Joe Biden nunca escondeu que é católico. Pelo contrário, usou a fé para angariar votos entre a comunidade católica norte-americana, que representa já um quinto da população do país — e que se encontra sobretudo concentrada em estados do Midwest, como a Pensilvânia, o Michigan ou o Wisconsin. A estratégia parece ter resultado, ou pelo menos dado uma ajuda: Biden não só conseguiu roubar esses estados a Donald Trump como se tornou no segundo Presidente católico da história dos Estados Unidos, depois de John Kennedy.
Todavia, se a relação de Biden com a base eleitoral católica é amistosa, o mesmo não se pode dizer da relação com a hierarquia eclesiástica dos EUA, um país onde o peso da ala conservadora da Igreja mais se faz sentir. No centro da discórdia, um único assunto: o apoio político de Joe Biden à legalização do aborto. A guerra entre bispos e Biden já se prolonga há vários anos e agudizou-se na tomada de posse, em janeiro. Agora, numa altura em que a conferência episcopal dos EUA se preparava para emitir uma orientação nacional destinada a afastar da comunhão a todos os políticos apoiantes do aborto, o Vaticano interveio na guerra em defesa de Joe Biden.
Posição do católico Biden sobre o aborto aprofunda discórdias na Igreja no dia da tomada de posse
“Uma política desse género, devido à sua possível natureza contenciosa, poderia ter o efeito oposto e tornar-se numa fonte de discórdia em vez de unidade dentro do episcopado e da Igreja em geral nos EUA”, avisou esta semana o Vaticano através de uma carta enviada à conferência episcopal norte-americana, assinada pelo cardeal Luis Ladaria, o homem forte do Papa Francisco para a doutrina católica.
Sabendo que um dos principais problemas internos da Igreja norte-americana reside atualmente na falta de consenso entre os conservadores mais irredutíveis e os progressistas mais flexíveis, o Vaticano aconselhou os bispos a dialogarem antes de avançarem com qualquer documento nacional — entre si e com os próprios políticos — e explicou-lhes que o aborto não é o único assunto central da doutrina católica e os políticos não são os únicos fiéis.
“Como é que ele pode dizer que é um católico devoto?”
A controvérsia não é nova. Em 2008, quando se soube que Joe Biden, à época senador pelo estado do Delaware, seria o número dois de Barack Obama na candidatura do Partido Democrata à Presidência dos EUA, o bispo da cidade de Scranton (a terra-natal de Biden) disse que não iria admitir o candidato a vice-presidente à comunhão nas suas igrejas. “Nenhum político católico que apoie esta cultura da morte se deve aproximar da sagrada comunhão. Vou ser verdadeiramente vigilante relativamente a este ponto”, afirmou o bispo Joseph F. Martino.
A controvérsia reacendeu-se em 2019, com a candidatura de Biden à Presidência dos EUA. Em outubro daquele ano, um padre do estado da Carolina do Sul proibiu Biden de comungar por considerar que o candidato democrata estava “fora dos ensinamentos da Igreja”. O motivo foi o mesmo: ao longo da sua carreira como senador, Joe Biden sempre defendeu o direito ao aborto, embora já tenha assumido que é pessoalmente contra. “Em relação ao aborto, eu aceito a posição da minha Igreja de que a vida começa na conceção. É essa a opinião da Igreja. Eu aceito-a na minha vida pessoal. Mas recuso impô-la a pessoas tão devotas [quanto eu], sejam cristãos, muçulmanos ou judeus. Recuso impor isso aos outros”, dissera Biden em 2012 num debate com Paul Ryan, candidato republicano à vice-presidência. “Não acredito que tenhamos o direito de dizer às outras pessoas que as mulheres não podem controlar o próprio corpo. É uma decisão entre elas e os seus médicos, na minha opinião.”
Padre católico não deixa Joe Biden comungar por este defender direito ao aborto
Mas, para os bispos, não chega que Biden seja católico e siga os ensinamentos da Igreja na sua vida pessoal — sobretudo num momento histórico em que o aborto está transformado num dos principais pontos de discórdia no debate político norte-americano.
Isso ficou claro no dia da tomada de posse de Joe Biden como Presidente dos EUA, em janeiro de 2021.
No próprio dia, o presidente da Conferência Episcopal dos EUA, o arcebispo de Los Angeles, José H. Gómez, difundiu um extenso comunicado que causou enorme polémica entre a própria cúpula eclesiástica. Depois de uma curta mensagem de parabéns pela eleição, o líder católico dos EUA passou ao ataque num texto em que “aborto” é uma das palavras mais repetidas. “Devo assinalar que o nosso novo Presidente prometeu seguir certas políticas que vão fazer avançar males morais e ameaçar a vida e a dignidade humanas, mais gravemente nas áreas do aborto, da contraceção, do casamento e do género”, escreveu Gómez. “Temos profundas preocupações relativas a muitas ameaças à vida humana e à dignidade da nossa sociedade. Mas, como o Papa Francisco ensina, não podemos ficar em silêncio quando perto de um milhão de vidas por nascer são postas de lado no nosso país todos os anos”, acrescentou, salientando que o aborto é a “prioridade proeminente” dos bispos. Mas nem todos os bispos concordaram. O cardeal Blase Cupich, arcebispo de Chicago e um dos maiores aliados do Papa Francisco nos EUA, veio classificar o comunicado como “irrefletido” e lamentar que o texto não tivesse sido aprovado por todos os bispos.
