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Diogo Lopes/Observador

Diogo Lopes/Observador

Na cozinha do Loco com um Adrià: Albert serviu lagostas gigantes e pão aéreo

O irmão de Ferran Adrià e mítico parceiro nas lides do elBulli veio a Lisboa a convite do chef Alexandre Silva. O Observador foi com ele a Peniche apanhar água do mar e provou da sua comida.

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“Só tinha visto lagostas assim no elBulli, nos anos 80. Tínhamos um pescador local, o Patrick, que nos levava umas de vez em quando. Chegava lá sempre às 12h15, esperto: ficava sempre para comer qualquer coisa, depois”.

Entre risos, Albert Adrià conta esta história enquanto um dos seus sub-chefs, Ruben González, segura num destes crustáceos. Num viveiro de marisco, bem no coração de Peniche, os convidados espanhóis do chef Alexandre Silva, responsável pelo Loco, em Lisboa, olhavam estupefactos para a lagosta gigante que tinham à sua frente. Estávamos a pouco mais de 24 horas do grande jantar.

Muito provavelmente, o nome “Adrià” deve soar-lhe familiar. Afinal, trata-se do apelido dos dois homens, irmãos, que mais mudaram a cozinha mundial nas últimas décadas. Ferran e Albert Adrià formaram a dupla criativa por trás do icónico elBulli, o restaurante em Cala Montjoi, perto de Girona, que ficou na história pela forma disruptiva como criava comida (e formas de a pensar). A 31 de julho de 2011, o restaurante fechou, depois de 27 anos de história e na companhia de alguns dos maiores astros da comida nesse tempo. Ferran pendurou o avental e dedicou-se àquilo a que chama de Fundação elBulli e Albert, o irmão que quase foi forçado a trabalhar com ele mas que rapidamente passou a ser o criativo máximo de todo o projeto, continuou a cozinhar. Em Barcelona, hoje, tem seis restaurantes (e quatro estrelas Michelins), em breve irá abrir um enorme paraíso gastronómico em Nova Iorque mas no meio disso tudo conseguiu aceitar o convite de Alexandre Silva para vir a Portugal cozinhar com ele em mais uma edição dos jantares a quatro mãos, promovidos pelo Loco, que já trouxeram a terras lusas nomes como Diego Guerrero e Dominique Crenn.

Um passeio a Peniche e o jantar — foi este o “programa das festas” que o Observador pôde assistir, sempre na presença de Albert, a sua equipa (Ruben, Nacho, Daniel, Jhon e Hugo, um português), Alexandre Silva e seus cozinheiros. Nestes dois dias foi possível perceber melhor quem é este homem que, muitos acham, viveu sempre na sombra do seu “todo-poderoso” irmão, assim como respirar os ventos de diferença que nasceram no elBulli e que ainda hoje se sentem: tanto nos pratos de Albert como nos de muitos outros, que por eles se deixaram contagiar.

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Etapa 1: mariscos e piri-piri em Peniche

Lisboa, 43 graus, 10h30 da manhã do dia 3 de agosto, sexta-feira. Quando o Observador chegou ao Loco, Albert limpava o suor da testa, meio encostado à entrada do restaurante. “O nosso voo atrasou três horas, que caos!”, contou. Com ar cansado mas cheio de genica, Albert ia explicando que na sua entourage havia quem estivesse de direta e outros que “ainda conseguiram dormir umas horas” antes da viagem. Todos trabalharam na noite anterior. Esta conversa inicial não se estendeu demasiado — havia uma viagem para fazer. O atraso fez com que não fosse possível cumprir o plano inicial de ir até à Berlenga em busca de peixe e marisco para ser servido na noite a seguir, mesmo rumou-se à zona costeira do centro do país.

No total, três carros compunham esta espécie de romaria: Alexandre Silva, Adrià, dois dos seus cozinheiros e o Observador seguiram juntos. Questões como “vocês também costumam ter muitos problemas com incêndios, não é?” ou “as vossas auto-estradas têm bom aspeto, são recentes?” iam fazendo rolar o falatório. Ao mesmo tempo, acertavam-se agulhas em relação ao itinerário do dia. Primeiro, despachavam-se as algas e os mariscos, depois seguia-se o almoço e à tarde, antes do regresso, tratar-se-ia do peixe.

