“Mentira de Estado.” É desta forma que o jornal Mediapart classifica a ação do governo francês ao longo da crise do novo coronavírus, apontando-lhe várias falhas na gestão de algo que esta pandemia já levou a que se chamasse de “ouro branco”: as máscaras de proteção.
De acordo com a investigação daquele jornal, numa primeira fase o governo francês ignorou a necessidade de assegurar máscaras suficientes para fazer frente à pandemia e numa fase posterior mentiu sobre a escassez de proteção para profissionais da saúde e para a população em geral.
Ao mesmo tempo, o próprio governo terá facilitado que empresas como a Airbus tivessem as mesmas máscaras que tanto fazem falta nos hospitais (só em Paris há pelo menos 1620 profissionais da saúde que já testaram positivo à Covid-19, dos quais morreram seis) e no resto do país (onde há praticamente 112.950 mil casos positivos e 10.869 mortos).
Quando o governo dizia que as máscaras não faziam falta
A 24 de janeiro, França registava os seus primeiros casos de Covid-19: um francês de origem chinesa e ainda dois turistas que tinham passado por Wuhan, a cidade da China onde se verificou em primeiro lugar o surto que viria a originar a atual pandemia. Porém, nesse mesmo dia, a então ministra da Saúde de França, Agnès Buzyn, fazia crer que o surto não daria em pandemia — e que França estaria fora de risco.
“Os riscos de uma propagação do vírus na população [francesa] são muito baixos”, disse, à saída de uma reunião do conselho de ministros, a 24 de janeiro. Dois dias depois, numa entrevista, descartou a necessidade de comprar máscaras (“há dezenas de milhões de máscaras em stock, em caso de urgência”) e que tampouco era necessário usar máscara. “Quando nos cruzamos com alguém na rua, o risco de apanhar a doença é baixo”, disse a então ministra.
Estas declarações contrastam com outras que feitas pela mesma Agnès Buzyn, já noutra vida política. No final de janeiro, perante um escândalo sexual, o candidato do República Em Marcha às autárquicas em Paris retirou a sua candidatura — e o partido de Emmanuel Macron chamou Agnès Buzyn a preencher a vaga. E assim foi: demitiu-se a 16 de fevereiro, fez-se candidata e a 15 de março ficou em terceiro lugar. Derrotada politicamente, Agnès Buzyn tentou salvar a face numa entrevista ao Le Monde, garantindo que já desde 20 de dezembro que alertava os seus superiores (tanto o primeiro-ministro Edouard Philippe como o Presidente Emmanuel Macron). “Desde o início da campanha [por Paris] que não pensava noutra coisa a não ser no coronavírus”, garantiu.
Porém, o que a investigação do Mediapart vem demonstrar é que tanto Agnès Buzyn como a generalidade do governo francês, incluindo depois da demissão daquela responsável política deu vários passos em falso e cometeu vários erros de cálculo durante esta crise.
O primeiro erro de cálculo surge logo no final de janeiro, da parte do diretor-geral de Saúde, Jerôme Salomon, quando foi instado pelo Ministério da Saúde a fazer uma avaliação do número de máscaras cirúrgicas do tipo FFP2 necessárias, entre outros materiais. O número referido por Jerôme Salomon foi 1 milhão e 100 mil máscaras FFP2. A estas, juntar-se-iam ainda outros 160 milhões de máscaras cirúrgicas, que seriam somadas aos 80 milhões já em stock.
À altura, estes números foram dados como suficientes pelas autoridades francesas. Porém, a realidade viria a demonstrar que em todo o país se viriam a consumir 40 milhões de máscaras a cada semana.
Esses 40 milhões de máscaras utilizadas a cada semana (um número que só não é maior porque os profissionais de saúde estão a reutilizar frequentemente as suas, contra todas as indicações) não estavam no horizonte do governo francês nessa altura. O sentimento de urgência era pouco — tanto que, no início de fevereiro, França enviou 810 mil máscaras para a China, que tinha feito um pedido desesperado ao resto do mundo.
