essa determinação, mesmo em casos, por exemplo, em que há perturbações de ansiedade e de pânico que possam justificar que uma pessoa não utilize máscara: “O médico tem de conhecer o paciente para perceber se a perturbação de ansiedade é suficientemente grave que justifique a dispensa do uso de máscara e que justifique que o seu uso possa agravar o estado clínico”, afirma o diretor da Clínica Universitária de Psiquiatria e Psicologia Médica da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa ao Observador.
Para Diogo Telles Correia, declarações como estas deveriam ser passadas “por um especialista” e, quando não é possível, deverá ser um “clínico geral” a fazê-lo.
Para uma outra declaração, também passada no dia 1 de setembro, Gabriel Branco fala em “enxaqueca crónica”, dor de cabeça “desencadeada e exacerbada por máscara” e “dificuldade respiratória significativa”. Indicou ainda que o paciente tinha rinite e que tinha deixado de fumar há 3 anos.
Num fact-check do Observador, onde se conclui que o uso de máscara não provoca falta de oxigénio, Tiago Alfaro, professor auxiliar convidado de Pneumologia da Faculdade de Medicina de Coimbra, assume que o facto de as máscara provocarem ou agravarem dores de cabeça estará relacionado com a pressão que elas fazem no rosto.
Já Elsa Azevedo, diretora do serviço de Neurologia do Centro Hospitalar de São João, considera que “é difícil encontrar uma razão neurológica racional” para essa relação entre as máscaras e as dores de cabeça, mas assume que as pessoas têm “sensibilidade diferentes”. Ainda assim, isso não é motivo para deixarem de ter cuidados sanitários, refere.
“Se não se dá bem com uma máscara, se calhar há outra com que se dê bem. Acho que o benefício em termos de proteção do próprio e dos outros, à partida supera algum mal-estar possa ser ocasional”, diz a especialista e professora na Faculdade de Medicina do Porto ao Observador.
Para a professora, uma vez que a máscara é o que mais protege tanto o próprio como os outros, “todas as situações” em que não se recorra a este equipamento de proteção individual “têm de ser de exceção”, mas acredita que possa haver “situações muito pontuais” e que “não confiram risco ao próprio e aos outros” em que o uso da máscara possa ser dispensado. “Depende do local, das distâncias, disso tudo.”
Já o pneumologista Carlos Robalo Cordeiro é mais taxativo: “Com as máscaras cirúrgicas e as máscaras comunitárias, a pessoa não fica com um défice na sua capacidade respiratória”, considera o diretor do serviço de Pneumologia do Centro Hospitalar Universitário de Coimbra (CHUC) e ex-presidente da Sociedade Portuguesa de Pneumologia. E dá como exemplo o facto de os óculos muitas vezes ficarem embaciados com o uso das máscaras: “Significa que o ar circula”.
Para o diretor da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, bronquite alérgica e falta de ar (dispneia) não são justificação para não se usar máscaras e defende que doentes com bronquite alérgica ou asma “podem e devem fazer a sua vida inteiramente normal” desde que o problema de saúde esteja controlado: “E a vida normal agora passa por usar máscara”, acrescenta. No caso de a bronquite não estar controlada, então “muito provavelmente” o paciente precisa de mudar a medicação para atingir esse controlo.
“O doente não tem de usar máscara em casa, mas deve usar se estiver em sítios públicos onde são obrigatórias: em transportes públicos e em espaços fechados, mas também em espaços abertos se houver uma aglomeração de pessoas, tal como toda a gente. Não há limitação para o uso de máscara, o doente tem é de estar controlado.”
Alguns das declarações foram passadas a menores
Algumas das declarações foram passadas por Gabriel Branco a jovens com idades entre os 11 e os 15 anos. Num dos casos, segundo o registo da consulta do diretor da Neurorradiologia do Hospital Egas Moniz, foi a mãe a pedir a declaração que isenta o filho de usar máscaras ou viseiras. É referido que o jovem tinha uma “rejeição a restrição da via aérea superior”, ou seja, depreende-se que o adolescente não conseguia suportar o uso da máscara porque lhe obstruía a entrada de ar pelo nariz, uma “reação de ansiedade extrema e pânico”, uma dor de cabeça desencadeada pela máscara, além de uma “sinusite de base, agravada”. “Tem tido problemas em transportes públicos, sobretudo numa viagem de comboio”, lê-se ainda.
