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Nazira Goreya (ao centro) com vários líderes cristãos do Médio Oriente, incluindo o patriarca sírio

Nazira Goreya (ao centro) com vários líderes cristãos do Médio Oriente, incluindo o patriarca sírio

Nazira Goreya: "O Estado Islâmico hoje veste outras roupas e Erdoğan abre-lhe as portas da Síria"

Nazira Goreya é síria, cristã e defensora feroz da região autónoma do nordeste do país, controlada pelos curdos, agora sob ataque. "Enfrentamos as mesmas atrocidades que já enfrentámos com o Daesh."

Numa altura em que a retirada das tropas americanas da fronteira entre a Síria e a Turquia abriu a porta à ofensiva turca sobre os curdos no nordeste do país, as autoridades políticas da região — a Administração Autónoma do Norte e Leste da Síria, ou Rojava para os curdos — intensificaram o lóbi junto do Ocidente para pedirem proteção e ajuda na identificação de uma solução política para um conflito que completa agora oito anos. Nazira Goreya, co-presidente do conselho executivo de Jazira, uma das regiões que compõem a Administração Autónoma, esteve na semana passada em Portugal para se reunir com PSD, CDS e Bloco de Esquerda, no âmbito de uma tour pelos parlamentos nacionais da UE e pelo Parlamento Europeu.

Numa entrevista ao Observador, depois das reuniões com os partidos na Assembleia da República, Nazira Goreya, assegurou que os políticos europeus estão solidários com a região. “Compreendem o que estamos a fazer e percebem que estamos a tentar aplicar no terreno um modelo de democracia para a região”, afirma. Mas o objetivo da viagem foi mais concreto: assegurar que Portugal e os restantes países da UE apoiam o fecho do espaço aéreo na zona dos confrontos, a inclusão das autoridades do nordeste sírio nas negociações de paz e até o envio de militares para garantirem a segurança em ambos os lados da fronteira. Sem revelar o que ouviu da boca dos deputados portugueses, Nazira Goreyay assegurou apenas: “Acreditamos que temos amigos entre vocês”.

Natural de Qamshili, uma cidade na fronteira entre a Síria e a Turquia que tem sido um dos palcos do confronto e onde se registaram vítimas mortais logo no primeiro dia da ofensiva turca, Nazira Goreya (que é uma cristã assíria, da Igreja Siríaca, e que aproveita precisamente a sua etnia para sublinhar uma e outra vez que aquela região não é habitada apenas por curdos) classifica o ataque como “uma opressão e uma invasão” e acusa os EUA de terem dado “luz verde” a[o Presidente turco, Recep Tayyip] Erdoğan para atacar a Síria com a retirada militar. Para Nazira, que é também dirigente da União das Mulheres Siríacas, o Presidente turco criou “a ideia de que irá ou deixar os refugiados sírios entraram todos na Europa ou enviá-los de volta para a Síria” — e “essa ameaça contra a Europa tem sido eficaz”, pelo que “ninguém disse o suficiente para impedir Erdoğan de fazer isto”.

Além disso, a política síria afirma ainda que além de abrir as portas a Erdoğan, a retirada dos EUA também “abriu as portas a grupos jihadistas”, com “a mesma mentalidade” — e em grande medida as mesmas pessoas — que o Estado Islâmico: “Agora enfrentamos as mesmas atrocidades que já tínhamos enfrentado com o Estado Islâmico. Decapitações, espancamentos, atrocidades de todo o tipo.”

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Nazira Goreya é dirigente partidária, responsável autárquica, ativista pelos direitos das mulheres e dos cristãos siríacos

O que a traz a Portugal? E o que espera levar daqui?
Estou a fazer uma tour por Portugal e por outros países europeus para me encontrar com vários parlamentos e tentar-lhe contar-lhes a nossa história e o que se está a passar no terreno. Queremos tentar influenciar as pessoas e dar-lhes mais conhecimento sobre o que se passa na Síria, neste momento. Encontrámo-nos com membros do Parlamento Europeu e escolhemos também Portugal por ter presença nesse Parlamento e por ser um país com uma grande História. Só assim vocês podem saber o que se passa para se colocarem do nosso lado no combate que enfrentamos, atualmente, no terreno.