Ao longo dos últimos meses, alguns dos nomes mais sonantes da Igreja Católica norte-americana pronunciaram de modo contraditório sobre o tema. O arcebispo de Nova Iorque, Timothy Dolan, disse compreender a decisão do padre que em 2019 negou a comunhão a Biden, mas garantiu que nunca o faria — deve ser uma decisão de cada um aproximar-se ou não do altar para receber a comunhão, afirmou. Já o ex-arcebispo de Filadélfia, Charles Caput, considerou que Biden devia ser proibido de receber a comunhão. Sem surpresas, o cardeal ultraconservador Raymond Burke, considerado o principal rosto dos inimigos de Francisco dentro da Igreja, também se pronunciou a favor de uma proibição contra Biden.
Se a controvérsia não era nova, a eleição de Joe Biden veio aprofundar a discórdia dentro da Igreja e motivou os bispos norte-americanos a agir.
A notícia foi conhecida no final de abril: o próximo plenário dos bispos, agendado para junho, vai ter como ponto central da agenda a discussão e aprovação de um documento nacional com aquilo que a Associated Press descreveu recentemente como “a mensagem mais dura de sempre para o Presidente Joe Biden e outros políticos católicos: não recebam a comunhão se insistirem em defender publicamente o direito ao aborto”. Em causa, um documento que está a ser preparado pela comissão de doutrina da conferência episcopal para aconselhar os bispos sobre o que fazer caso acolham nas suas igrejas políticos católicos que defendam publicamente ideias contrárias à doutrina eclesiástica.
Àquela agência, o arcebispo de Kansas City, Joseph Naumann, que preside à comissão de doutrina, explicou que a defesa pública do aborto por parte de Biden é “um grave mal moral”. “Como o Presidente Biden é católico, isto é um problema inédito para nós. Cria confusão. Como é que ele pode dizer que é um católico devoto e fazer estas coisas que são contrárias ao ensinamento da Igreja?”, questionou Naumann, que acrescentou que a ideia do documento a ser aprovado no próximo plenário é deixar bem claro que a posição oficial da conferência episcopal é a de que um político católico que expresse pontos de vista contrários à doutrina não deve ser autorizado a receber a comunhão.
Todavia, uma vez que a conferência episcopal é um órgão colegial de coordenação de pontos de vista sem um peso vinculativo sobre as dioceses, o documento continuaria a deixar a cada bispo a decisão de aceitar ou não os políticos — e, no caso de Joe Biden, os dois bispos que supervisionam as igrejas frequentadas pelo Presidente dos EUA (Francis Malooly de Wilmington, no Delaware, e Wilton Gregory, de Washington D.C.) já disseram publicamente que não vão recusar dar-lhe a comunhão.
De acordo com Naumann, o trabalho preparatório do documento começou em novembro, mês em que Joe Biden foi eleito Presidente dos EUA. Nessa altura, como lembra a Associated Press, o presidente da conferência episcopal, José Gómez, decidiu criar um grupo de trabalho para abordar “a situação complexa e difícil” causada pelas declarações de Joe Biden. A tarefa foi atribuída à comissão liderada por Naumann e o primeiro esboço será apresentado no plenário de junho, onde precisa de recolher o voto favorável de pelo menos dois terços dos bispos norte-americanos para ser aprovado. Se tal acontecer — e é expectável que aconteça —, o trabalho prosseguirá de modo a que o documento final seja apresentado mais tarde.
Dentro da conferência episcopal, um grupo de bispos já se posicionou contra o projeto, mas tudo indica que essa oposição não será suficiente para impedir a aprovação do documento.
“Se um político é apontado como exemplo negativo pela sua própria Igreja, isso cria um contexto triste no qual a Igreja vai lidar com este Presidente católico. Contribui para a polarização da Igreja e da sociedade”, lamentou o bispo de Lexington, John Stowe, um dos principais críticos do documento. “Não vejo como é que privar o Presidente ou outros líderes políticos da comunhão com base nos seus posicionamentos públicos podem ser interpretados na nossa sociedade como outra coisa que não a transformação da eucaristia numa arma”, considerou o bispo Robert McElroy de San Diego.
Mas outros bispos, como o arcebispo Salvatore Cordileone, de São Francisco, temem que os posicionamentos de Biden levem os católicos americanos a afastarem-se da doutrina. “O aborto não é apenas um entre vários assuntos importantes. É um ataque direto à vida humana”, classificou McElroy. Já Naumann, que se mantém decidido a apresentar um documento de forte condenação a Biden e a outros políticos que apoiem o aborto, acusa mesmo o Presidente dos EUA de “usurpar” o lugar dos bispos. “Ele não tem autoridade para ensinar o que significa ser católico. Essa é a nossa responsabilidade enquanto bispos. Intencionalmente ou não, ele está a tentar usurpar a nossa autoridade”, afiançou o arcebispo de Kansas City.