Num outro caso, as justificações para a dispensa do uso de máscaras ou viseiras relatadas pelo médico foram “ansiedade e ataques de pânico”, “episódios de tonturas e sonolência”, falta de ar, “falta de concentração” e “afasia de expressão”, isto é, dificuldade de expressão. “Queixas desencadeadas ou exacerbadas pelo uso de máscara, com sudorese [transpiração] excessiva segundo o Pai”, lê-se ainda no documento a que o Observador teve acesso, que refere que a declaração foi passada “a pedido”.
Segundo a neurologista Cláudia Marques Matos, a “afasia de expressão” é um sintoma neurológico e não uma doença. Ou seja, esta “dificuldade de linguagem”, “em expressar uma ideia” e em “fazer-se compreender” pode ser, por exemplo, um sintoma de um AVC, de um tumor ou qualquer outra doença do cérebro.
“Eu não teria muita vontade em passar esse tipo de declaração, principalmente numa criança em que se assume que terá um cuidador ou alguém que se possa expressar por ela”, diz a neurologista ao Observador. E apesar de assumir que uma máscara, nestas situações, possa dificultar a comunicação com os outros, a especialista não considera que “o risco/benefício” de não usar máscaras em situações de risco, como nos transportes públicos ou em locais com muitas pessoas, compense.
“Pessoalmente nunca diria a um doente para não usar máscaras nestas situações de risco. Não estou a ver nenhuma condição neurológica que facilmente e de forma intuitiva me fizesse sentido tirar a obrigatoriedade do uso da máscara. Até porque são doentes de risco”, afirma ainda a médica.
Cláudia Marques Matos, que está a ter formação em Neuropediatria no Hospital Dona Estefânia, em Lisboa, explica que, até hoje, nenhum progenitor lhe pediu uma declaração destas. Aliás, a maioria promove o uso da máscara até em crianças pequenas, apesar de só serem obrigatórias a partir dos 10 anos.
Se um pai ou mãe lhe pedisse uma declaração dessas, a médica diz que explicaria que o “prejuízo” que se causa a uma criança por ela não se conseguir expressar corretamente “não compensa” e “não é pior” do que prejuízo que teria ao correr o risco de se infetar com o novo coronavírus.
E no caso das escolas? Para Cláudia Marques Matos, ou se está a falar de uma criança “francamente afetada”, “com doenças neurológicas próprias” e, nesses casos, à partida, são criadas “circunstâncias onde ela possa estar” — as escolas “tem um currículo adaptado”, as crianças “estão numa sala com menos pessoas”, por exemplo — ou então “não faz sentido”.
“Se for uma criança com necessidade de fazer terapia da fala, é óbvio que, para fazer a aula, não pode estar de máscara, mas para isso não tem de estar isento da lei. É uma coisa óbvia”, acrescenta.
De Setúbal a Viseu: declarações a doentes de todo o país
Os doentes a quem Gabriel Branco passou declarações médicas, além de serem tanto adultos como crianças, são de vários pontos do país. Pacientes do distrito de Setúbal, Coimbra e Viseu são apenas alguns exemplos.
Num desses doentes, que pediu uma declaração para não usar máscara, Gabriel Branco destaca dores de cabeça, “otorragia por disfunção tubaria segundo ORL [Otorrinolaringologia]”, pelo que o neurorradiologista presume uma “faringite irritativa”. “Perturbação psicológica com incidência na memória, com situações de limitação da ventilação”, lê-se ainda.
De acordo com o diretor do Serviço de Otorrinolaringologia do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC), a “otorragia por disfunção tubaria” trata-se uma “saída de sangue pelos ouvidos” devido a um “entupimento do canal de liga o nariz ao ouvido” e uma “faringite irritativa” é uma inflamação na garganta.