Teve algum feedback dos deputados com que se encontrou? Quais foram os partidos?
Encontrámo-nos com diferentes partidos [PSD, CDS e BE]. O conhecimento deles sobre o que se está a passar no terreno varia um pouco, mas alguns conheciam muito bem a situação e percebiam a fundo o que se está a passar lá. O importante é que eles têm empatia connosco, compreendem o que estamos a fazer e percebem que estamos a tentar aplicar no terreno um modelo de democracia para a região. E que aquilo que a Turquia está a fazer é uma opressão e uma invasão. Portanto, eles demonstraram solidariedade com a causa e perceberam o que estamos a fazer. A sensação com que também ficámos é que irão fazer o melhor que puderem para informar o resto do Parlamento e talvez até debater o assunto, para que haja uma compreensão mais profunda do que se está a passar na Síria. E também tentar fazer pressão para que haja passos mais concretos para nos apoiarem em relação àquilo que a Turquia está a fazer neste momento.

"A sensação com que também ficámos é que [os partidos portugueses] irão fazer o melhor que puderem para informar o resto do Parlamento e talvez até debater o assunto, para que haja uma compreensão mais profunda do que se está a passar na Síria"

A Nazira é de Qamshili, uma cidade muito próxima da fronteira com a Turquia que, portanto, deve ter sido das mais atacadas no último mês. O que é que nos pode contar mais em detalhe do que se passa lá e como é que a retirada das tropas norte-americanas influenciou a situação?
Desde que derrotámos o Estado Islâmico juntamente com a coligação internacional, a nossa expectativa era que tudo se encaminhasse para uma solução política e pacífica relativamente à crise na Síria, da qual nós fizéssemos parte. Sobretudo tendo em conta que nós aguentámos grande parte desse combate, já que contribuímos com quase 11 mil mártires da Forças Democráticas Sírias e do seu ramo político, o Conselho Democrático Sírio, que inclui cristãos, curdos e árabes. Esperávamos por isso ter prioridade na discussão sobre uma solução pacífica. Hoje em dia temos a nosso cargo, nos nossos campos, famílias de combatentes do Estado Islâmico e os próprios combatentes do Estado Islâmico, cerca de dez mil. A saída das tropas americanas criou uma situação no terreno em que a Turquia teve luz verde para nos atacar e criar a ideia de que irá ou deixar os refugiados sírios entrarem todos na Europa ou enviá-los de volta para a Síria. Essa ameaça contra a Europa tem sido eficaz e por isso ninguém disse o suficiente para impedir Erdoğan de fazer isto. Para além disso, ele diz que ataca a região por causa dos curdos, mas lá não existem só curdos, somos nós todos. A região sob a nossa supervisão é uma das mais seguras e pessoas de várias comunidades-irmãs mudaram-se para lá por ser uma área segura. Com a saída dos EUA da região, o ataque afetou-nos a todos, a curdos, árabes e siríacos-assírios. Todos enfrentamos uma situação devastadora e instável neste momento. Esperávamos mais apoio político, sobretudo devido ao contrato social que temos entre as nossas várias comunidades, em que grupos étnicos e religiões diferentes coexistem. Chamamos a isto uma chapada. Ao abrir as portas a Erdoğan, ele abriu as portas a grupos jihadistas. E agora enfrentamos as mesmas atrocidades que já tínhamos enfrentado com o Estado Islâmico. Decapitações, espancamentos, atrocidades de todo o tipo. Toda a gente viu o que aconteceu à líder curda do Partido Síria Futura [Hevrin Khalaf, que foi morta a tiro à beira de uma estrada]. Continua a ser o Estado Islâmico, é a mesma mentalidade e muitas vezes são até as mesmas pessoas. O Estado Islâmico hoje veste outras roupas e usa outros nomes e Erdoğan abre as portas da Síria a estas pessoas. Ele também já usou armas químicas, algo que é proibido internacionalmente — e temos provas disso. Centenas de famílias tiveram de deixar as suas casas e as suas aldeias, são agora deslocados. E aquilo que ele está a fazer é algo óbvio: está a fazer mudanças de demografia na região, trazendo o seu povo e retirando dali os povos indígenas da área como os cristãos siríacos, os caldeus, os árabes, os curdos que ali vivem. Agora são árabes a trazer apenas árabes algo que, de acordo com Erdoğan, são as pessoas certas. É muito importante que os vossos leitores compreendam uma coisa: Erdoğan está a usar os curdos. Ele diz que os ataca por causa dos grupos terroristas curdos. Mas é óbvio que o problema não são os curdos, porque as Forças Democráticas Síria têm pessoas de várias etnias e ele ataca-nos a todos. Ele diz que não tem problemas com os cristãos, mas ataca-nos. Infelizmente, aquilo que ele está a fazer na chamada zona-tampão afeta sobretudo a nossa comunidade de cristãos-assírios. Como minoria, estamos cada vez mais em minoria. O terreno que ele está a tomar, os primeiros cinco a dez quilómetros por onde ele entrou, é historicamente o lugar que sempre habitámos. E dali a 25/30 quilómetros, até à região do rio Khabur, foi onde a igreja assíria se estabeleceu em meados dos anos 30. São 33 aldeias ao todo onde os assírios vivem. Foram afetadas pelo Estado Islâmico, depois libertámo-las e as pessoas regressaram e agora estão a ser atacadas outra vez. Esta invasão trouxe consigo muitas atrocidades, crimes de guerra, mortes, decapitações. Aquilo que vemos é uma reação mais teórica, através de responsáveis oficiais e de discursos, mas em termos práticos não vemos decisões a serem tomadas, não vemos passos concretos contra Erdoğan.

