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O mundo das canções na ponta dos dedos. Na era do streaming, não existem estrangeiros nem fronteiras, carregamos no bolso um livre-trânsito, qual passaporte diplomático, com acesso absoluto aos quatro cantos do planeta. Agora, imaginem um miúdo em casa, telemóvel em punho, abre a aplicação da bola verde com três riscas pretas, mais de 100 milhões de canções à disposição, do País de Gales à Coreia do Sul, e estranhamente, coloca um bailarico português, olarilólé olarilólei. E porque não, se bailar assim sabe tão bem?
A premissa do livre-trânsito do streaming é enganadora, o ser humano é agregador por natureza, o algoritmo move-nos na mesma direção e, invariavelmente, um punhado de canções ofusca as restantes. No final do ano, as canções mais ouvidas retratam o tempo presente: em 2023, o consumo de música portuguesa duplicou. Uma análise do Observador aos dados públicos do Spotify, baseados nos dez lugares cimeiros que a plataforma disponibiliza semanalmente, demonstra que 33% das canções de sucesso são portuguesas — em 2022 eram 16%. Segundo os dados gerais do Spotify, 42% da música ouvida foi nacional. Os dados são inegáveis, ouve-se mais música portuguesa. Que canções são estas que estão a alterar o paradigma da indústria musical nacional?
Bárbara Bandeira, Ivandro e a aliança da pop com o hip hop tuga
A canção mais ouvida em 2023 no Spotify é Como Tu, de Bárbara Bandeira, com a participação de Ivandro, o homem que carrega a música portuguesa às costas. A cantora de 22 anos ultrapassa até a tabela internacional. Ou seja: em Portugal, a canção soma mais streams do que Taylor Swift, The Weekend ou qualquer outro. É a canção pop inescapável de 2023, que define e delimita uma geração; desafiem qualquer transeunte com menos de vinte cinco anos a citar-vos a letra e preparem-se para uma interpretação imediata, com o devido passo de dança.
No mês passado, a cantora continuou de coração partido: a canção Carro também escalou as tabelas do streaming, seja pela insistência no amor reminiscente como pelo compromisso ousado nos versos de Dillaz: “Por ti eu circulava às oito na IC-19”. Carro não repetiu o brilharete de Como Tu devido ao fenómeno de Si No Estás, do espanhol Íñigo Quintero — em resumo, um músico de vinte anos, na improvável cidade da Corunha, gravou uma cantiga chorosa em casa e inexplicavelmente, um ano depois. viralizou no TikTok e tornou-se um êxito global.
Há uma cola evidente entre as duas canções portuguesas mais ouvidas: Ivandro. Joaquim Ivandro Paulo, nascido em Angola e crescido em Rio de Mouro, notabilizou-se pelas canções melosas, idealizadas em ambientes delicados e acolhedores, que na música pop se convencionou chamar de vibes. Esta é a perícia de Ivandro: as vibes. A melodia e os arranjos aconchegantes de Chakras, de inclinação afrobeat, são a garantia que fura qualquer ruído. As “melodias podem mudar a minha vida”, confirma, enquanto evoca, ao lado de Julinho KSD, as origens modestas: “Não dá p’ra esquecer a guita/ Quando viemos do nada”. Chakras liderou durante dez semanas seguidas o Top 10 do Spotify — empate técnico com Flowers, o regresso de Miley Cyrus às canções orelhudas.
A fórmula vencedora de Chakras e Carro é a aliança da pop com o hip hop, outrora inimigos mortais, agora conciliados para conquistar o mundo. Outro exemplo é Tempo de Van Zee, um pop lo-fi com trejeitos de trap, uma das quatro canções nacionais que conseguiu liderar o top semanal — as outras são Como Tu, Chakras e, mais recentemente, Tata, de Slow J. A pop e o hip hop são os géneros musicais que dominam o cenário português, sendo que 2023 assinala um aumento considerável deste género nas tabelas: 32% das canções mais ouvidas são hip hop, o dobro do ano passado.
A língua corrente do hip hop nacional é o trap — se desconhece este subgénero, são canções de instrumentação parca, carregadas de autotune, hi hats e onomatopeias arrastradas. A título de exemplo, Brrrrrrrrr. Em 2019, Profjam introduziu o trap nacional ao grande público com Tou Bem; quatro anos depois, T-Rex confirma que continua tudo fixe: TÁ TUDO BEM. Segundo o Spotify, T-Rex é o artista nacional mais ouvido em 2023, e o recomendável COR D’ÁGUA é o álbum mais ouvido. Porém, é provável que Afro Fado de Slow J, que não entrou nas contas de final do ano da plataforma, derrube este recorde; na semana de lançamento do álbum, Slow J conseguiu um feito inédito: entre as dez canções mais ouvidas na semana de lançamento, oito eram de Afro Fado.