Para Luís Filipe Silva, este quadro não o levaria a passar uma declaração para não usar máscara. Antes pelo contrário. “Se uma pessoa está doente da área faríngica, o que mais lógico seria isolar”, porque pode ser sintoma de Covid-19. Já a otorrinolaringologista Ana Margarida Amorim, também do CHUC, considera que uma pessoa com faringite crónica deve andar de máscara “para não ter outras agressões e para não estar exposto, se estiver doente, e não agredir outros”.
O mesmo se passa com um doente menor, que segundo Gabriel Branco tinha sintomas como dor de cabeça “sem padrão vascular”, “agravamento de queixas respiratórias com máscara”, sinusite, “faringite, que relaciona com dispneia, rouquidão” e dor de ouvidos, “amigdalite”, entre outros.
“Isto é justificação para uma pessoa usar máscara e estar afastada [dos outros]”, considera o otorrinolaringologista. “Isto são perfis dos doentes que entram na área Covid, que são isolados dos outros.” A não ser que haja um contexto e que haja uma certeza de que estes sintomas não estão associados ao novo coronavírus, acrescenta.
Numa outra declaração, o médico refere dores de cabeça “severas cerca de 30 minutos a 1 hora após colocação de máscara”, “ansiedade” e “sinusite e rinite desde que deixou de fumar há dois anos” cujo “agravamento” o paciente relaciona “com restrição de ventilação” que se deduz seja provocada pelo uso da máscara. “Pede declaração, que me parece totalmente justificada”, lê-se no registo da consulta.
Ao Observador, Ana Margarida Amorim considera que tanto a sinusite como a rinite “por si só” não justificam a dispensa do uso de máscaras e que ambos são problemas que “até melhoram” quando uma pessoa deixa de fumar. “Faz sentido ter estes sintomas quando se fuma, os fumadores têm um mau funcionamento naso-sinusal. O facto de ter deixado de fumar até, de algum modo, seria mais benéfico”, diz médica do CHUC, sublinhando, contudo, que “não conhece os doentes”, pelo que podem estar em causa “outros fatores”.
“Quase todos” os doentes têm sintomas da área da Neurorradiologia, diz médico
Quando o Observador contactou o diretor da Neurorradiologia do Hospital Egas Moniz para o questionar sobre estas declarações e respetivas justificações, já o médico tinha sido informado pelo conselho de administração do Centro Hospitalar Lisboa Ocidental da informação que o Observador tinha.
Questionado sobre se os doentes a quem passou as declarações são seguidos na sua consulta, inicialmente Gabriel Branco desviou o assunto, considerando que se tratam de “questões técnicas e de organização interna” e sublinhando que, atualmente, as “consultas podem ser presenciais ou telefónicas ou não presenciais”.
Mas, perante a insistência, o especialista em Neurorradiologia de Intervenção assegurou que sim: “Quase todos são doentes meus. A partir do momento em que têm uma consulta comigo, presencial ou não, são doentes meus. Se têm sintomas que penso que são para eu seguir, não dou alta. Os que eu penso que são assunto arrumado, não têm nada vascular e não têm nada da minha área, dou-lhes alta.”
E todas as pessoas a quem passou declarações tinham sintomas relacionados com a sua área? O médico usou como argumento o sigilo médico para dizer apenas que “são pessoas que têm sintomas, que têm queixas”: “As queixas das pessoas estão registadas, mas são da área de sigilo médico, não posso agora dizer o que as pessoas têm.”
Ainda assim, acrescentou que questiona os doente no sentido de perceber se as suas queixas têm origem vascular, como por exemplo as dores de cabeça e a ansiedade. “Dor de cabeça, ansiedade, são tudo causas neurológicas, mas têm a ver com uma doença vascular da minha área ou não? A maior parte das vezes não tem”, adianta Gabriel Branco ao Observador. “Se for uma causa vascular, tem de ter um exame complementar que esclareça, mas isso é o percurso normal de uma consulta.” Em nenhum dos registos clínicos a que o Observador teve acesso é referido qualquer exame de imagem complementar.