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A primeira paragem foi em Papôa, uma espécie de ilhéu nos arredores da cidade que serviu de cartão de boas vindas a solo português. Mar cristalino, penhascos, muito sol e um intenso cheiro a oceano: foi desta forma que todos foram recebidos assim que as rodas pararam pela primeira vez e começou a pequena sessão de foraging (recolher coisas na natureza para depois as utilizar na cozinha) que permitiu que se riscassem os primeiros elementos da lista de compras. Água do mar, vários tipos de algas e flor de alho foram alguns dos “ingredientes” recolhidos num raio de não mais de cinco metros — “É espantoso aquilo que a Natureza nos dá”, comentou Nacho, um dos cozinheiros de Albert. Com tudo já devidamente acondicionado, seguiu-se para a segunda paragem, os viveiros de marisco.

Tiago Fonseca, o proprietário da Ocean Tour, cruzou-se com a nossa romaria à entrada da lota de Peniche. Abrindo caminho, guiou-nos até ao armazém onde guarda algumas das suas jóias da coroa. “Entrem, entrem! Estão à vontade para ver tudo!”, exclamou à porta do edifício alto. Num ambiente escuro e hiper-higienizado, todos chocámos de frente com um fulminante cheiro a mar. À nossa direita estavam os primeiros tanques: dezenas de caranguejos vivos coabitavam pacificamente ao lado de lagostas pequenas e outros crustáceos, tudo isto foi o suficiente para saltarem dos bolsos os primeiros smartphones. “Tira aí uma foto!”, disse Daniel — “Dani”, entre os companheiros — enquanto segurava em dois bicharocos de tenazes intimidantes.

“Venham cá ver isto”, atirou Tiago. E todos subiram um lance de escadas a correr apenas para pararem junto a outro conjunto de tanques. Desta vez viam-se lagostins cor-de-laranja pálido, lavagantes do tamanho de um braço e aquele sempre estranho animal que é o cavaco. “Puta madre!”, exclamou um dos espanhóis. Logo depois, novo espanto ao ver a generosa piscina das santolas. “Pena nem sequer poder pegar neles”, comentou o veterano cozinheiro catalão. Acontece que Albert é agressivamente alérgico a crustáceos, de tal forma que basta pegar num animal destes para começarem os problemas. “É chato, mas pronto”, desabafou ao Observador. Com o tour concluído, fotos tiradas e compras feitas — a equipa espanhola escolheu a dedo uma série de percebes, que usou num prato do jantar. “Não quero os mais compridos, quero os curtos e carnudos”, explicou Albert –, o aguardado almoço.

“Epa isto está diferente, ficou muito giro!”, comentou Alexandre Silva enquanto abraçava Joel Martins, o homem que dá nome ao famoso restaurante penichense, a Tasca do Joel. De cara lavada mas sempre com o forno a lenha bem presente (e em destaque) na cozinha, esta casa que agora passou a ter uma loja gourmet foi o sítio escolhido para a primeira refeição de Albert Adrià e companhia. Já à mesa, uma primeira ronda de cervejas para todos. “Não há nada como o primeiro gole de cerveja”, exclamou Adrià de cara contente. Assim que pousou o copo começaram a chegar os primeiros petiscos: camarões cozidos, tapas de sardinha com vinagrete e várias fatias de broa (“Este pão é incrível”, comentaram os espanhóis) serviram para abrir o apetite. Seguiram-se os mexilhões, os percebes — que Albert foi devorando — e mais camarões, desta vez salteados. Nova rodada de cervejas e logo a seguir aterravam na mesa dois enormes tachos de arroz de bacalhau, o primeiro prato da refeição. De olhos a reluzir, Ruben destacou a qualidade dos “arrozes” portugueses enquanto se servia de uma generosa colherada. Confiante, decide pegar num galheteiro em metal e debruçou-o sobre o seu prato. Um fio reluzente começa a jorrar, em doses generosas, para espanto de todos: o cozinheiro tinha acabado de verter, à vontade, duas colheres de sopa do piri-piri caseiro da Tasca do Joel, mistura que, como o Observador pode comprovar também, era tudo menos branda. Ruben, porém, nem pestanejou quando levou a primeira (e segunda, e terceira, e quarta, …) garfada à boca. Adrià, que também foi surpreendido pela potência do tempero, não conseguiu não brincar com o seu corajoso chef: “É impressionante a forma como comes… Só conheço umas seis ou sete pessoas assim… O meu irmão, claro, o Martín [Berasategui], …” Todos riram.