A retirada das tropas americanas da fronteira entre a Síria e a Turquia abriu a porta à ofensiva turca sobre os curdos no nordeste do país

TURKISH PRESIDENTIAL PRESS OFFICE HANDOUT/EPA

Neste momento, a Turquia está a avançar pelo norte da Síria. Ao mesmo tempo, os líderes curdos chegaram a um acordo com o regime de Bashar al-Assad e os russos para ter ajuda a combater os turcos. Qual pensa que será a situação da sua comunidade a longo-prazo? É possível manter uma região autónoma, com povos de etnias diferentes a viverem lado a lado, quando se tem a Turquia de um lado e Assad do outro?
Desde a retirada das tropas americanas que ficámos muito vulneráveis e era preciso encontrar uma solução para acabar com o massacre. Através da Rússia, abriu-se a possibilidade de chegar a algum tipo de acordo com o regime. Com alguns dos pontos concordamos totalmente. Iremos defender a nossa administração democrática independente o mais que pudermos, até ao fim. Mas sabemos que alguns pontos do acordo não jogam a nossa favor. É, antes de tudo o resto, um acordo militar, caso contrário seria um massacre e nós temos de pensar nas pessoas que vivem na nossa região.

Foi uma decisão pragmática, portanto.
Sim. Foi uma decisão militar, não foi um acordo político. Deixámos as forças do regime entrarem para protegerem as suas próprias fronteiras, algo que deviam ter feito desde o início. Sempre dissemos e continuamos a dizer o mesmo: a solução para a crise síria é uma solução política, uma solução em que as várias partes se sentam à mesa e encontram soluções. Nós somos uma dessas partes, o regime é outra e a oposição é a terceira parte. Tem de ser de sírio para sírio, não podem ser outros a envolverem-se, porque no final de contas nós é que vamos viver uns com os outros.

Fala de sentar à mesa. Esteve presente nas Conversações de Genebra de 2016… Pode recordar um pouco o papel que teve nessas conversações?
Nós não fomos convidados para nenhuma reunião em Genebra.

Mas isso consta do seu currículo.
Ah, isso não foram exatamente as Conversações de Genebra, no sentido de serem reuniões para se encontrar uma solução política. Fui convidada como líder do Partido da União das Mulheres, à altura. Staffan de Mistura [ex-enviado especial da ONU para a questão síria] convidou-nos a nós e a uma série de outros grupos para perceber quais eram as nossas opiniões sobre uma solução política para a crise da Síria. Mas não foram negociações no sentido formal, daí eu não ter percebido ao início do que falavam. Também fiz parte de um grupo chamado Mulheres Sírias para uma Solução Pacífica, nas Nações Unidas, que também teve reuniões em Genebra, mas não fez parte das negociações formais. Infelizmente, até agora, nenhum partido político, organização ou responsável da Região Autónoma do Nordeste da Síria foi convidado a sentar-se em nenhuma reunião do processo de Genebra. Mesmo as negociações que decorrem agora, as chamadas 50-50-50 [são 150 participantes, divididos entre regime sírio, oposição e sociedade civil], nenhum de nós está envolvido nelas.