O médico indicou ainda que “quase todas” as pessoas a quem passou declarações tinham sintomas neurológicos: “Quase todas elas, 99,9%, referem sintomas que são da área neurológica”, garantiu, sublinhando que a área de Neurorradiologia “tem a ver com a parte neurológica”. De acordo com os documentos a que o Observador teve acesso, são descritos outros sintomas que nada têm a ver com a área da Neurologia, como por exemplo queixas de dificuldades respiratórias.
Quando questionado sobre o facto de ser o próprio, um especialista em Neurorradiologia, a determinar seja problemas respiratórios, seja problemas de ansiedade, explicou que é porque os doentes lhe pedem e queixam-se. “Eu mando-as para os outros médicos, mas elas dizem que demora muito tempo a consulta. Mas isso é um não assunto”, explicou. Além disso, não vê razões para não o fazer: “E porque é que não hei-de ser? Eu não sou médico?”.
De acordo com os documentos a que o Observador teve acesso, em vários casos o médico destaca que são os doentes ou os progenitores a pedirem as declarações, mas das 13 consultas e declarações, há apenas uma em que o médico refere ter sugerido ser um especialista em Cardiologia a passar a declaração, apesar de ter acabado por passá-la ele próprio. É precisamente esse o exemplo dado por Gabriel Branco ao Observador.
“Como os sintomas são do foro cardíaco sugeri que fosse pedida [uma] declaração da máscara no serviço de Cardiologia, A mãe disse que o fará, mas que neste momento o acesso à consulta é difícil e que entretanto pede declaração, de forma a que o filho se possa deslocar em espaços fechados”, lê-se no registo da consulta.
Essa declaração foi passada a um menor portador do síndroma de Wolff-Parkinson-White, uma patologia cardíaca. Segundo relatou o médico no registo da consulta, a mãe do jovem estava “muito preocupada com os sintomas do filho” e não queria que ele usasse máscara “porque nota dificuldades”. “A criança queixa-se de dispneia [falta de ar], o que poderá estar relacionado com o síndroma de condução A-V [auriculoventricular]”, lê-se no registo.
De acordo com o presidente da Sociedade Portuguesa de Cardiologia, o síndroma de Wolff-Parkinson-White “por si só” não causa falta de ar. “O síndrome não provoca sintoma nenhum. Predispõe ao aparecimento, de vez em quando, de arritmias”, explica Vítor Gil, acrescentando que no caso de o doente sentir muitas arritmias, “tem de ser tratado de uma forma invasiva”.
“Não sei se existe uma situação específica desta criança, mas não tem nada a ver com a dispneia agravada pelo uso de máscara”, considera o Coordenador da Unidade Cardiovascular da Hospital Lusíadas, em Lisboa. “O síndroma, por si só, não é motivo para nenhum tipo de atitude facilitadora de não usar máscara.”
O que está relatado como justificação para a declaração que dispensa o uso obrigatório de máscaras e viseiras “demonstra, pelo menos, algum desconhecimento” considera o especialista, referindo que uma “situação cardiovascular devia ser atestada por um cardiologista”.
Médicos que passam declarações têm de estar relacionados com justificação, diz DGS
O Observador confrontou o Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental sobre a documentação a que teve acesso, questionando se os doentes a quem foram passadas declarações de isenção do uso de máscaras ou viseiras eram seguidos por Gabriel Branco em consulta e se o médico, sendo neurorradiologista, está habilitado a passar estes documentos, tendo em conta também que é assumidamente contra o uso de máscara.
O conselho de administração, contudo, praticamente não respondeu às perguntas. No esclarecimento enviado ao Observador, indicou que Gabriel Branco, além de ser diretor do Serviço de Neurorradiologia do Hospital Egas Moniz, “faz consulta de Neurorradiologia de Intervenção”, mas não adiantou informações sobre os doentes e as respetivas consultas, considerando que “todas as informações referentes a consultas médicas são sujeitas a sigilo profissional”.