Etapa 2: Apanhar morangos ao sol e o peixe “laxante”

Ainda haviam pessoas ca comer quando chegou o segundo prato. Duas grandes cataplanas traziam uma massada de peixe igualmente caldosa. Sem cerimónias, todos se atiraram ao pitéu e não houve descanso até se ver o fundo do recipiente metálico. “Que maravilha!”, exclamou Adrià, enquanto limpava a boca. “Não queria grandes sobremesas”, atirou o cozinheiro. Alexandre Silva respondeu: “Sim, até porque temos de ir para a lota.” Um café e um pastel de feijão foi o ponto final desta refeição em que todos usaram babete ao pescoço. Depois de uma pequena paragem, à porta do estabelecimento, para a já habitual foto de grupo, seguiu-se caminho.

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Em pouco tempo estávamos de volta à lota, desta vez num edifício diferente, colado à água, bem maior que aquele que se tinha visitado umas horas antes. O relógio batia perto das 16h30 quando Tiago exclamou que esta era a hora ideal para vir comprar peixe fresco, já que é nesta altura que muitos pescadores regressam dos mar com os porões cheios.

Para quem nunca tenha assistido a uma leilão de peixe, o cenário era idílico. Caixas e mais caixas cor-de-laranja empilhavam-se umas em cima das outras, todas elas cheias de polvos, robalos, chernes, cavalas, tamborís e muitas outras criaturas marinhas, de todas as formas e feitios. Um deles, em particular, chamou à atenção do grupo. “Isto é um Chocolate”, dizia Tiago enquanto apontava para um peixe enorme cor de cacau preto. “Quando o comes, se não o cozinhares bem, cagas-te todo”, afirmou, entre risos, num portunhol desenrascado. A turma riu-se, deu mais umas voltas entre o labirinto de recipientes, e dirigiu-se às bancadas de onde são feitas as licitações.

Várias pessoas conversavam, riam, mas para alguns dos presentes, que nunca tinham assistido a um “ritual” destes, as dúvidas amontoavam-se sobre a forma como tudo funcionava. “É simples”, começou Tiago. Cada comprador tem de se registar e, depois disso, recebe uma espécie de comando de televisão com dois botões. Ocupa um lugar sentado e, à sua frente, numa comprida fila de tapetes rolantes, as caixas vão desfilando. “Tens dois ecrãs, o um e o dois. Cada botão do comando diz respeito a cada um deles. Quando vês o produto que queres, deixas o preço cair até ao valor que queres gastar e carregas. Fica com o peixe quem carregar primeiro”. Assim de repente, a explicação pode parecer complexa, mas até é bem simples. A base de licitação de cada caixa é determinada pelo valor mais alto dado no dia anterior (“mais uns quatro ou cinco euros”), pelo mesmo tipo de peixe. O preço vai caindo e quando chega ao valor que nos convém gastar, carregamos no botão, na esperança que ninguém carregue antes de nós.

Assim foi: felizmente, o grupo conseguiu comprar aquilo que queria — umas quantas cavalas, para o chef Alexandre, e um belo robalo para Adrià — e tudo parecia terminado. Só que não.

