A lei do aborto está de volta ao Parlamento por iniciativa da esquerda, mas o CDS não quer ficar de fora do processo. E se durante a campanha eleitoral as promessas da Aliança Democrática (PSD e CDS) foram no sentido de não mexer na legislação, com a esquerda a abrir o dossiê os democratas-cristãos acabaram mesmo por avançar com uma proposta própria, sem fazer “articulação nenhuma” com o parceiro de coligação. Objetivo: marcar território e falar ao seu eleitorado de sempre — tentando mostrar que o CDS não foi engolido pelo partido vizinho (nem ofuscado pelo Chega).
Apesar de as alterações que o CDS propõe servirem para repescar as normas que PSD e CDS conseguiram aprovar juntos, quando formavam governo na reta final de Pedro Passos Coelho, desta vez o CDS avança sozinho — e, segundo o Público, com poucas hipóteses de vir a obter o apoio do partido parceiro. E tem liberdade para fazê-lo, frisa, em declarações ao Observador, o líder parlamentar democrata-cristão, Paulo Núncio. “O acordo de coligação exclui expressamente estas matérias”. “[Neste ponto], cada partido segue os seus princípios, a sua História e as suas posições. E nós repescamos as propostas apresentadas em 2015″.
Mesmo tratando-se de um regresso a propostas do tempo da coligação Portugal à Frente (PàF), “não houve articulação nenhuma com o PSD”, garante o deputado. “O CDS foi o único partido que esteve corajosamente ao lado da vida e contra a liberalização do aborto nos dois referendos. Está outra vez aqui, sempre do lado da vida. Os outros partidos farão aquilo que entenderem”. Até porque, no passado, “sempre que a questão foi suscitada na Assembleia da República, o CDS tomou sempre partido e participou ativamente na discussão”.
A propósito da lembrança dos referendos, Paulo Núncio — que durante a campanha já tinha puxado pelo tema, provocando das maiores polémicas pré-eleitoriais e obrigando Luís Montenegro a pôr um ponto final no assunto — vai até mais longe: se a atual lei resultou de um referendo, “qualquer alteração de fundo” — incluindo as alterações no prazo em que se pode fazer uma interrupção voluntária da gravidez, previstas nos projetos da esquerda, “deveria ser precedida de um referendo”, defende o antigo secretário de Estado. “É erradíssimo que isso não aconteça.”
Segundo o Público, a inclinação do PSD será não só de votar contra todos os projetos de alteração — da esquerda à direita, incluindo o do parceiro de coligação — como de possivelmente impor disciplina de voto. No CDS, assegura-se que não há problema: o que importa é o partido ser fiel aos seus princípios e falar ao seu eleitorado, mesmo integrando a AD. “O CDS foi desde a sua fundação um partido pró-vida, faz parte de quem somos”.
CDS tenta ganhar espaço. “Como num casamento, há um jogo de cedências”
Na prática, o CDS decide assim avançar sem o parceiro de coligação, numa tentativa de ganhar espaço e reafirmar a sua identidade — aproveitando uma das poucas oportunidades que tem tido para deslocar do PSD, desde que voltou à Assembleia da República pela mão da nova versão da AD.
No CDS, essa dificuldade é reconhecida: por um lado, o partido está obviamente aliviado e satisfeito por, depois de ter desaparecido do Parlamento (e de muitos terem vaticinado o seu fim), ter conseguido voltar a eleger dois deputados e a sentar-se no Conselho de Ministros. Por outro, está consciente de que precisa a todo o custo de evitar ser visto como uma muleta do PSD, ou como um partido que só consegue eleger se for a votos em conjunto.
“Temos mais membros do Governo do que deputados… Não é fácil, mas temos feito pela vida”, reconhece uma fonte democrata-cristã, resumindo assim a relação: “Uma coligação, como uma relação ou um casamento, é um jogo de cedências. Há matérias em que, se o CDS estivesse sozinho, teria outra política”. Neste caso, o partido não se deixou travar pelo facto de fazer parte da AD e decidiu avançar na mesma, priorizando a sua marcação de terreno no eleitorado conservador.
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Não é o único tema em que o CDS se tem distanciado do PSD, sendo que muitos deles têm precisamente a ver com esse apelo ao eleitorado conservador — e muitos têm a ver com as chamadas causas fraturantes (mais recentemente rebatizadas como guerras culturais) que o diferenciam. Aconteceu quando o CDS se irritou com a defesa que a ministra da Juventude, Margarida Balseiro Lopes, defendeu a expressão “pessoas que menstruam”, usada pela Direção-Geral da Saúde.
E o problema repetiu-se quando a ministra da Saúde referiu que a regulamentação da lei que despenaliza a eutanásia — aprovada pela esquerda e IL no Parlamento — estaria em “fase de elaboração”, o que indignou os democratas-cristãos, uma vez que o Governo tinha prometido “esperar pela pronúncia do Tribunal Constitucional” sobre o assunto para ter “segurança jurídica”. O Governo viria corrigir a ministra, assegurando que não havia nenhum processo em andamento. O CDS deixava a sua posição de discordância clara. E volta a fazê-lo agora.