“Mais se informa que no Serviço e no Hospital Egas Moniz cumpre, como todos os profissionais, as normas e orientações da DGS”, lê-se no documento. O Observador voltou a insistir, referindo que as questões colocadas em nada põem em causa do sigilo profissional, mas o centro hospitalar limitou-se a enviar novamente as mesmas respostas.
O Observador também questionou a CUF, uma vez que Gabriel Branco consta no site como médico do grupo, no sentido de saber se o especialista ainda trabalha lá trabalha, se usa máscara no hospital, se alguma vez passou declarações a doentes que os isentam do uso de máscaras ou viseiras e se o médico foi submetido a um teste à Covid-19, uma vez que dirige um dos serviços no Hospital de Egas Moniz onde houve um surto da doença.
À semelhança do Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental, a CUF limitou-se a indicar que “tem procedimentos de segurança implementados em toda a sua rede de unidades, entre os quais a utilização obrigatória de equipamentos de proteção individual para proteção de doentes e colaboradores.”
E, perante a falta de respostas do Centro Hospital que integra o Hospital Egas Moniz, o Observador também colocou o mesmo conjunto de questões ao Ministério da Saúde, questionando também a tutela sobre se o caso seria averiguado. Em resposta, o Ministério tutelado por Marta Temido recusou responder às perguntas, dizendo apenas que as reencaminhou para o centro hospitalar, já que se trata de uma “matéria de gestão e autonomia dos hospitais”.
Já a Direção-Geral da Saúde (DGS), questionada sobre que médicos estão habilitados a passar estas declarações sobre dispensa do uso de máscaras ou viseiras, é clara. Diz que quem pode emitir “uma declaração que ateste que a condição clínica não se coaduna com o uso destes equipamentos de proteção” são “os médicos assistentes, por exemplo médicos de medicina geral e familiar e/ou médicos que acompanhem o doente como por exemplo pneumologistas, psiquiatras, pediatras”. No caso das crianças, isso pode ser feito seja pelo pediatra seja pelo médico do centro de saúde.
“Os médicos que emitem estas declarações são os que seguem o doente e na especialidade diretamente relacionada com a não possibilidade de utilização de máscara/viseira”, refere ainda a DGS.
Quanto às justificações que são admitidas, a autoridade de saúde nacional diz que podem ser “várias” como por exemplo “causas respiratórias, alérgicas, deformações na face, ataques de pânico, entre outras”. “São também admitidas justificações para os cidadãos com deficiências cognitivas que não tolerem a utilização das máscaras/viseiras.”
O Observador voltou a questionar a DGS sobre o facto de um médico especialista em Neurorradiologia estar a passar declarações de dispensa do uso de máscaras ou viseiras, recorrendo a justificações como ansiedade, falta de ar, dores de cabeça, entre outras questões médicas. A autoridade de saúde nacional não quis responder, dizendo que não lhe compete pronunciar-se sobre esta matérias e sublinhando que “existem órgãos a quem cabe inspecionar as actividades em Saúde”.
O Observador questionou a Inspeção-Geral das Atividades em Saúde (IGAS) de forma a tentar perceber se estaria a decorrer uma investigação a Gabriel Branco a propósito estas declarações médicas, mas até ao momento não obteve resposta.
Declarações extravasam competências de Neurorradiologia, diz presidente da sociedade
Mas afinal o que é a especialidade de Neurorradiologia? Em consistem as consultas desta especialidade? Faz sentido serem estes especialistas a passarem estas declarações?
“A Neurorradiologia tem um âmbito específico: é diagnóstico e tratamento do sistema nervoso central”, explica Augusto Goulão, presidente do Colégio da Especialidade de Neurorradiologia ao Observador. Rui Manaças, presidente da Sociedade Portuguesa de Neurorradiologia e também membro do colégio, refere que a especialidade divide-se em “duas grandes partes”: a Neurorradiologia Diagnóstica e a Neurorradiologia de Intervenção.