Debruçados entre a vegetação, debaixo de um calor intenso, procuraram-se os mais brilhantes cones vermelhos ("Têm de ser todos, mais ou menos, do mesmo tamanho", disse Nacho). Meia hora depois, finalmente, a missão estava cumprida... Amanhã seria o grande dia.

“Os morangos que temos têm rama?”, perguntou Nacho. Tudo parou. Haviam bastantes desses frutos, sim, mas nenhum tinha o apêndice que os convidados queriam. E agora? Ricardo Leite, o número 2 de Alexandre Silva, sacou do telemóvel e começou a fazer chamadas. “Estou? Olá, como está? Olha, precisávamos de uns morangos com rama, tem alguma coisa disso?”, perguntou. Felizmente, a resposta foi afirmativa. A Quinta de Santo Estevão, um dos fornecedores do Loco, tinha os morangos desejados, mas havia um porém — era preciso ir lá buscá-los. E foi assim que a viagem a Peniche ganhou mais uma paragem e a equipa dividiu-se: O Observador seguiu com Ricardo Leite e Nacho na carrinha frigorífica e todos os outros regressaram a Lisboa.

Uma hora e meia de viagem e muita transpiração depois, a Quinta aparecia. “Vamos apanhar os morangos, então?”, exclamou logo uma funcionária deste produtor, depois de ter dado a provar courgettes acabadas de apanhar ao cozinheiro espanhol. Com jeitinho (e muito cuidado), quatro pessoas enfiaram-se num trolley de golf — Nacho e o Observador foram em pé, agarrados ao tejadilho — e em poucos minutos pisámos a terra arenosa da extensíssima plantação. “Agora é só escolherem à vontade!”, clamou a funcionária. E assim foi. Debruçados entre a vegetação, debaixo de um calor intenso, procuraram-se os mais brilhantes cones vermelhos (“Têm de ser todos mais ou menos do mesmo tamanho”, disse Nacho). Meia hora depois, finalmente, a missão estava cumprida… Amanhã seria o grande dia.

Etapa 3: 21 pratos, 5 vinhos e uma kombucha

Às 15h, o nível da temperatura era proporcional ao ritmo de trabalho que se via no Loco — intenso. Suor de trabalho confundia-se com o do calor mas não era por isso que se baixavam os braços. “O Albert chegou perto do meio-dia e pouco, mas o pessoal dele está cá desde as oito e tal da manhã”, contou ao Observador um dos cozinheiros do restaurante de Alexandre Silva. Notava-se alguma pressão subliminar, por muito que a uma primeira vista tudo parecesse tranquilo. O cozinheiro português estava a descascar e brasear um tabuleiro inox cheio de lagostins do rio, juntamente com dois ajudantes; o staff de sala (Emília Craveiro, a sommelier, João Marujo e Sérgio Caldeira, os assistentes de sala) limpavam e poliam furiosamente um número de copos quase interminável e os espanhóis dividiam-se em várias funções: Dani nas sobremesas, com Carolina Pereira, a chef pasteleira da casa; Jhon nas entradas frias, a preparar uma série de tabuleiros com reluzentes tiras de gelatina de coentros; Ruben andava de volta do fogão, mexendo e remexendo numa série de tachos e Nacho preparava o peixe para o prato de sashimi, que o próprio iria cortar ao momento, durante o jantar, junto à mesa. Onde estava Albert, então?

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No fundo da belíssima cozinha do Loco, debruçado sobre uma bancada, o cozinheiro catalão ia remexendo numa série de peles de bacalhau. “Estou a fazer um prato que pensei de propósito para hoje”, explicou. Num tabuleiro metálico fundo, Albert esticava as peles, umas em cima das outras, com uma folha de papel vegetal entre cada camada, tudo besuntado com azeite. “Vou confitar as peles e depois servi-las com um molho de anchovas. É uma espécie de homenagem aos nossos dois países, o bacalhau português e as anchovas espanholas”. E foi de volta disto que ficou uma série de tempo.

