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Não foi só no Japão. A história do jesuíta português perseguido pela Indonésia em Timor

Mais de 300 anos depois da história contada em "Silêncio", ainda há jesuítas portugueses do outro lado do mundo junto de povos perseguidos. Como João Felgueiras, em Timor há 46 anos.

Quando os padres jesuítas Sebastião Rodrigues e Francisco Garupe (inspirados no jesuíta italiano Giuseppe Chiara) chegaram ao Japão, em 1639, já sabiam o que os esperava. Iam em busca do seu mentor, o jesuíta Cristóvão Ferreira, que, segundo os boatos, teria renunciado à sua fé católica para evitar a tortura e vivia agora como sábio num templo budista japonês. Sabiam que a sua condição de padres jesuítas os punha em risco de vida — a eles e às comunidades cristãs japonesas que viviam a sua fé em segredo, perseguidos, torturados e assassinados pelos inquisidores da ditadura feudal que governou o Japão até meados do século XIX, e que desesperavam pela chegada de um padre que lhes pudesse administrar os sacramentos e celebrar a missa. À noite, e em silêncio, como o nome do filme de Martin Scorsese, que estreou esta quinta-feira. A história é real e dura, aterradora até, mas a distância temporal pode fazer-nos pensar que se trata apenas de uma história.

Quando o padre jesuíta português João Felgueiras chegou a Timor Leste, trezentos anos depois, em 1971, não sabia bem o que o esperava. Mas acabou por ter uma vida em alguns aspetos semelhante à de Rodrigues e Garupe — sobretudo depois da ocupação de Timor-Leste pela Indonésia, em 1975. João Felgueiras viveu com um povo que era perseguido pelos indonésios, administrando-lhes sacramentos, ouvindo confissões, celebrando missas em segredo e fugindo com populações inteiras para as florestas. E, tal como Sebastião era um incómodo para as autoridades japonesas no século XVII, João era um incómodo para as autoridades indonésias no século XX, que o tentaram expulsar várias vezes do país. Quem recorda a história de João Felgueiras, ou “padre Felgueiras”, como carinhosamente ainda lhe chamam os timorenses, é Isaías Caldas, de 31 anos, um jesuíta em formação que viveu com ele em Timor, e que hoje vive e estuda no Porto. “Conheci-o de perto, vivi na comunidade com ele. Quando nasci, ele já era uma figura muito falada, muito conhecida em todo o país”, lembra. E hoje “continua a receber visitas dos pobres e até dos governantes do país”. Em 2002, depois da oficialização da independência de Timor, o Presidente da República, Jorge Sampaio, condecorou-o com a Ordem da Liberdade.

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De Guimarães para Timor

Ao Observador, Isaías conta que o padre João Felgueiras é hoje “uma figura muito querida, muito amada pelos timorenses”. Aos 95 anos, João continua em Timor e “tem medo de regressar a Portugal, porque quer morrer em Timor. Já não diz ‘a vossa terra’. Agora diz ‘a nossa terra’. Timor é a terra dele”. A vida tranquila que tem hoje, a construir finalmente o edifício de uma escola que começou a funcionar em 1997, clandestinamente, debaixo de uma árvore, está marcada por perseguições intensas desde que Timor-Leste, então ainda sob administração portuguesa, foi invadido pela Indonésia. Só com a independência, em 2002, é que a vida de João Felgueiras e dos jesuítas portugueses em Timor voltou à normalidade da missão.

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"Durante a invasão, o padre João estava com seminaristas a montar uma missão jesuíta. Já não conseguiram voltar, porque Díli já tinha sido invadida"
Isaías Caldas, jesuíta timorense

João Felgueiras nasceu a 9 de junho de 1921, nas Caldas das Taipas, em Guimarães, e estudou desde os 12 anos no seminário. Aos 21, entrou na Companhia de Jesus e foi ordenado oito anos depois, com 29. Em Portugal passou por muitas escolas e colégios, mas foi com a ida para Timor, em 1971, para ocupar o cargo de vice-reitor do seminário da diocese de Díli, que a vida de João Felgueiras ganhou sentido. Durante os anos de ensino em Timor, “teve um papel muito importante na formação de muitos intelectuais timorenses atuais”, recorda Isaías Caldas, acrescentando com entusiasmo que o atual primeiro-ministro timorense, Rui Maria de Araújo, foi aluno de Felgueiras.

“Teve a possibilidade de sair, mas quis ficar com os timorenses”

7 de dezembro de 1975. João Felgueiras tinha saído de Díli com alguns seminaristas da diocese para uma peregrinação a Soibada, perto da capital. Estavam a montar uma missão e já não conseguiram regressar a Díli. Timor-Leste, um território português desde o início do século XVI, tinha acabado de ser invadido pela Indonésia, que ocupava a outra metade da ilha, e que há muito reivindicavam aquele território. “Antes da invasão, com o conflito entre partidos políticos timorenses, Díli já começava a ter algumas inseguranças políticas”, sublinha Isaías Caldas. “Muitos portugueses que se encontravam em Díli começaram a abandonar Timor e havia esta possibilidade também para o padre Felgueiras e para outros religiosos portugueses”, acrescenta o jesuíta, que repete que Felgueiras é “um modelo de vida”. “Muitos fizeram-no, mas o padre Felgueiras, o padre José Alves Martins e o irmão Daniel de Ornelas, três jesuítas portugueses, com mais alguns clérigos e religiosos, decidiram ficar em Timor”. Queriam “ficar com os timorenses”, diz Isaías, que acredita que “a vontade de Deus para estes três era ficar com o povo timorense, que começava a sua saga de luta pela independência”.