[Já saiu: pode ouvir aqui o sexto e último episódio da série em podcast “O Encantador de Ricos”, que conta a história de Pedro Caldeira e de como o maior corretor da Bolsa portuguesa seduziu a alta sociedade. Pode sempre ouvir aqui o quinto episódio e aqui o quarto, o terceiro aqui, o segundo aqui e o primeiro aqui]
Música portuguesa a dançar com dela própria
O sucesso do hip hop tuga não é propriamente novidade — em 2019, os bangers de Profjam, Julinho KSD, Wet Bed Gang ou Nenny representavam quase metade de todas as canções do top semanal. A novidade na canção portuguesa é uma pop ancorada na música tradicional e folclórica portuguesa, dos D.A.M.A a Pedro Mafama, que alcançou pela primeira vez os lugares cimeiros das plataformas de streaming. Em média, entre dez canções, três sugerem uma aproximação à tradição musical nacional.
A pop portuguesa cruza-se com a música tradicional desde que há memória, as próprias indústrias musicais do Estado Novo, como a Emissora Nacional, promoviam uma mescla de uma dita tradição com a pop anglo-saxónica e francófona. No entanto, qualquer resquício tradicional ou folclórico, incluindo fado, esteve sempre interditado dos lugares de privilégio do streaming. Esta era a lógica vigente em Portugal até o início de 2023. Os D.A.M.A e Buba Espinho deram o tiro de partida: CASA, a terceira canção nacional mais ouvida este ano, é portuguesa com certeza, ora vejam as acentuações e melismas do cante alentejano, a melodia decalcada de Menina Estás à Janela, e acrescentem uma pitada de pimentón ao cheirinho à alecrim, que este tempero tresanda ao espanhol C. Tangana.
O segundo triunfo desta espécie de pop tradicional portuguesa, ainda no início do ano, foi a Maria Joana dos Calema, Nuno Ribeiro e Mariza. O videoclipe começa, literalmente, com uma menina que está à janela, que como boa lisboeta, é óbvio, utiliza um lenço na cabeça e vive num apartamento de azulejos e paredes caiadas. E no fundo ouvem-se cavaquinhos, braguesas, concertinas, palmas flamencas, viras e fados. Maria Joana é um pastiche descarado, mas é um pastiche que funciona em 2023, sendo o maior sucesso de Mariza na era do streaming.
Por fim, certamente a canção nacional mais divisiva do ano: Preço Certo, de Pedro Mafama, com featuring não creditado de Fernando Mendes, apresentador do célebre programa da RTP com o mesmo nome. O intenso debate público sobre os méritos ou deméritos demonstra que Preço Certo é um animal diferente de CASA ou Maria Joana; a canção é desavergonhadamente ligeirinha, não pretende agrupar à bruta diversas tradições supostamente representativas de Portugal; o propósito calculado de Mafama é captar a energia esfuziante do bailarico. E fá-lo brilhantemente. Pedro Mafama constitui a intelectualização da música de baile. Não obstante uma campanha mediática agressiva, incluindo capas de jornais e telejornais a anunciar recordes de streaming, Preço Certo está distante do pódio: é “apenas” a 10.ª canção nacional mais ouvida. No Youtube é outra história: a plataforma ainda não revelou as mais populares, mas o videoclip de Pedro Mafama liderou a tabela semanal entre julho e setembro, durante 13 semanas. “CASA” foi outro êxito de visualizações naquela plataforma.
Que surto epidémico ocorreu para certos músicos portugueses, no geral lisboetas, assumirem-se subitamente ruralistas e patriotas? A primeira explicação é simples: Rosalía. O êxito do flamenco renovado da cantora espanhola, no qual a tradição não se sobrepõe ao objetivo supremo, que é uma sumarenta canção pop, convenceu a indústria musical nacional que a receita poderia ser replicada. “Agora todos querem ser a Rosalía”, cantou jocosamente Chico da Tina há três anos, e só em 2023, a estratégia resultou em fenómenos de massas.
A segunda explicação para o regresso de uma certa portugalidade musical é mais complexa: a própria indústria musical anglo-saxónica expande-se progressivamente para outras latitudes, como Porto Rico, Colômbia ou Nigéria. De acordo com os dados analisados, 2023 é o ano em que ouvimos menos música norte-americana — apenas 7%; em 2020 era 39%. Hoje existe um apetite pelas melodias, ritmos e maneirismos de uma pop geograficamente diversa, que seja baseada numa tradição local ou que a ela está inevitavelmente associada, desde a bachata ao flamenco; tradições musicais que, muitas vezes, como vemos em CASA ou Maria Joana, de genuíno nem o papel de parede — se é que existem tradições musicais genuínas, mas isso são outros quinhentos.
A música brasileira domina pelo terceiro ano consecutivo
Há um ano, revelámos uma alteração drástica nos hábitos musicais dos portugueses: metade da música mais ouvida via streaming era brasileira. Em 2023, o cenário é quase o mesmo — 45% do top semanal é brasileiro — ou seja, o Brasil estabeleceu-se pelo terceiro ano consecutivo como a nacionalidade mais ouvida em Portugal. Por diversas razões, desde o aumento da imigração brasileira às próprias alterações de gosto dos portugueses, esta paisagem musical não se deve alterar nos próximos anos.