Tem fé nestas conversações que decorrem atualmente?
Quero dizer que sim, mas infelizmente não posso dizer que tenha. Porque nós derrotámos o Estado Islâmico, fomos uma grande força estabilizadora da situação na Síria, ocupamos cerca de 35% do terreno do país, temos cerca de 5 milhões de pessoas a viver na nossa região e mesmo assim não somos convidados. Falta a nossa presença e assim não haverá uma solução. Sempre defendemos uma Síria unida desde o princípio e continuamos a defender. Mas temos dificuldade em acreditar que possamos vir a apoiar qualquer solução que saia dali porque, sem estarmos lá, não conseguimos ver que possa existir uma solução política que inclua toda a gente.

E vocês pediram às Nações Unidas para fazerem partes dessas reuniões?
Sempre que a ONU convocou conversações, nós pedimos para fazer parte. Em todas as reuniões diplomáticas que tivemos, demos sempre a sugestão a diferentes partidos, parlamentos, etc. Nós somos a terceira via, nós precisamos de estar presentes para mostrar que há uma alternativa. Acreditamos seriamente, de forma objetiva, que temos a única solução para uma Síria futura onde vários povos possam coexistir, onde toda a gente tenha direitos democráticos. A governação local e a descentralização são a solução para a situação complexa que existe hoje na Síria. Infelizmente as pessoas não compreendem que isto dura há quase oito anos. Desde que o regime saiu da região, temos gerido a vida diária de cinco milhões de pessoas. Demonstrámos que o nosso modelo funciona. E não é apenas uma questão curda, é um modelo onde vários grupos convivem lado a lado e apoiam-se mutuamente. Isto existe e funciona.

"Acreditamos seriamente, de forma objetiva, que temos a única solução para uma Síria futura onde vários povos possam coexistir, onde toda a gente tenha direitos democráticos"

E porque é que acha que não têm sido ouvidos? Porque quando é um assunto que envolve os curdos isso afeta outros países e a situação torna-se mais complicada?
Nós compreendemos que a questão curda não é exclusiva da Síria, é algo que envolve praticamente todo o Médio Oriente. E é claro que outros países seriam afetados, mas na Síria não é uma questão de querer implementar um Estado [gerido por curdos], eles demonstraram que na prática ele já existe. É errado focar a questão apenas no problema curdo, porque ali vivem sírios no geral, de várias etnias da região. Tentar resolver a questão curda dentro da Síria parece-me uma forma errada de olhar para a questão, porque o problema dos curdos arrasta-se há décadas. Não querer resolver a situação de sírio para sírio, dentro da Síria, por causa da questão curda — afetando assim todas as outras etnias por causa do problema curdo — está errado.

Sublinha muito que esta questão não é apenas sobre os curdos. No Ocidente, quando se fala da região autónoma do nordeste da Síria, essa é muitas vezes a ideia que se tem. E por exemplo, em relação às mulheres — e a Nazira trabalha em várias organizações de direitos das mulheres —, temos sempre esta ideia das mulheres-soldado e de mulheres com direitos semelhantes aos dos homens. Esta é a realidade da maioria das mulheres da região? Há nuances que variam de comunidade para comunidade?
Eu sou siríaca. Portanto, [etnicamente] assíria e não curda. As mulheres curdas têm estado na linha da frente, mas na nossa região todas as mulheres — siríacas, árabes e curdas — tiveram a oportunidade de serem visíveis e de tomarem posições. Portanto sim, não são apenas as curdas. No meu partido [Partido da União Siríaca] e nos outros partidos da região, nós acreditamos mesmo que o papel da mulher é muito importante para que a sociedade seja democrática. Portanto, em termos legais, tendo em conta o contrato social e a nossa Constituição, a Administração Autónoma do Norte e Leste da Síria baseia-se muito nos direitos das mulheres. À mulher é dado o poder de reclamar os seus direitos e ocupar lugares em todas as instituições. A presença das mulheres e a posição das mulheres nesta revolução na nossa parte do nordeste sírio, tem sido até chamada a revolução das mulheres. Porque as mulheres têm estado sempre no centro. Temos as guerreiras curdas, siríacas… Temos uma unidade de mulheres militares siríacas também. As mulheres têm sido uma figura central nesta revolução e no desenvolvimento desta região. As mulheres têm sido capazes de ocupar lugares de topo no geral. Na política, no exército, na sociedade, na cultura, e provavelmente já viram isso. Muitas das pessoas responsáveis pelos assuntos externos são mulheres. As guerreiras que lutaram contra o Estado Islâmico — as YPJ, Unidades de Proteção das Mulheres, [dentro das YPG, as forças gerais] curdas; e também o outro grupo, as mulheres guerreiras cristãs — provaram que podem combater a mentalidade do Estado Islâmico, provaram também que os podem combater fisicamente, e fizeram-no. A mulher tem tido uma posição muito central na sociedade. É muito importante enfatizar a revolução das mulheres, a revolta das mulheres, no Médio Oriente, porque genericamente a mulher é muito oprimida. Não lhe é permitido ter um lugar na sociedade da mesma forma. O que nós fizemos, enquanto mulheres lá, foi aproveitar esta oportunidade de provar que somos iguais aos homens e que podemos ter responsabilidades no terreno. O Estado Islâmico trouxe uma nova mentalidade outra vez à superfície — mulheres escravas sexuais da Planície de Nínive, de Sinjar. Mulheres yazidis, assírias, árabes, colocadas no mercado como objetos, presas —, andando vários séculos para trás na história. Provámos que podemos combater esta mentalidade, e fizemo-lo tanto mentalmente como fisicamente. Por isso, a revolta das mulheres é muito importante para região.

