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Falta de recursos, ausência de planeamento e o regresso das escusas a mais horas extra. Os médicos olham com apreensão para o período “sensível” que se aproxima — o verão —, em que tradicionalmente se complica o preenchimento das escalas das urgências hospitalares por causa da falta de médicos disponíveis, e criticam a ausência de um plano para assegurar o funcionamento dos serviços naquele que é, a par do Natal e fim de ano, o período mais crítico para o SNS.
Este ano, tudo indica que haverá uma dificuldade acrescida: as escusas dos médicos à realização de horas extraordinárias, que já começaram a ser entregues e que ameaçam desfalcar ainda mais os serviços, criando “uma tempestade perfeita” no SNS que pode colocar em causa até o funcionamento das urgências gerais, sobretudo em hospitais periféricos.
Médicos temem verão difícil
“O verão vai ser marcado por muitas dificuldades”, admite ao Observador o secretário-geral do Sindicato Independente dos Médicos. Nuno Rodrigues adianta que, neste momento, já é difícil assegurar as escalas de algumas urgências, “nomeadamente em áreas críticas como a Ginecologia-Obstetrícia”. “Todos os dias é necessário recorrer a prestadores de serviços para os hospitais conseguirem as equipas mínimas, nomeadamente em Lisboa e Vale do Tejo. Já é problemático”, assume.
A Presidente da Sociedade Portuguesa de Medicina de Urgência e Emergência também antevê que os meses de verão sejam marcados por “problemas na resposta”. “Vamos viver momentos complicados por causa da falta de médicos“, alerta Adelina Pereira.
Uma preocupação que também se estende à Federação Nacional dos Médicos, cuja líder admite que a capacidade de os serviços de urgência do SNS conseguirem dar resposta à procura nos próximos meses pode ficar abaixo do exigível. “Vai ser difícil”, diz Joana Bordalo e Sá, acrescentando que, em maio, já existem muitos “buracos” por preencher na saúde materno-infantil e na Pediatria. “Faltam médicos o ano todo, com agravamento no verão e no inverno“, sublinha.
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A falta de médicos nas urgências tem vindo a agravar-se de ano para ano, realça a dirigente sindical, uma vez que o SNS é incapaz de travar a “saída de médicos, nomeadamente médicos experientes”. Por outro lado, os clínicos que ficam, e que têm um volume de trabalho cada vez maior, também têm “menor disponibilidade para ficarem a trabalhar nas férias”, lembra — uma solução de recurso cada vez menos aceite pelos profissionais.
“As minutas já começaram a chegar aos hospitais e vão acelerar”, avisam os Médicos em Luta
Este ano, a carência de médicos no verão — já de si crónica — pode ainda agravar-se mais por causa da entrega das já famosas minutas de escusa ao trabalho extraordinário que ultrapasse o mínimo anual exigido por lei. Se o ano passado, o protesto dos médicos às horas extra só começou a ter impacto nos hospitais no final de setembro e, sobretudo, no mês de outubro, este ano, alguns profissionais estão já a entregar as escusas.
“As minutas já começaram a chegar aos hospitais e vão acelerar“, adianta ao Observador a médica internista Helena Terleira, uma das porta-vozes do movimento Médicos em Luta. Uma situação que não surpreende a Presidente da FNAM, que adianta que a maioria dos médicos que faz urgência já atingiram as 150 horas de trabalho extraordinário impostos pela lei.
“Muitos médicos esgotaram já em maio as horas extra do ano inteiro. Nos hospitais periféricos, a maioria dos hospitais faz 12 horas extra por semana. Isso faz com quem em abril já tenham atingido as 150 horas extra”, reforça o secretário-geral do Sindicato Independente dos Médicos, Nuno Rodrigues.
Também o bastonário dos Médicos assume que o protesto dos médicos está a regressar. “A Ordem dos Médicos tem conhecimento informal de que desde final de março, abril e, sobretudo, em maio cada vez mais médicos estão a colocar escusas. Esta situação era previsível e teve um grande impacto no ano passado. É surpreendente nada ter sido feito, sabíamos que iria voltar a acontecer. E vamos ter um período muito sensível”, sublinha Carlos Cortes, ao Observador.
Embora, segundo os médicos ouvidos, o número de escusas entregues seja ainda “residual”, o impacto do protesto somado à fragilidade dos serviços nos meses de verão pode criar grandes dificuldades. “As minutas podem ter um impacto muito grande. Já sabemos que há uma carência crónica de profissionais nos serviços de urgência, e que os recursos não são suficientes para a procura”, sublinha Adelina Pereira.