Vaticano pede diálogo e recusa documento específico sobre políticos
O plano para cerrar fileiras contra Biden está ser acompanhado pelo Papa Francisco a partir do Vaticano e a cúpula da Igreja Católica global lançou esta semana um alerta aos bispos norte-americanos para abrandarem o ataque que se preparam para fazer aos políticos.
Segundo a revista America, publicação dos jesuítas nos Estados Unidos, o arcebispo José Gómez enviou no dia 30 de março uma carta à Congregação para a Doutrina da Fé (organismo do Vaticano que sucedeu à Inquisição e que supervisiona as questões doutrinais na Igreja) para dar conta do plano dos bispos. A resposta chegou pouco mais de um mês depois, numa carta enviada a 7 de maio pelo cardeal Luis Ladaria, o jesuíta espanhol que o Papa Francisco colocou à frente da CDF em 2017. Na carta, o Vaticano lembrou que o tema já havia sido discutido entre os bispos norte-americanos e o Papa Francisco num conjunto de reuniões em 2019 e 2020 — e nessa altura receberam o conselho de que deveriam promover o “diálogo entre os bispos” com o objetivo de “preservar a unidade da conferência episcopal face aos desentendimentos sobre este tópico controverso”.
Nessas reuniões de 2019 e 2020, “a formulação de uma política nacional foi sugerida (…) apenas se ajudasse os bispos a manter a unidade”. Porém, não é isso que está a acontecer nos EUA — e a aprovação do novo documento arrisca aprofundar ainda mais uma discórdia já profunda, avisa o Vaticano.
“A congregação nota que uma política desse género, devido à sua possível natureza contenciosa, poderia ter o efeito oposto e tornar-se numa fonte de discórdia em vez de unidade dentro do episcopado e da Igreja em geral nos EUA”, insiste Ladaria na carta, apelando a um “diálogo extensivo e sereno” sobre o assunto. Este diálogo, afirma o Vaticano, deve ser feito em dois passos: em primeiro lugar, entre os bispos, com o objetivo de chegar a acordo sobre o posicionamento doutrinário; em segundo lugar, cada bispo deve entrar em diálogo com os políticos católicos “dentro das suas jurisdições que adotem posições pró-escolha sobre a legislação relativa ao aborto, eutanásia e outros males morais, como modo de entenderem a natureza das suas posições e a sua compreensão da doutrina católica”.
Só depois deste diálogo é que os bispos devem avançar para um processo interno de discernimento relativamente à melhor maneira de a Igreja avançar relativamente à “séria responsabilidade moral dos agentes públicos católicos de proteger a vida humana em todas as fases”.
Para o Vaticano, é muito claro que a solução não só não deverá passar pela adoção de um documento específico direcionado para os políticos como deverá ser amadurecida durante mais tempo, para que não seja feita apressadamente nem arrisque abrir feridas difíceis de sarar entre os católicos americanos. Qualquer decisão de “formular uma política nacional sobre o merecimento da comunhão” deverá sempre “expressar um verdadeiro consenso dos bispos” — algo que está ainda longe de ser alcançado — e respeitar todas as normas da Santa Sé.
“Qualquer declaração da conferência sobre os líderes políticos católicos será melhor enquadrada no contexto mais alargada do valor da receção da comunhão da parte de todos os fiéis, em vez de apenas uma categoria de católicos, refletindo a sua obrigação de conformar as suas vidas inteiramente ao evangelho de Jesus Cristo quando se preparam para receber o sacramento”, continua a carta do Vaticano. Ou seja, a ideia dos bispos norte-americanos de avançar com um documento especialmente apontado aos políticos será sempre um erro.
Mas a carta do Vaticano vai ainda mais longe nas críticas aos bispos norte-americanos, sobretudo à afirmação proferida pelo presidente da conferência episcopal dos EUA no dia da tomada de posse de Joe Biden — que disse que o aborto era a principal prioridade para a Igreja no país. “Seria enganador se uma declaração dessas transmitisse a impressão de que o aborto e a eutanásia, por si só, constituem os únicos assuntos sérios da doutrina moral e social da Igreja que requerem a total responsabilização da parte dos católicos”, escreveu Ladaria.
Porém, a verdade é que temas como o aborto e a eutanásia se tornaram recentemente numa espécie de assunto vital na guerra cultural travada entre conservadores e progressistas. Em janeiro, numa entrevista ao Observador, o biógrafo do Papa Francisco, Austen Ivereigh, explicava o fenómeno como uma “política baseada na guerra cultural, que tenta transformar um único assunto, neste caso o aborto, no único tema, sendo que tudo o resto é relativo a ele”. Segundo Ivereigh, um dos maiores conhecedores do pensamento do Papa argentino, este é o modo errado de olhar para o assunto no entender de Francisco. “O Papa pronuncia-se duramente contra o aborto, mas liga-o ao modo como tratamos os migrantes e ao modo como tratamos o ambiente. Ou seja, ele coloca-o num contexto ético muito mais alargado, dizendo: se nos preocupamos com isto, também temos de nos preocupar com aquilo.”