Ainda assim, a mensagem do governo era de tranquilidade. No final de fevereiro, o sucessor de Agnès Buzyn no Ministério da Saúde, Olivier Véran, anunciou novas encomendas: 175 milhões de máscaras FFP2 para fazer frente a uma “epidemia de três meses”, sublinhando o próprio que essa ação era a prova de que o governo não estava a “reagir” à crise mas antes “semanas à frente dela”.
Quando as máscaras passaram mesmo a fazer falta — mas não chegaram aos hospitais
Mas, ao contrário daquilo que o ministro da Saúde prometeu, França não estava “semanas à frente” da pandemia da Covid-19. Chegados com atraso a uma corrida que já há muito começara, os governantes franceses falharam em grande parte quando perceberam que urgia levar muito mais do que 175 milhões de máscaras para França.
A 4 de março, foi criada dentro do governo francês a CCIL, sigla francesa para Célula de Coordenação Interministerial de Logística. Naquele grupo, formou-se uma sub-equipa com a responsabilidade de garantir o maior número de máscaras possível para o país. No entanto, em pouco mais de três semanas conseguiram só 40 milhões de máscaras — ou seja, o suficiente para apenas uma semana.
O que falhou? Quase tudo
A equipa responsável por garantir máscaras tinha duas vias de ação: conseguir máscaras através de encomendas no estrangeiro ou, então, consegui-las junto de produtores e de stocks localizados em França. Ambas as vias revelaram ser um fracasso.
As encomendas do estrangeiro falharam em várias frentes. O Mediapart dá o caso de dois empresários franceses com ligações à China que entraram em contacto com o Ministério da Saúde, oferecendo-se para fazer de ponte entre produtores chineses (que já fariam parte da sua rede de contactos) e o governo francês, de maneira a agilizar a compra de máscaras. O primeiro viu a sua proposta ser rejeitada por falta de “fiabilidade”. O segundo chegou a ser contactado por responsáveis da DGS francesa, que rejeitaram a proposta de intermediação porque os preços praticados pelos produtores chineses eram então “demasiado elevados” — apesar de outros países estarem a fazer encomendas àqueles mesmos produtores.
Outro empresário francês com ligações à China do setor das importações e exportações também contactou as autoridades francesas para dar conta de um stock de 500 mil máscaras na China previstas para o Brasil — mas que, pagando um valor adicional, elas poderiam ir para França. Porém, aquelas máscaras não respeitavam a norma europeia, embora fossem de boa qualidade. Por isso, colocou a hipótese de o governo francês abrir uma exceção e aceitar máscaras não reguladas pela UE, atendendo à emergência — uma opção que países como Espanha já tinham assumido. O empresário segurou aquela encomenda a 13 de março e ficou desde então à espera de resposta do governo francês. A 27 de março, isto é, depois de duas semanas de espera, teve de deixá-la seguir para o Brasil.
Também a busca de máscaras dentro de França foi insuficiente. Embora a 3 de março o governo francês tenha, por decreto, anunciado que poderia apoderar-se dos stocks de máscaras de empresas e privados para fazer frente à crise sanitária, a verdade é que essa medida não foi aplicada. Ao Mediapart, o líder sindical da CGT nos bombeiros, Sébastien Delavoux, conta como conseguiu localizar máscaras na zona da Alta Savóia, onde a escassez é particularmente alta. “Encontrámos dezenas de milhares de máscaras só com alguns telefonemas. Em vários sítios, as máscaras foram todas arrumadas”, diz. Bastava que as autoridades as fossem buscar, mas não foi isso que aconteceu. “Ninguém veio buscá-las”, garante aquele sindicalista.