Foi uma dupla vitória, tanto mentalmente como no terreno. Acha que pode ser exportada para outras partes do Médio Oriente?
Parece que a comunidade internacional só quer falar sobre isso, e não apoiá-lo. Provámos o nosso valor e acredito verdadeiramente que isto pode ser exportado para o resto do Médio Oriente. Mas, no geral, como é que conseguimos apoio? Não conseguimos. As pessoas falam disto, de que as mulheres no Médio Oriente, na Síria, fizeram tanto. Mas, na prática, Trump saiu da região, o Estado Islâmico teve a oportunidade de voltar a entrar. Se nos apoiarem verdadeiramente, a nós e a este conceito que temos no terreno, a auto-administração democrática que é baseada nos direitos das mulheres, claro que acredito. Mas precisamos do apoio prático. Não apenas na teoria, não apenas do aplauso estrangeiro. Não é suficiente.

"Precisamos do apoio prático. Não apenas na teoria, não apenas do aplauso estrangeiro."

Falou da situação das mulheres no Médio Oriente, que é baseada na forma como o Islão olha para o papel da mulher. O Cristianismo, embora tenha nascido no Médio Oriente, está a tornar-se numa minoria, penso que apenas 4 ou 5% dos sírios. A presença de igrejas cristãs, quer sejam ortodoxas ou católicas, dos caldeus aos siríacos, é importante para promover os direitos das mulheres na Síria?
A Igreja tornou-se numa instituição, em que dentro das paredes da igreja praticamos a religião, mas fora das paredes, na sociedade, a Igreja é muito fraca para proteger e promover os direitos das mulheres. Somos muito fracos, enquanto em Igreja. Fomos institucionalizados no sistema islâmico do Médio Oriente. A nossa posição é muito insignificante para as igrejas cristãs terem um impacto na sociedade muçulmana, para reforçar o papel das mulheres. Porque a Igreja, por si própria, é muito fraca. No Cristianismo, a mulher tem mais direitos do que no Islão. Isso é um facto. Mas, obviamente, as igrejas cristãs hoje estão no Médio Oriente, estão num conceito muçulmano, são igualmente oprimidas. Por isso, não podem promover os direitos das mulheres e torná-las mais fortes, porque fazem parte do sistema que oprime.