Um novo cenário em que se antecipa terreno para discordância é o das presidenciais, em que os parceiros não estão — pelo menos para já — na mesma página. Se no PSD tudo parece alinhado para um avanço do ex-líder Luís Marques Mendes, o CDS irritou-se com a definição do perfil do futuro candidato do PSD — tem de ser militante social-democrata, definiu a direção de Montenegro — e Nuno Melo agitou as águas ao fazer uma aparição noturna ao lado do protocandidato Henrique Gouveia e Melo. Ainda assim, o CDS continua a suspirar por Paulo Portas. E nos corredores do partido os democratas-cristãos mostram-se ainda pouco convencidos com um possível apoio a Marques Mendes, ainda que não falte quem acredite que, na atual posição de parceiro de coligação, pode não restar ao CDS outra opção que não a de apoiar o ex-líder social democrata.
Declarações de Núncio agitaram campanha — e levaram Montenegro a fazer promessa
Mas esta questão também vem ressuscitar um dos maiores obstáculos que a coligação enfrentou durante a campanha eleitoral, em março. Tudo começou precisamente com uma declaração de Núncio, que num debate promovido pela Federação Portuguesa pela Vida disparou as palavras que viriam agitar as caravanas partidárias: “Depois de a liberalização ter sido aprovada por referendo, embora não vinculativo, mas com significado político, é muito difícil reverter a lei apenas no Parlamento. Acho que a única forma revertermos a liberalização da lei do aborto passa por um novo referendo”.
Ora a frase lançada em plena campanha mereceu contextualizações ou mesmo correções dentro do partido e da coligação. “Não é tema para a legislatura. Não invalida aquilo que o CDS sempre pensou”, justificou o líder do partido, Nuno Melo, assim que foi questionado pelos jornalistas sobre o assunto. Já Luís Montenegro acabaria por reconhecer que as palavras de Núncio tinham criado um “pequeno momento polémico” que não ajudou a campanha da AD.
“Era melhor que não houvesse nenhum ruído na transmissão da mensagem? Claro que sim”, confessou o social-democrata aos jornalistas, garantindo ainda que se a coligação vencesse as eleições não faria qualquer alteração na lei da Interrupção Voluntária da Gravidez. Na altura, o assunto tornou-se um dos temas de campanha e serviu de arma de arremesso para os partidos de esquerda: o PS falou num “regresso ao passado”, ao “tempo das prisões e da criminalização”, com Pedro Nuno Santos a declarar que a frase de Paulo Núncio responsabilizava o parceiro PSD.
O PSD quer agora provar que falava a sério quando prometeu, na campanha eleitoral, que tudo não passaria de uma série de fantasmas e papões promovidos pela esquerda e que não teria intenção de mexer na lei. Mas o CDS não pensa exatamente da mesma forma. Pelo menos, Núncio justifica que a primeira iniciativa não foi do seu partido, mas da esquerda, e que “não altera nada” do que está previsto no Código Penal — ou seja, não prevê uma reversão deste direito ou do prazo em que pode ser feito: “Apenas repetimos as propostas que foram feitas em 2015”.
Para o CDS, está assim justificada a iniciativa, apesar de durante a campanha a coligação ter prometido que não faria alterações à lei: não são mudanças de fundo. Mas para a esquerda são estas as propostas que traziam “manhas” e dificultariam o acesso ao aborto. Da parte do CDS, o que está em causa é “densificar o processo de consentimento informado das grávidas”, diz Núncio.
Na proposta democrata-cristã, isto concretiza-se prevendo o “acompanhamento do foro psicológico” e “por técnico de serviço social” durante o período de reflexão antes de concretizar a IVG — atualmente está prevista uma “disponibilidade de acompanhamento”. Questionado sobre se esta mudança implica uma obrigatoriedade para a grávida, Núncio diz que o “direito a esse apoio” ficaria reforçado mas que os detalhes seriam estabelecidos na regulamentação que o Governo teria, depois, de assegurar.
Além disso, o CDS propõe que os médicos que sejam objetores de consciência voltem a poder participar na consulta obrigatória “ou acompanhamento” de grávidas em período de reflexão, argumentando que a atual exclusão pode violar as normas sobre igualdade previstas na Constituição. O partido acrescenta ainda que a declaração de objeção de consciência deve ter “caráter reservado e é de natureza pessoal” e em nenhum caso pode ser objeto de registo, de publicação ou de “fundamento para qualquer decisão administrativa”, prevenindo que se descriminem de algum forma estes profissionais.
Propostas que vão em contramão com aquelas que a esquerda apresentou, numa tentativa de voltar a mexer na lei: o PS e o PCP querem alargar o prazo para ser possível fazer uma IVG das atuais dez para doze semanas; Bloco de Esquerda e Livre querem ir até às 14 semanas. Já o Chega quer que a grávida “possa fazer” uma ecografia para ver e ouvir o coração do feto “antes de iniciar o procedimento de interrupção da gravidez”.
Partidos afastam proposta “ruidosa” de Núncio de realizar novo referendo sobre o aborto