Enquanto isso, perante o crescimento da crise, o governo francês permitiu a partir de 20 de março que qualquer empresa importasse máscaras — garantindo que apenas as encomendas acima dos 5 milhões poderiam vir a ser apropriadas pelo Estado. Se em teoria essa medida até pode ter levado mais máscaras para o país, em muito terá também dificultado a tarefa do Estado de conseguir máscaras e levá-las ao sítio onde sempre disse que elas fazia mais falta: os hospitais.
Today, one of our A330-800 landed in Toulouse bringing ~2M masks from China. The majority will be donated to governments. Grateful to the Airbus teams, our partners, friends in China for making this happen. We are working to support the medical & life-saving teams on the field. pic.twitter.com/sw2LEAdfT3
— Guillaume Faury (@GuillaumeFaury) March 23, 2020
Algumas delas, porém, acabaram antes por ir para uma fábrica da Airbus. A 23 de março, o CEO daquela construtora de aviões, Guillaume Faury, anunciava a chegada de um avião A330 com cerca de 2 milhões de máscaras chegadas da China a bordo. Naquele post, lia-se que “a maioria” das máscaras seria entregue a “governos” como donativo.
Porém, mais tarde, ficou claro que muita daquelas máscaras viriam a ser utilizadas pelos próprios trabalhadores da Airbus, que foram chamados de volta ao serviço a 21 de março. AAirbus tornou o uso de máscara obrigatório, reforçando ainda que as máscaras seriam descartadas ao fim de quatro horas de uso e substituídas por novas.
De forma a garantir o stock necessário para manter aquela fábrica em produção, o governo francês destacou as empresas de construção de aviões como “essenciais” — e, de acordo com o Mediapart, o governo deu ordem à 3M (a maior produtora de máscaras do mundo) em França para distribuir máscaras por aquele setor com a mesma prioridade usada para distribuir junto do setor da energia ou agrícola. No dia 25 de março, porém, a Airbus viria a ser considerada como parte do setor não-essencial e deixou de ser prioridade para o envio do “ouro branco” — quatro dias depois de ter voltado ao trabalho ou, dito de outra forma, milhares de máscaras depois.
Uma estratégia de comunicação que não acompanhou a realidade
Obrigado pela realidade a reconhecer a escassez de máscaras e de outro tipo de materiais em toda a França, o ministro da Saúde assumiu só a 21 de março que no final de janeiro havia apenas 150 milhões de máscaras cirúrgicas (as mais simples) e praticamente nenhumas FFP2 em stock.
Perante essa assunção — a primeira desde o início da crise do novo coronavírus — o governo francês desdobrou-se a partir daí em anúncios de novas encomendas. A 21 de março, o ministro tornou pública uma encomenda de “mais de 250 milhões de máscaras” feitas junto de “fornecedores chineses”. A 27 de março, o Le Monde dava conta de uma “ponte aérea” que levaria 600 milhões de máscaras, entre as quais 74 do tipo FFP2, da China até França. No dia seguinte, a 28 de março, a France Info avançava ainda outro número mais ambicioso, citando a DGS francesa: em vez de 600 milhões máscaras, seriam antes mil milhões de máscaras.
Havia, porém, vários “mas” nesses números. Contactado pelo Mediapart, o Ministério da Saúde esclareceu que esses mil milhões de máscaras incluiriam também máscaras de produção nacional — pelo que não seriam apenas importações da China. Além disso, em consonância com o que tinha sido o anúncio da presidente da Comissão Europeia dias antes — que deu conta de encomendas a nível comunitário, incluindo para França —, a divisão das máscaras que chegassem da China ainda não estava determinada entre todos os países da UE. Como tal, o número de máscaras a chegar a França da China seria significativamente inferior ao anunciado.
A 29 de março, o ministro da Saúde viria a assumir que a realidade era bem mais complicada do que fazia crer aquele anúncio de mil milhões de máscaras. E colocou até a hipótese teórica de nenhuma chegar a França. “Não consigo ter a certeza de que as importações estão efetivamente em território nacional até ao momento em que o avião aterrar”, disse.