Helena Terleira, do movimento Médicos em Luta, fala numa “tempestade perfeita” a aproximar-se a grande velocidade, uma vez que, lembra, a somar à falta de médicos e às escusas a mais horas extra, o período de verão levanta outros desafios. “Vamos ter mais população deslocada e em férias, as corporações de bombeiros ocupadas com incêndios, mais acidentes de viação. É uma tempestade perfeita”, antecipa a médica, que trabalha no Hospital de Viana do Castelo, um dos mais afetados no final do ano passado pelo protesto dos médicos e que, em 2024, pode vir a ficar, pela primeira vez, sem urgência geral.
“Em Viana, nunca houve um verão com urgências a descoberto. Este ano vai haver. Se começarmos a colocar minutas agora, em julho já se vai sentir o impacto, e em equipas que já estão desfalcadas, uma vez que é verão”, avisa a especialista.
Regresso da majoração para tarefeiros provocou grande descontentamento, dizem médicos
Para evitar o que antecipa vir a ser uma “catástrofe” — a afetar de forma mais forte os hospitais periféricos, que têm menos recursos e onde a contratação de médicos tarefeiros é também mais difícil — Helena Terleira diz que a única solução é a assinatura de um acordo, o quanto antes, entre os sindicatos médicos e o Ministério da Saúde. “A tutela ainda tem tempo de falar com os sindicatos e impedir a catástrofe, sobretudo nos hospitais periféricos. Se houver acordo dia 27, haverá um retrocesso da nossa luta“, garante.
Hospitais voltam a poder pagar mais 40% a médicos tarefeiros. Não há novo aumento do valor/hora
A internista assume que a notícia conhecida esta quinta-feira através de um artigo do jornal Público (onde se dava conta de que o governo publicara há uma semana um despacho autorizando o aumento do valor/hora pago aos médicos tarefeiros em 40%) provocou um grande descontentamento na classe. “O aumento de 40% foi um “trigger”, muitos colegas estão a falar do assunto. É um sinal de mais do mesmo” diz a médica, sublinhando que o “novo governo está a seguir o mesmo caminho do anterior governo” e “parece querer os mesmos resultados”.
Também a Presidente da FNAM fala num desagrado com a opção tomada pelo governo. “Os médicos ficaram desagradados com o aumento do valor pago aos prestadores de serviços. Há uma perceção de desigualdade. Isto desestrutura as equipas, cria um sentimento de injustiça”, avisa Joana Bordalo e Sá.
“Se continuarmos a majorar as horas dos tarefeiros, que são os mais indiferenciados, estamos a dar o sinal de que mais vale os médicos não terem especialidade e ficarem a tapar buracos nas urgências“, critica, admitindo que, se até agora, os médicos tinham mantido uma postura expectante — aguardando para ver os primeiros passos dados por um governo que está em plenitude de funções há pouco mais de um mês — a partir daqui a luta pode endurecer. “Para já ainda não chegou aos sindicatos a matéria que vai ser discutida na próxima reunião, no dia 27. Isto deixa-nos preocupados porque já era tempo de se saber pelo menos quais os assuntos a discutir”, salienta Helena Terleira.
Para a também internista Adelina Pereira (que trabalha no Hospital Pedro Hispano, em Matosinhos), a majoração do valor/hora para os médicos prestadores de serviços é “um penso rápido” que não resolve os problemas estruturais das urgências. “Andamos sempre a correr atrás do prejuízo. Isto é um problema crónico que tem de ter uma solução estruturante, que tem de ser tomada agora para ter repercussão no futuro”, sublinha a médica, uma defensora das equipas dedicadas nas urgências de todo o país (atualmente, arrancaram projetos para formar equipas dedicadas nos cinco maiores hospitais do continente, mas a adesão tem ficado aquém do esperado).
“Aquilo que deveria ser um remendo para situações pontuais, já há muito que deixou de o ser. O ano passado já foram gastos mais de 200 milhões em prestadores de serviços”, lembra o secretário-geral do Sindicato Independente dos Médicos.
Para os responsáveis dos dois sindicatos médicos, uma das soluções seria atribuir a majoração dada aos tarefeiros também aos médicos do quadro. “Para trabalho igual, salário igual”, pede Joana Bordalo e Sá. Uma reivindicação secundada por Nuno Rodrigues. “Não podemos aceitar que dois colegas com as mesmas funções tenham vencimentos diferentes: um recebe, na base da carreira médica, 18,93 euros/hora e outro, por ser prestador de serviço, ganha duas ou três vezes mais”, diz o secretário-geral do Sindicato Independente dos Médicos, defendendo que uma remuneração igual ajudaria a preencher as escalas. “Se houver essa equiparação, talvez a disponibilidade dos médicos do quadro seja diferente”, reforça a Presidente da FNAM.