A parte do diagnóstico é feita através de “estudos” a exames de imagem, como TAC e ressonâncias magnéticas, “à parte cerebral e da medula”, indica Augusto Goulão, enquanto o tratamento endovascular é feito através de uma angiografia — um exame de imagem aos vasos sanguíneos — para tratar “lesões particularmente do foro vascular” como AVC, aneurismas, malformações arteriovenosas, entre outras.
Se a primeira é feita por todos os Neurorradiologistas e os especialistas não tem por hábito “ver doentes”, uma vez que consiste essencialmente em fazer exames e relatórios — “não é propriamente uma consulta no sentido forma”, acrescenta Rui Manaças — , o mesmo já não se pode dizer da segunda.
Segundo o presidente da Sociedade Portuguesa de Neurorradiologia, a Neurorradiologia de Intervenção — especialidade de Gabriel Branco — faz intervenções “seja na coluna vertebral, seja na parte arterial e vascular do sistema nervoso central” e estes médicos precisam de ver o doente em consulta, não só numa primeira fase para o “avaliar”, como depois da intervenção para “um follow-up”.
“As consultas só alguns de nós é que as fazem, os que se dedicam à parte endovascular”, acrescenta o presidente do Colégio da especialidade.
Questionado sobre se um médico neurorradiologista pode avaliar sintomas como ansiedade ou dor de cabeça num doente e decidir se deve ou não usar máscara ou viseira, Rui Manaças considera que é “uma prática excessiva a abusiva” e que “exorbita um pouco” a sua função.
“Um neurorradiologista não se pode esquecer que é um médico antes, mas [esta situação] configura alguns aspetos abusivos nas suas competências. Acho que há um exagero das suas competências”, afirma o especialistas, acrescentando que, apesar de os médicos terem “direito à sua opinião”, “há regras que os médicos enquanto cidadãos devem cumprir”.
O presidente do Colégio de Neurorradiologia é menos taxativo: “Dá-me a ideia que se calhar ultrapassa um bocadinho o âmbito das consultas de [neurorradiologia de] intervenção, mas só avaliando é que se pode saber”, diz Augusto Goulão relativamente ao facto de ser um médico neurorradiologista a passar estas declarações, acrescentando que será necessário saber a quem foram passadas e “de que maneira é que tem a ver com o tipo de consulta que foi feito”. Ainda assim, o responsável pelo Colégio de Neurorradiologia diz que lhe parece “estranho”, uma vez que se tratam de vários atestados.
Apesar de sublinhar que, por exemplo, as enxaquecas podem ter uma causa vascular, o presidente da Sociedade Portuguesa de Neurorradiologia refere que elas são avaliadas por neurologistas e, ainda que os neurorradiologistas tenham formação na área da Neurologia, são os especialistas em Neurologia que tem o conhecimento sobre estas questões.
“Eu também dou opiniões sobre enxaquecas a amigos e familiares, mas não é a minha atividade profissional”, conta Rui Manaças. “Dentro da Medicina há especialidades e pessoas mais indicadas para avaliar enxaquecas e dificuldades respiratórias do que um neurorradiologista.”
Quanto ao facto de grande parte dos atestados a que o Observador teve acesso resultaram de consultas únicas, Augusto Goulão sublinha que, apesar de a “maioria” das consultas a doentes de Neurorradiologia não serem únicas, é “possível” um médico desta especialidade ver um doente apenas uma vez.
“Algumas consultas que fazemos são únicas, porque são colegas de outras especialidades que nos pedem opinião sobre um doente. Há pessoas que vão às consultas e analisamos as imagens que são levadas, falamos com o doente e pode resumir-se a isso”, explica.
Mas não parece ter sido isso que aconteceu nas consultas em Gabriel Branco passou os atestados de dispensa do uso de máscaras ou viseiras. Nos documentos a que o Observador teve acesso, não há indicação de que o médico avaliou exames do doente ou que, por exemplo, lhe prescreveu alguma medicação ou outros exames.