Como vê a possibilidade de sobrevivência do Cristianismo na Síria — e no Médio Oriente, que é um local bíblico? Há alguns anos, os relatórios internacionais diziam que em cinco anos o Cristianismo podia desaparecer completamente do Médio Oriente.
Todos sabemos que o Cristianismo floresceu a partir do Médio Oriente, estabeleceu-se lá e partir dali saíram missionários para o resto do mundo. Coexistimos com o Islão e tem sido funcional. Mas a mentalidade hoje, que sempre existiu de certas maneiras, é a do jihadismo, do radicalismo islâmico, que olha os cristãos como infiéis. Sendo um infiel, de acordo com o Corão, pode ficar-lhe com as propriedades, pode ficar-lhe com a mulher, pode-lhe tirar tudo. Obviamente, o Cristianismo é oprimido, de acordo com a mentalidade jihadista que agora foi novamente trazida pelo Estado Islâmico. Qualquer tipo de Islão em termos radicais não reconhece o Cristianismo, olha para os cristãos como infiéis. Tem de haver mudança, ou de outra forma tenho de admitir que vai ser impossível coexistir. Esta forma radical do Islão com que o Estado Islâmico veio e que apresentou ao mundo e ao Médio Oriente, com o genocídio dos yazidis e dos cristãos, a escravidão das mulheres, a opressão, e também com a não aceitação de outras formas de crença no Islão, com muita pressão contra as outras denominações do Islão… Tem de haver mudanças. Se não houver, se o radicalismo continuar, o genocídio contra os cristãos no Iraque e na Síria vai ser o último golpe.

Vê algum exemplo de Islão moderado em algum lugar no mundo que possa ser um modelo de coexistência com os cristãos no Médio Oriente?
Claro que sim, nós temos um modelo que existe: é a Administração Autónoma do Norte e Leste da Síria, um sistema secular em que a religião e o Estado estão separados. Isto pode acontecer em todo o Médio Oriente, mas para isso é preciso uma mudança mental. Com base na democracia e nos valores democráticos, as religiões podem coexistir, e é isso que acontece muito claramente no nordeste da Síria. Novamente, a base do nosso contrato social entre as religiões e os grupos étnicos é baseada na igualdade entre religiões, na liberdade religiosa. Acredito que sim. E não precisamos de ir para fora do Médio Oriente para ver isto a funciona. Já funciona na Síria, na região que nós controlamos. Mas precisamos de ter o apoio para exportar isto para o resto do Médio Oriente.

Uma coisa que vemos no Médio Oriente é que lá existem várias confissões cristãs, tanto ortodoxas como católicas, mas trabalham todos juntos — e penso nos projetos de reconstrução das comunidades cristãs que estiveram sob ocupação do Estado Islâmico. Este diálogo ecuménico é mais difícil na Europa. Que lição é que a Europa, tradicionalmente cristã, pode aprender convosco no que diz respeito ao diálogo ecuménico?
Infelizmente, Cristo foi um, mas a sua religião dividiu-se de várias formas. Cada vez que se divide alguma coisa, perde-se poder. Dividimo-nos, e já não temos o poder sólido enquanto Igreja que tivemos em tempos. Claro que não concordamos em tudo, tal como os europeus, e isso não é estranho porque temos pensamentos diferentes enquanto cristãos no Médio Oriente exatamente da mesma maneira que têm na Europa. Mas, estando numa situação de guerra, oprimidos, vemo-nos forçados a unir-nos e a tentar encontrar denominadores comuns para coexistir e cooperar. Por outro lado, vocês têm paz na Europa, têm lutado por isso há 400 ou 500 anos, desde que estabeleceram a democracia e a secularização da sociedade. Chegaram a um melhor nível de aceitação do que nós, de algumas formas. Cristo andou naquela terra e disse-nos “Vós sois o sal da terra”. Nós, enquanto cristãos, temos de nos unir. Não apenas no Médio Oriente, para sermos um corpo mais forte juntos, mas também com o vosso apoio enquanto cristãos aqui na Europa. É importante defender o Cristianismo e tem estar vivo no lugar onde surgiu. Apareceu no Médio Oriente. Devia ser apoiado pela Europa também. Nós, enquanto comunidade cristã, temos de ultrapassar as diferenças entre os cristãos, e tornar-nos numa Igreja unida nesse sentido.

Falava de como o nordeste sírio é um bom exemplo de coexistência entre religiões. Acredita que um verdadeiro diálogo inter-religioso entre cristãos e muçulmanos alguma vez vai ser possível no Médio Oriente?
Acredito verdadeiramente. Mas tudo está relacionado com uma verdadeira compreensão sobre o que isso significa. Tem de ser respeito mútuo. Toda a gente tem direito à sua crença, à sua fé, à sua religião. Toda a gente precisa de respeitar os outros. Tem de ser um sistema secular, tem de ser um Estado em que a base da Constituição seja a liberdade religiosa. Nesse sentido, podemos aproximar-nos uns dos outros, entender-nos uns aos outros, através do diálogo inter-religioso. Acredito que, quando estiver na lei que sou livre de ter e praticar a minha religião da mesma forma que os outros, então seremos capazes de falar uns com os outros e chegar a um entendimento.