“Não pode ser em cima”. Ordem e sindicatos criticam falta de planeamento para o verão
Os médicos ouvidos pelo Observador são unânimes na crítica à falta de planeamento dos recursos num período tão crítico como o verão. “Soubemos há pouco tempo que nada tinha sido preparado. Todos os anos há dificuldades de resposta, mais acentuadas nalgumas regiões do país. É surpreendente não haver nenhum plano estratégico“, critica o bastonário da Ordem dos Médicos.
“Já devíamos estar a discutir o plano do inverno. Houve uma falta de planeamento enorme”, sublinha também Joana Bordalo e Sá. Carlos Cortes reforça a necessidade de preparar os períodos mais sensíveis com meses de antecedência.
“O plano de verão tem de ser preparado logo após o final desse período, ou seja, a partir do final do verão temos de preparar o verão do ano seguinte. Não pode ser em cima. Não podemos estar a preparar um plano de verão a um mês do verão e quando temos no final de maio e início de junho vários feriados sensíveis, que podem exigir planos de contingência”, critica o bastonário, que alerta para a urgência em conhecer a estratégia da tutela “tendo em conta até a questão das escusas”.
Ministra da Saúde pediu a Fernando Araújo plano de Verão para o SNS
Recorde-se que a atual ministra da Saúde Ana Paula Martins pediu ao diretor-executivo do SNS a elaboração de um plano de contingência para o verão, tarefa que o já demissionário Fernando Araújo recusou levar a cabo. O ainda diretor-executivo terá justificado a recusa com o facto de estar a poucas semanas de sair do cargo (o final de maio é o prazo apontado pela própria DE-SNS para a entrega do relatório de atividades à tutela, ato após o qual se efetiva a demissão de toda a equipa de gestão) e ainda pelo facto de não ter conhecimento do plano de emergência que o Ministério está a preparar.
O plano para o verão foi entregue agora ao grupo de trabalho criado para delinear o plano de emergência do SNS, liderado pelo ex-presidente do Infarmed Eurico Castro Alves — que terá a cargo as duas tarefas, uma de cariz mais imediata e outra a médio/longo prazo. Esta quarta-feira, no Parlamento, o primeiro-ministro Luís Montenegro garantiu que o plano de emergência será apresentado ao país dentro de duas semanas.
Nos hospitais, os médicos dizem que o regime de dedicação plena, ao qual aderiram já cerca de três mil médicos (segundos os últimos números conhecidos) e que aumenta o número mínimo de horas extra anuais de 150 para 250, não tem impacto nas urgências uma vez que a adesão dos médicos que trabalham nestes serviços tem sido baixa. “A minha perceção é que a grande maioria dos médicos que optou pela dedicação plena não faz urgência. O impacto deste regime na capacidade de resposta das urgência vai ser mínimo”, diz a Presidente da Sociedade Portuguesa de Medicina de Urgência e Emergência.
“A adesão entre esses é mais baixa. A penalização da perda do descanso compensatória faz com que não seja atrativo, é demasiado penoso. Não compensa o acréscimo salarial”, sublinha também Helena Terleira.
Para já, e tendo em conta que o verão se aproxima a passos largos, o bastonário dos médicos defende que é necessário reforçar os recursos humanos “nas áreas do litoral e do sul do país, que ficam com mais população” nesse período e “reforçar a comunicação” de prevenção junto da população. Para a FNAM, é preciso adotar medidas mais profundas, que evitam a repetição do caos ano após ano, como um “aumento salarial adequado e a revisão de condições de trabalho dos médicos”. Joana Bordalo e Sá relembra ainda uma proposta avançada pelo sindicato que representa e que, diz, poderia contribuir para uma melhor resiliência dos serviços no verão. “A FNAM tinha uma proposta prática sem impacto orçamental. Se os médicos tirassem férias na época baixa, ganhariam mais cinco dias de férias. Se esta medida entrasse em vigor, muitos médicos pensariam duas vezes se queriam tirar férias em julho ou agosto”, sublinha.
Para a Sindicato Independente dos Médicos, é necessário apostar, a montante, nos centros de saúde. “O SIM entregou um conjunto de propostas com medidas que visam aumentar a acessibilidade. Nos Cuidados de Saúde Primários, é possível a contratualização de carteiras adicionais nas USF (em horas extra) e que permitiriam dar mais resposta, com o mesmo valor pago ao setor privado e social”, diz Nuno Rodrigues. Quanto aos cuidados hospitalares, o responsável sindical realça que tem de haver “uma reestruturação que faça com que os médicos, em vez de estarem 18 horas na urgência, possam estar menos e que as horas que sobram possam ser usadas em consultas”.
Nuno Rodrigues espera que, na próxima reunião, marcada para o dia 27 de maio, o Ministério da Saúde dê “sinais de que vai haver medidas estruturais” através do estabelecimento de um protocolo negocial. “De outra forma, os médicos não vão estar a trabalhar sem perspetiva de futuro”, avisa.