"[O padre Felgueiras] consolava os feridos, ouvia confissões dos que estavam a morrer e escondia os que estavam vivos nas igrejas e nas comunidades dos religiosos. Sofria com eles"
Isaías Caldas, jesuíta timorense

Durante os anos da ocupação indonésia, João Felgueiras “ficou em Timor e acompanhava o povo timorense nos seus sofrimentos”. As igrejas e as comunidades religiosas dos jesuítas foram refúgio para muitos timorenses perseguidos. “Muitos jovens, quando estavam a ser atacados e perseguidos, fugiam para as igrejas e comunidades dos religiosos para terem refúgio e segurança. Sempre que isso acontecia, o padre Felgueiras tentava o seu melhor para estar com estes jovens e para os consolar”, diz Isaías Caldas. “Foi uma presença que dava segurança e refúgio a este povo naqueles momentos de tanto sofrimento e de tanta perseguição”, mas sempre sob o olhar atento das autoridades indonésias. “Por ser um português, foi sempre vigiado pelas autoridades indonésias, onde quer que estivesse, na comunidade deles, na igreja e no seu convívio com os timorenses”. É que, como recorda Isaías, “o objetivo dos indonésios era fechar Timor”, pelo que “uma presença estrangeira era uma ameaça para a autoridade indonésia”. Especialmente uma presença com a capacidade de mobilização e o carinho do padre Felgueiras. “A cada semana, ele tinha de se apresentar às autoridades um relatório do que andava a fazer”, afirma o jovem jesuíta.

A história de João Felgueiras confunde-se com a história recente de Timor-Leste. No dia 12 de novembro de 1991, dia do massacre de Santa Cruz, em que foram assassinadas pelo menos 398 pessoas, sobretudo jovens, o sacerdote português perdeu muitos dos seus alunos do Externato de São José, “a única escola timorense que continuava a dar aulas de português desde a invasão indonésia”, que proibiu o ensino da língua portuguesa. Naquele dia, centenas de jovens tinham-se deslocado ao cemitério de Santa Cruz, em Díli, para prestar homenagem a Sebastião Gomes, um jovem timorense que havia sido morto uns dias antes durante confrontos entre independentistas e as autoridades indonésias. Durante o funeral, o exército indonésio disparou sobre a multidão que lá se encontrava. “Ao ouvir a comoção e os gritos dos jovens perseguidos, o padre Felgueiras foi ao cemitério para ver o que acontecia. Muitos jovens eram alunos dele”, conta Isaías Caldas. “Consolava os feridos, ouvia confissões dos que estavam a morrer e escondia os que estavam vivos nas igrejas e nas comunidades dos religiosos. Sofria com eles”. O dia 12 de novembro é agora feriado para os timorenses, o Dia Nacional da Juventude.

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“A presença dele incomodava os indonésios”

As autoridades indonésias tentaram expulsar João Felgueiras de Timor inúmeras vezes. “A presença dele incomodava os indonésios”, recorda Isaías, que detalha como por diversas vezes o sacerdote português foi retirado do território timorense. “Uma vez, contou ele, foi mandado para Java, na Indonésia, para aprender o indonésio. Obedeceu e foi”, lembra. O problema foi quando João tentou regressar para Timor. Barraram-no na fronteira, cancelaram-lhe documentos e ameaçaram-no. “Foi um grande sofrimento para o padre Felgueiras esta ideia de não voltar a estar com os timorenses”, sublinha o jovem jesuíta, que garante que aqueles “foram os momentos mais difíceis da vida dele”.

Outra vez, foi por motivos de saúde. “Como não tínhamos condições em Timor, ele teve de ir à Indonésia para uma consulta médica”, conta Isaías. Novamente, tudo foi feito pelos indonésios para impedir João de regressar. Acabou por conseguir voltar depois de um pedido ao bispo de Díli, que “arranjou uma solução” para o regresso. Mas mesmo em Timor, os seus passos eram controlados ao minuto. Isaías Caldas recorda como, “nas homilias dele, havia sempre pessoas das autoridades da Indonésia a vigiar, para saberem se o que ele dizia na missa era contra a Indonésia, só para encontrar razões para o expulsar de Timor”. Tudo por ser um estrangeiro e por ser um cristão. “Isso é motivo de perseguição, às vezes muito violenta. Faziam tudo para tirar de lá os padres”, afirma.