"Acredito que, quando estiver na lei que sou livre de ter e praticar a minha religião da mesma forma que os outros, então seremos capazes de falar uns com os outros e chegar a um entendimento"

Vê esse caminho a ser feito?
Gostava de recordar aos vossos leitores o que se passa agora no terreno. São confrontos duros entre os grupos jihadistas e as nossas forças armadas, as forças militares siríacas na região de Khabur. Desde a semana passada, o Conselho Militar Siríaco publicou um comunicado e declarou que vão defender esta região. É uma força militar cristã que tem homens e mulheres, que vai defender a região de Khabur. Acreditamos que Portugal e a comunidade internacional nos podem ajudar a acabar com esta guerra. Não há desculpas. São só cristãos lá, não há outras forças militares no terreno. Ontem tivemos a notícia de um militar capturado, que é cristão, e temos seis membros da nossa força militar cuja situação atual não sabemos, se estão presos, mortos ou fugidos. Precisamos do vosso apoio, queremos defender a nossa região, a nossa herança, as nossas igrejas, o Cristianismo na região de Khabur e na Síria, mas acreditamos também que sem a vossa ajuda e sem a ajuda da comunidade internacional não o podemos fazer.

O que é que desejavam que Portugal e a comunidade internacional fizessem especificamente? Enviar tropas para ajudar na defesa?
Ouvimos a sugestão da Alemanha de criar uma zona interdita a voos naquela região e esperamos que Portugal e o resto da comunidade internacional apoiem isso, porque nos daria uma oportunidade de combater no terreno e não ter em conta os aviões de guerra da Turquia. A zona segura de que a Turquia anda a falar não vai ser uma zona segura. Isso é muito claro. O que pode ser uma zona segura é se a comunidade internacional enviar militares para a região, para patrulhar a fronteira, de forma a que toda a gente, incluindo Erdoğan, se possa sentir segura, e nós também. Também acreditamos que Portugal pode contribuir para uma solução política, por exemplo nas Conversações de Genebra, que deviam estar a liderar o processo e a decidir a solução política para a Síria. Deve haver uma solução política e nós devemos — os assírios, os siríacos, mas também os curdos e os árabes que vivem na Administração Autónoma do Norte e Leste da Síria — estar presentes. Também procuramos o vosso apoio para o modelo que temos, para que seja uma primeira semente para a Síria ser democratizada tal como a Europa. Que apoiem o que estamos a fazer lá e que isso possa ser um primeiro passo para um Médio Oriente democratizado.

Depois de reunir com responsáveis políticos em toda a Europa, que garantias leva para casa da comunidade internacional e, especificamente, de Portugal? O que é que os nossos políticos vos disseram?
Não posso dizer, infelizmente, o que ouvimos em concreto, mas aquilo em que acredito é que nos expressámos durante estas sessões que eu e outros colegas tivemos na Europa, que os europeus nos ouviram, os parlamentos nacionais nos ouviram, a União Europeia nos ouviu. Acreditamos que temos amigos entre vocês, que vão pressionar para que haja uma solução para o Médio Oriente, especialmente na Síria. Acreditamos que vão apoiar o conceito que implementámos para coexistir de forma democrática na Síria. Acreditamos que através deste lobbying, ao conhecerem a situação de perto, isso significa que serão capazes de pressionar no sentido de alcançar uma solução pacífica nos debates e negociações com a Turquia e outros atores.

Estão a pensar fazer o mesmo noutros locais, como os Estados Unidos ou a Rússia, ou apenas na União Europeia por agora?
Não temos nenhum problema, queremos ir a todo o lado. Onde nos abrirem as portas, nós queremos entrar e contar a história. Temos pessoas neste momento a fazer isto nos Estados Unidos. Tanto Elizabeth Gawyria, do meu partido, da parte cristã auto-administração democrática, como Ilham Ahmed, do lado curdo, do PYD, estão nos Estados Unidos a fazer o mesmo que eu fiz aqui.

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