A diferença substancial com o ano passado é o tipo de canção brasileira que ouvimos. No ano passado, o funk representou 37% de toda a música, enquanto em 2023 é apenas 16%. A retração do funk em Portugal deve-se ao sucesso da pop sertaneja de Nosso Quadro de Ana Castela, da pop de Luísa Sonza e Juliette, o pagode forró de Lapada Dela do Grupo Menos é Mais com Matheus Fernandes, e sobretudo, a ascensão meteórica do trap brasileiro. Em junho, por exemplo, em dez canções, quatro eram de trap do país de Machado de Assis. Em destaque, o acontecimento discográfico de Dos Prédios Deluxe, o segundo álbum do paulista Veigh e o segundo álbum mais ouvido em Portugal.
Desenganem-se quem julga que os portugueses perderam alento com o sacolejar de glúteos; a música que liderou mais semanas no Spotify ainda é funk: Tá OK de Dennis e Kevin O Chris, 14 semanas seguidas na liderança, a prova que os brasileiros até conseguem fazer gingar uma tuba. As tendências do funk também continuam a contagiar os miúdos portugueses: entre os funks de sucesso está a batida fantasmagórica de Baile do Bruxo, do subgénero de funk bruxaria.
O “streamer” médio: utiliza o Spotify e tem menos de 35 anos
As canções mais ouvidas via streaming retratam o tempo presente, mas retratam o tempo presente de uma camada da população em específico, sem considerar a plenitude de outros formatos de audições, desde o velhinho CD ao TikTok mais fresco. Qual o retrato dos portugueses que ouvem através do streaming? Infelizmente, não existem dados localizados relativos a Portugal, mas os dados gerais dão-nos pistas: o utilizador europeu dá (vasta) prioridade ao Spotify e tem menos de 35 anos.
O Spotify é líder de mercado absoluto no continente europeu. Segundo a consultora YPulse, em cinco europeus, três utilizam o Spotify. Os recentes anúncios de despedimentos e as recorrentes reclamações dos músicos pela miséria auferida neste formato não abalaram o mercado europeu; enquanto nos EUA a plataforma continua a enfrentar a concorrência do Youtube, Amazon Music e Pandora. O cenário em Portugal é provavelmente análogo ao europeu: domínio do Spotify e uma utilização respeitável do Youtube. De acordo com os dados, mais de metade dos utilizadores europeus do Spotify têm menos de 34 anos — 55% — sendo que a maior fatia de utilizadores está entre os 25 e 34 anos, o que revela o crescimento da audiência — há cinco anos, por exemplo, a maior fatia pertencia à geração entre os 18 e 25 anos.
O retrato geral da canção que agrada ao ouvido português é a música pop — 39% — cantada por homens — 74% — em projetos a solo — 66%. Contudo, este ano registou-se um aumento de músicas interpretadas por mulheres: as mulheres representam agora 25% do Top 10, um aumento de 9% em comparação com o ano passado — agradeçam a Bárbara Bandeira, Ana Castela e à canção vingativa de Shakira.
Depois da pop, o hip hop é o segundo género musical mais ouvido em Portugal. Em terceiro lugar está o funk, seguido do sertanejo e reggaeton. É o segundo ano consecutivo que não existe qualquer canção rock entre as mais ouvidas, apesar das melhores intenções de Olivia Rodrigo. Nos próximos meses, o regresso de Slow J promete marcar o início de 2024, cá estaremos no final do ano para dissecar os números do streaming em Portugal.
As 10 canções mais ouvidas em Portugal em 2023
- Como Tu (feat. Ivandro), de Bárbara Bandeira
- Tá OK, de DENNIS e MC Kevin o Chris
- Nosso Quadro, de AgroPlay e Ana Castela
- Chakras, de Ivandro e Julinho Ksd
- Coração de Gelo, de WIU
- Novo Balanço, de Veigh, Bvga Beatz, Prod Malax e Supernova Ent
- Flowers, de Miley Cyrus;
- CASA, de D.A.M.A e Buba Espinho;
- Lua, de Ivandro;
- La Bachata, de Manuel Turizo;
As 10 canções portuguesas mais ouvidas no país em 2023
- Como Tu, de Bárbara Bandeira
- Chakras, de Ivandro e Julinho Ksd
- CASA, de D.A.M.A e Buba Espinho
- Lua, de Ivandro
- TÁ TUDO BEM, de T-Rex
- Planeta, de Bispo e Bárbara Tinoco
- Chamada não Atendida, de Bárbara Tinoco
- ROSAS, de Kappa Jotta e MUN
- Maria Joana, de Nuno Ribeiro, Calema e Mariza
- Preço Certo, de Pedro Mafama
As canções que lideraram o Top10 mais semanas seguidas
- Tá OK, de DENNIS e MC Kevin o Chris (14 semanas)
- Chakras, de Ivandro e Julinho Ksd; Flowers de Miley Cyrus (10 semanas)
- Si No Estás, de Íñigo Quintero (9 semanas)