“Às 17h quero tudo pronto, ok?”, gritou Alex Silva enquanto toda a gente continuava compenetradíssima no trabalho que fazia. “Sim, chef!”, foi a resposta que ouviu, em uníssono, vinda de todos os presentes — convidados incluídos. Pouco depois deste momento quase militarista, o mesmo Alexandre passa pelo Observador e diz: “Vais ver como é que se limpa uma cozinha a sério”. Tudo o que havia a preparar, a chamada mise-en-place (que não é mais do que o conjunto de todos os elementos de cada prato já quase prontos a servir), já estava pronto, e num instante, todas as bancadas e recantos do restaurante foram libertas de material alimentar e substituídas por esfregões, panos e material de limpeza. Toda a gente, sem exceção, limpou a cozinha de fio a pavio: balcões, paredes, fornos, até as grades do sistema de escoamento no chão. Em pouco mais de meia-hora, tudo estava reluzente e pronto para o grande momento pré-refeição: Testar os pratos todos e ver, em conjunto com a sommelier, que vinhos seriam servidos com quê, uma espécie de ensaio geral para garantir que nada falha — do tipo de talheres que acompanham cada prato à distância que os carrinhos de apoio podia ter em relação às mesas dos clientes.

Fumaram-se uns cigarros de última hora, beberam-se umas águas (foram inúmeras, ao longo do dia) e menos de nada, chegaram os primeiros clientes.

“Começamos com a água de tomate!”, atirou Albert. O próprio segurava numa garrafa de líquido amarelado, numas folhas e numa pedra com um dos morangos apanhados no dia anterior. “Devem explicar ao cliente que é para começar com a água e só depois é que comem o morango, com a mão!”, explicou. A equipa de sala apreendeu. Siga-se o próximo. Durante cerca de uma hora, todas as iguarias planeadas (21 pratos, no total) foram provadas por todos, assim como os vinhos, sempre na procura da combinação perfeita. Resultado final? Cinco vinhos e uma kombucha (bebida fermentada, neste caso era com sabor a chá dos Açores) fariam a maridagem com a comida.

A hora “H” aproximava-se (as 20h, altura em que chegava a primeira mesa) e o ritmo acelerarou ainda mais. Os estagiários que estavam quase a ir embora foram requisitados para ajudar a arrumar a loiça toda — todos os pratos, taças e tigelas do restaurante ficaram em exposição, nas mesas, para que Albert e sua equipa escolhessem à vontade quais os que ficavam melhor com quê –, os cozinheiros e pessoal de sala foram-se trocar e vestir a roupa de serviço — a equipa de Alexandre Silva vestia a sua tradicional camisa verde escura e os espanhóis jalecas brancas com pormenores a dourado, a fazer lembrar fardas militares de outros tempos –, e as mesas iam sendo preparadas, com rigor quase milimétrico. Fumaram-se uns cigarros de última hora, beberam-se umas águas (foram inúmeras, ao longo do dia) e em menos de nada, chegaram os primeiros clientes.

Etapa 4: Ao som do alarme, a vitória

“Sejam muito bem-vindos ao Loco, para esta noite muito especial. Façam o favor de me acompanhar até à vossa mesa”. De voz gentil e pacífica — uma mudança de 180 graus em comparação com aquilo que acontecia há umas horas, em que se falava alto e soltavam-se larachas –, João Marujo recebeu o primeiro casal da noite. A lotação estava no máximo, os lugares esgotaram em menos de uma hora depois de ter sido comunicado que o irmão de Ferran Adrià vinha a Lisboa cozinhar. Vinte seis pessoas sentaram-se nas mesas do restaurante lisboeta que detém uma estrela Michelin desde 2017: Dois grupos de seis pessoas (no caso de um deles, ninguém conhecia ninguém), quatro casais e uma mesa de quatro compunham o terreno de jogo.