Se isto tivesse acontecido, o médico não o teria escrito no diário clínico? De acordo com o presidente do colégio, “em princípio” esse tipo de informação é colocadas nos registos, mas não é uma regra, tal como nem todas as consultas de Neurorradiologia têm de implicar uma prescrição de exames ou medicamentos: “Dizemos por que o doente veio à consulta, o que achamos em relação aos exames que avaliamos e dizemos se deve fazer terapêutica ou passamos mais alguns exames, mas não tem de acontecer em todos.”
O Observador perguntou ainda a Augusto Goulão se o colégio iria analisar esta situação, mas, segundo o presidente, até ao momento, não há qualquer queixa concreta sobre estas declarações ou sobre as consultas. Se isso acontecer, o colégio terá de analisar e “tomar uma posição”.
Médico tem pelo menos duas queixas na Ordem dos Médicos
O Observador já tinha falado anteriormente com o médico a propósito do surto de Covid-19 que afetou vários elementos da Neurorradiologia — serviço que dirige — e da Radiologia do Hospital de Egas Moniz. Nessa conversa, Gabriel Branco tratou o problema como se de uma gripe se tratasse — nunca falou em coronavírus, SARS-CoV-2 ou Covid-19. No pouco que pôde dizer sobre a situação, o médico referiu-se a um “surto de testes PCR positivos”, deixando claro que é contra a realização de testes a pessoas que não têm sintomas.
Gabriel Branco é alvo de pelo menos duas queixas apresentadas na Ordem dos Médicos: uma pelas declarações prestadas ainda antes de existir o movimento “Médicos pela Verdade” e outra tendo em conta as afirmações que fez na conferência de imprensa de 29 de agosto, data em que o movimento foi apresentado. Pedro Abreu, professor aposentado da Faculdade de Ciências da Universidade Nova de Lisboa (FCT-UNL), acusou o médico de apelar à desobediência no uso das máscaras e de negar a existência da pandemia em publicações no Facebook. O químico critica ainda os artigos de opinião publicados, as intervenções no movimento e a participação do médico numa manifestação antimáscaras.
Na primeira participação enviada à Ordem dos Médicos, a 28 de julho, Pedro Abreu deixa, entre outros exemplos, duas citações usadas por Gabriel Branco no Facebook: “… tirar a máscara é o primeiro ato de revolta que passa por uma mensagem inequívoca: não há pandemia”; e, “A todos os meus colegas médicos, tirem as máscaras….desobedeçam se for preciso”. A mesma participação foi enviada, no mesmo dia, à administração do Hospital de Egas Moniz. Gabriel Branco diz ao Observador que teve conhecimento da denúncia enviada ao hospital, mas que ainda não recebeu qualquer contacto da parte da Ordem dos Médicos.
A queixa do professor da FCT-UNL não foi a única endereçada aos responsáveis pelo Hospital de Egas Moniz. O Observador sabe que profissionais do hospital avisaram o conselho de administração do Centro Hospitalar Lisboa Ocidental para o facto de o diretor do serviço de Neurorradiologia andar no serviço e nos espaços comuns do hospital sem máscara (cirúrgica ou outra), contra as normas estabelecidas pela Direção-Geral da Saúde. O conselho de administração foi questionado pelo Observador sobre o assunto, mas não respondeu. Gabriel Branco, por sua vez, não esconde a sua opinião sobre as máscaras, mas acrescenta que “se não cumprir as normas, há um problema”.
“A minha opinião não pode prevalecer sobre a instituição”, disse Gabriel Branco, apesar de, em conversa com o Observador, também admitir que, quando está sentado no gabinete, às vezes tira a máscara. O Gabinete do Diretor de Neurorradiologia não é, no entanto, um espaço reservado só para si; é um espaço comum, usado diariamente por outros profissionais do serviço e, ocasionalmente, em reuniões com profissionais de saúde de outros serviços. Fonte no hospital confirma que Gabriel Branco está, muitas vezes, sem máscara nesta sala comum, mesmo na presença de outras pessoas.