Dois dias mais tarde, a 1 de abril, o presidente da região Provence-Alpes-Côte d’Azur, Renaud Muselier, viria a denunciar em entrevista à RT France aquilo que talvez estivesse na mente do ministro da Saúde quando disse aquelas palavras. De acordo com aquele responsável regional, um carregamento com cerca de 60 milhões de máscaras com destino a França terá sido “comprado” com um pagamento em dinheiro vivo por responsáveis norte-americanos. Ao Libération, o mesmo líder regional adiantou ainda que os supostos responsáveis norte-americanos pagaram o dobro do que tinham dado os franceses.
Médicos vão processar governo, Macron chama-lhes “irresponsáveis”
Enquanto isso, nos hospitais, a falta de máscaras é gritante. De acordo com o Mediapart, no dia 31 de março havia apenas 294 mil máscaras cirúrgicas em stock — e, nos três dias anteriores, o L’Assistance Publique-Hopitaux de Paris (APHP, centro hospitalar da capital, que reúne 39 unidades em toda a cidade), o consumo de máscaras foi de 829.750 e a chegada de novas não passou dos 7.500. Muitos trabalhadores do setor da saúde acabam por aproveitar o pouco tempo livre que lhes sobra para procurarem máscaras em farmácias ou no mercado negro. Outros, fazem-nas à mão em casa.
A escassez de máscaras levou a que só nos 39 hospitais do APHP se registassem, de acordo com o Le Figaro, um total de 1.620 trabalhadores da saúde infetados e, entre estes, seis mortos.
Embora a média de idades dos infetados seja relativamente baixa (39 anos), preocupa o facto de mais de uma centena estar para lá dos 55 anos. Ainda de acordo com o levantamento daquele jornal, 62% dos infetados são enfermeiros e auxiliares e 32% são médicos.
Depois dos coletes amarelos, os batas brancas: em França, os médicos estão furiosos com Macron
É neste contexto que um grupo de mais de 600 médicos se juntou, formando um coletivo autointitulado “C19”, para processar no Tribunal de Justiça da República (a única instância que pode julgar as ações de governantes exercidas durante os seus mandatos) o primeiro-ministro, Edouard Philippe, e a ex-ministra da Saúde, Agnés Buzyn. Numa petição que leva à data mais de 420 mil assinaturas, acusam aqueles dois responsáveis políticos de terem veiculado uma “mentira de Estado” e que por isso “devem justiça aos batas brancas [alcunha para médicos] e ao povo francês”.
“O governo estava a par dos perigos desta epidemia, mas não agiu a tempo nem tomou as medidas necessárias, nomeadamente a compra de máscaras”, lê-se no texto da petição. “Os nossos dirigentes revelaram o perigo que emana das suas decisões nos momentos fulcrais e a sua incapacidade de reconhecerem uma urgência.”
Emmanuel Macron não é um dos visados desta queixa (o Presidente só pode ser julgado em casos de “alta traição”), mas ainda assim criticou gravemente aqueles que a promovem, chamando-lhes de “irresponsáveis” por “colocarem processos quando ainda não ganhámos a guerra” e falou em tempos como nunca antes foram vistos: “Quando vivemos algo de inédito não podemos exigir às pessoas que prevejam coisas destas dez anos antes”.
O local deste discurso não podia ser mais emblemático: a fábrica da Kolmi-Hopen, produtora de máscaras sediada em França que pertence a um grupo canadiano. A uma revista especializada no setor industrial francês, a L’Usine Nouvelle, o administrador daquela fábrica referiu que o historial da sua empresa consistia em “enviar encomendas com a maior frequência possível” para onde “existirem riscos dentro dos hospitais”. Como exemplo, elencou três países: Itália, China ou Coreia do Sul. Agora, com três meses de atraso, terá um novo cliente: França.