O primeiro momento da refeição, como já tinha sido explicado na prova antes da abertura, era o da água de tomate e o morango. A água, simples, vinha com um cubo de gelo (muito bem vindo, dado calor) feito com o mesma líquido e o cliente tinha de começar por beber tudo — uma mistura refrescante que ganhava notas herbáceas graças às ramas de verbena que eram esfregadas no rebordo do copo, antes de servir — e só depois comia o morango, que tinha sido desidratado para que o seu sabor ficasse mais concentrado. Uma fina camada de azeite e umas pedras de sal compunham o ramalhete. Logo a seguir outra criação de Adrià, um cubo oco feito com alga noori com caviar acompanhado de um percebes com molho de codium, uma espécie de alga (que tinha sido apanhada no dia anterior) com um forte travo a mar. Neste principio sentia-se logo a importância da viagem do dia anterior, do contacto com a frescura do oceano e seus sabores. Mas mais ainda estava por acontecer.

A bom ritmo a sala foi-se enchendo com os convidados (não se engane, todos pagaram 250€ por pessoa para participar nesta refeição). Relaxados e bem dispostos, iam aproveitando cada segundo da experiência enquanto na cozinha, a ordem imperava. Entre espanhol, português e, claro, portunhol, a comunicação ia sendo feita sem espinhas e todos os pedidos saiam a bom ritmo, sem haver grandes esperas entre o momento que se acabava um prato e chegava outro. O primeiro prato de Alexandre Silva, por exemplo, foi o terceiro a ser servido e era uma criação nova, que “talvez entre para a próxima carta”, onde cada comensal encontrava um rabo de cavala frito coberto com um tártaro do mesmo peixe. Imediatamente a seguir surgia novo prato da casa, uma espécie de nigiri de cavala coberto com um finíssimo retângulo de lardo (banha de porco, trocado por miúdos) que era aquecido antes de chegar à mesa. A acompanhá-lo vinha um pequeno copo com caldo de peixe, uma mistura reminiscente às sopas miso dos japoneses.

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Tudo corria suavemente, os pratos iam saindo, as pessoas sorriam, faziam brindes, até que de repente, um estardalhaço enorme virou todos os olhos da sala em direção à cozinha: Ao ir buscar uma nova garrafa de kombutcha, o recipiente em causa partiu-se em mil bocados. Toda a gente parou, olhou — para ver se todos estavam bem –, mas no espaço de um micro-segundo o ritmo voltou ao normal. A sommelier Emília depois explicou ao Observador que a garrafa “explosiva” não tinha caído, nada disso. Acontece que a kombutcha, como bebida fermentada que é — todas as que aqui são servidas são feita pelo restaurante –, gera uma grande quantidade de gás, o que faz com que sejam sempre “um totoloto”, nas palavras da própria. “Às vezes rebentam, é muito difícil de controlar”. Sem problemas: como diziam os Queen, ‘show must go on’. 

Regressando às criações de Albert, o quinto momento foi o ‘tiradito’, petite nom caricato criado por causa da aparência do prato em si. Tratava-se de uma espécie de renda feita com tiras de gelatina de coentros e abacate fresco, que depois era fechada em forma de almofada e recheada com maionese de lavagante com chipotle, tempero picante muito popular no sudoeste dos EUA. “Isto deve ter demorado horas a fazer!”, exclamou um dos clientes. Realmente, não poderia ter mais razão, já que este foi o prato que mais trabalho deu a montar. Seguiu-se aquilo a que os espanhóis chamaram de ‘Nórdico’, um petisco que consistia numa tosta de pão de malte coberto com uma fatia fina de carne fumada, queijo fumado, cebola roxa e chalota em pickle assim como uns apontamentos de endro, essa erva aromática tão típica da Escandinávia. A cobrir tudo, pó de vinagre.

A meio do serviço, Albert desapareceu. “Onde está o chef'”, comentou um dos seus cozinheiros. Passado pouco tempo, o desaparecido regressa, com uma história. “Não acredito nisto, o ar condicionado do Enigma avariou a meio do serviço!”, comentou o astro espanhol com a sua equipa. Para quem não saiba, Enigma é o nome do seu restaurante mais recente, um autêntico templo da gastronomia e da encenação (todos os pratos são comidos em sítios diferentes, por exemplo). Tendo em conta que em Barcelona, nesta altura, os termómetros não estavam muito abaixo dos valores marcados na capital portuguesa, percebia-se o pânico. “Bem, não posso fazer nada. Não dá para conseguir arranjar aquilo agora, por isso… Faço um desconto grande a toda a gente.”