"Nas homilias dele, havia sempre pessoas das autoridades da Indonésia a vigiar, para saberem se o que ele dizia na missa era contra a Indonésia, só para encontrar razões para o expulsar de Timor"
Isaías Caldas, jesuíta timorense

Em 1999, o povo timorense foi às urnas decidir sobre a sua independência. Perto de 80% dos timorenses pediram o fim da ocupação indonésia, mas a paz não voltou de imediato à região. “Os indonésios não ficaram contentes com a decisão”, recorda Isaías Caldas. Por isso, “os indonésios e os timorenses integracionistas começaram a atacar os independentistas, queimaram casas e violaram mulheres”, obrigando muitos timorenses a fugir para as florestas, para as igrejas e para os colégios religosos. “O padre Felgueiras foi com muitos para Dare [zona florestal a sul da capital, Díli], e fez o que sempre tinha feito: rezava com eles, administrava-lhes os sacramentos e consolava-os”, conta Isaías. “Esteve sempre com os refugiados”, acrescenta.

“Tentou sempre manter a lusofonia em Timor-Leste”

Quando a Indonésia invadiu Timor, em 1975, a língua portuguesa foi proibida no país. Foi, aliás, isso que trouxe Isaías Caldas, de 31 anos, a Portugal, há dois anos. Isaías Abílio Caldas é o nome português, de batismo, mas nasceu Mau Leto, “que significa guerreiro”, explica. Entrou na Companhia de Jesus em 2004, e está em formação, devendo ser ordenado padre em breve. Mas, tal como a maioria dos jovens da sua geração, nasceu numa altura em que o português estava proibido em Timor. “O meu pai sabia português, e tentou ensinar-me”, recorda Isaías. A língua portuguesa só foi reintroduzida como oficial em 2002, depois da independência, “mas nós continuávamos com muita dificuldade, porque nunca aprendemos”. Durante a formação em Timor, Isaías dava aulas de formação cívica numa escola timorense, e tinha de o fazer também em português, uma das línguas oficiais do país. Foi isso que o trouxe para Portugal para estudar literatura na Universidade do Porto, cidade onde vive com jesuítas portugueses. “Falei com o meu superior e obtive permissão para vir para Portugal aprender português para um dia poder ajudar no colégio e no instituto superior de formação dos professores do secundário”, conta.

"De cabeça está muito lúcido, e não quer vir a Portugal nem para fazer tratamento"
Isaías Caldas, jesuíta timorense

Se a língua portuguesa resistiu em Timor durante a ocupação indonésia, muito deve ao padre João Felgueiras, professor e dinamizador do Externato de São José, a única escola onde houve aulas em português depois da invasão. Manteve-se aberta “desde a invasão indonésia e da imposição da cultura indonésia no ensino em Timor-Leste, até 1992, quando foi obrigada a fechar”, recorda Isaías Caldas. Com iniciativas como esta, “tentou sempre manter a lusofonia em Timor-Leste”. A educação sempre foi uma das principais prioridades de João Felgueiras. “Durante a ocupação, apesar de tudo, ele juntava dinheiro, com a ajuda dos benfeitores da Companhia de Jesus, para mandar muitos jovens para a Indonésia para tirarem cursos superiores nas universidades indonésias”, recorda Isaías. Hoje, aos 95 anos, “muito cansado mas ainda muito ativo”, está empenhado na construção da escola dos Amigos de Jesus, que será inaugurada no dia 28 deste mês. “A preocupação dele agora é a educação dos miúdos timorenses, que são o futuro”, diz Isaías Caldas.

“A perseguição aos timorenses ajudou à expansão do catolicismo em Timor”

Se a história filmada por Martin Scorsese e escrita por Shusako Endo em 1966 fala de um povo perseguido por ser cristão, a invasão em Timor não se pode classificar como uma perseguição religiosa. “Era uma perseguição aos timorenses que queriam ser independentes da Indonésia”, recorda Isaías. Em termos religiosos, a perseguição teve até um efeito inverso. “Houve alguma tentativa de converter os timorenses ao islamismo, mas, como sabiam que a Indonésia era maioritariamente muçulmana, houve muitos timorenses que se converteram ao catolicismo para se distinguirem dos indonésios”, conta o jesuíta, considerando que “a perseguição aos timorenses, de forma estranha, ajudou à expansão do catolicismo em Timor”.

Mas, mais de trezentos anos depois de Sebastião Rodrigues e Francisco Garupe terem partido para o Japão, onde enfrentaram a perseguição para se manterem do lado de um povo que enfrentava a tortura, João Felgueiras foi para Timor fazer o mesmo. E recusa regressar a Portugal, até por motivos de saúde. Quer morrer lá. “Até tem medo de vir a consultas a Portugal. De cabeça está muito lúcido, e não quer vir a Portugal nem para fazer tratamento”, diz Isaías. Está há 46 anos em Timor, celebrados precisamente esta semana, recorda o jovem jesuíta: “São 46 anos de acompanhamento deste povo no seu sofrimento e na sua luta pela liberdade”.

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