Assim que os primeiros nacos foram para o calor, o fumo adensou-se e... o alarme de incêndio soou. Assim que isto aconteceu, Alexandre Silva saiu disparado para o quadro técnico do restaurante para calar o estridente apito que inundou a sala.  Tudo resolvido, pelo menos durante uns minutos, já que o mesmo voltou a acontecer.

Houve ainda uma mistura de caracoletas grelhadas no carvão — a cozinha do Loco assim o permite — com creme de alho e molho bordalesa, lagostins do rio com couve salteada e picante, uma espécie de caldo com sementes de courgette e emulsão de pimento basco… Comida maravilhosa não faltou, longe, muito longe disso. Até o momento do pão, um ritual levado muito a sério no Loco, já que é tido como um dos momentos da refeição (pão caseiro, feito todos os dias, que é servido com molho de bife à portuguesa, manteiga, azeite) ficou na memória de todos.  De entre as iguarias servidas nesta noite, algumas delas destacaram-se: primeiro, o sashimi de robalo, uma inteligente criação em que Nacho laminava fatias deste peixe e colocavas num pequeno pires, cheio de água do mar, gelo feito com o mesmo liquido (apanhado, lá está, em Peniche) e três tipos de algas — “A ideia era devolver o peixe ao sítio de onde ele veio, uma escolha engraçada que dá um sabor ótimo”, explicou Adrià; a tal pele de bacalhau com molho de anchovas; o famoso ‘pão aero’, uma espécie de croissant totalmente oco (antes de o cozer, os cozinheiros enchem-no de ar para alcançar esse resultado) que é servido com um molho feito com cabeças de lavagante; a sobremesa de inspiração japonesa em que um bloco de água de pinhões era esfarelada com ajuda de uma máquina e depois, com ao que dela saísse, juntava-se leite de pinhões, mel de resina de pinheiro e mini-pinhas que ficaram submersas em mel durante dois anos. A mais particular de todas, por sua vez, foi a servida como prato principal, com enorme alvoroço.

“Chuletón de lavagante” foi o nome engraçado que Adriá escolheu para o penúltimo prato salgado da noite. Trata-se de um rabo deste crustáceo que fica forrado com uma espessa camada de banha de vaca e é deixado assim durante uns tempos, antes de ser cozinhado nas brasas. O resultado final é uma criação espetacular que quase nos faz crer que, apesar de estarmos a morder marisco, na verdade, temos na boca um generoso naco de carne. Acontece que cozinhar isto em carvão incandescente resulta numa grande fumarada — a gordura, combustível, pinga no quente e saem grandes labaredas. Logo que os primeiros nacos foram para o calor, o fumo adensou-se e o alarme de incêndio soou. Assim que isto aconteceu, Alexandre Silva saiu disparado para o quadro técnico do restaurante para calar o estridente apito que inundou a sala.  Tudo resolvido, pelo menos durante uns minutos, já que o mesmo voltou a acontecer.

Quatro horas e meia, 270 minutos. Foi esta a duração de cada refeição dessa noite. Durante todo esse tempo foi possível relembrar o elBulli, conhecer o talento de Alexandre Silva, provar Peniche (e Portugal num todo, já agora) e viver aquele que foi, muito provavelmente, um dos jantares do ano.

No final da noite, quando os clientes já tinham saído e tudo estava arrumado, Albert ofereceu ao Loco um livro de receitas seu, autografado e com uma dedicatória elogiosa. Depois disso, sentou-se sozinho, numa mesa no fundo do restaurante, na companhia do telemóvel e de um copo de vinho branco. Estava a meio de um daqueles jogos viciantes de fazer explodir pedras coloridas quando se despediu do Observador. Tal como o jantar, a partida que disputava, estava “a correr super bem”.

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