A Turquia iniciou esta quarta-feira a ofensiva militar contra os curdos na Síria, depois de os EUA terem retirado as suas tropas de parte daquela fronteira. O início da ofensiva, que o regime de Recep Tayyip Erdoğan apelidou de “Operação Primavera da Paz”, deu-se com bombardeamentos aéreos nas vilas sírias de Tel Abyad and Ras al-Ayn.

Às 18h45 desta quarta-feira, depois de vários casos de bombardeamentos aéreos, dirigidos a militares e também a zonas com civis, surgiram relatos de uma invasão terrestre por parte da Turquia na vila de Tel Abyad.

Pelo menos 15 pessoas, incluindo oito civis, morreram durante a ofensiva turca contra as forças curdas no nordeste da Síria, disse o Observatório Sírio para os Direitos Humanos (OSDH). Entre as vítimas mortais, duas foram registadas num ataque de artilharia contra a cidade de Al-Qamishli, predominantemente curda, salienta o OSDH. Segundo a OSDH, 40 pessoas ficaram feridas durante a ofensiva turca.

Já depois do início da ofensiva, a Casa Branca emitiu um comunicado onde Donald Trump rejeitava responsabilidade sobre as ações da Turquia, dizendo que “os EUA não apoiam este ataque e deixaram bem claro à Turquia que esta operação não é uma boa ideia.

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Também Mike Pompeo veio defender Trump e, durante uma entrevista à PBC, revelou que está do lado do Presidente norte-americano na decisão de retirar as suas tropas da Siria, acrescentando que as informações de que os EUA permitiram esta ofensiva “são faltas”. “Os Estados Unidos não deram luz verde à Turquia”, reforçou Pompeo.

Os primeiros momentos da ofensiva foram divulgados em vídeos publicados pela agência estatal síria, SANA:

O início da ofensiva foi confirmado também por Mustafa Bali, responsável pela comunicação dos curdos do YPG no Norte da Síria, que acrescenta que os bombardeamentos não estão (só) a visar militares. “Os aviões turcos começaram a fazer ataques aéreos em zonas civis. Há um pânico tremendo entre as pessoas na região”, escreveu aquele responsável no Twitter.

Este desenvolvimento altera em grande parte a dinâmica da guerra no Norte da Síria, que é nesta altura o maior foco daquele conflito iniciado em 2011. Apesar de a Turquia já ter entrado na região de Afrin (noroeste da Síria) no início de 2018, as suas tropas nunca chegaram a avançar ao longo de toda a extensão da fronteira com a Síria. É agora esse passo que dão, depois de terem conseguido que o maior dos obstáculos a esta invasão se ter desviado do local: as tropas dos EUA na Síria.

Os EUA mantiveram durante grande parte da guerra na Síria uma aliança com os curdos do YPG, situados a Este do rio Eufrates. Esta aliança era mal vista pela Turquia, uma vez que o regime de Ancara considera o YPG um grupo terrorista, aliado do PKK. A aliança dos EUA com o YPG tinha sido foco de uma tensão declarada entre Washington D.C. e Ancara, aliados da NATO.

É precisamente por considerarem os curdos um grupo terrorista que a Turquia avança agora sobre eles, garante Recep Tayyip Erdoğan, num anúncio no seu Twitter, escrito em inglês. O Presidente turco refere ainda que esta ação, ao criar uma zona de segurança, permitirá o regresso de refugiados sírios ao seu país — uma prioridade para a Turquia, que tem 3,6 milhões de refugiados sírios no seu país, o número mais elevado do mundo.

“As Forças Armadas Turcas, juntamente como Exército Nacional da Síria, acabaram de lançar a ‘Operação Primavera da Paz’ contra os terroristas do PKK/YPG e do Estado Islâmico no Norte da Síria. A nossa missão é prevenir a criação de um corredor  do terror ao longo da nossa fronteira Sul, e trazer paz à região“, escreveu o líder da Turquia.

“A ‘Operação Primavera da Paz’ vai neutralizar as ameaças terroristas contra a Turquia e vai levar à instalação de uma zona segura, permitindo o regresso de refugiados às suas casas”, acrescentou, num segundo tweet.

Esta situação levou a um impasse naquela região, que se desfez agora numa questão de dias, com duas ocasiões de nota.

A primeira foi o anúncio por parte de Recep Tayyip Erdoğan no domingo, em que anunciou ter chegado a um acordo com os EUA para estabelecer aquilo que chamou de “zona de segurança” ao longo de 460 quilómetros da fronteira da Turquia com a Síria (no total, a fronteira entre os dois países tem 911 quilómetros). Para lá disso, e mais importante para o que está aqui em causa, esse cordão contemplava ainda uma penetração de 32 quilómetros por parte das tropas turcas em território sírio controlado pelos curdos. Desta forma, o conflito seria inevitável.

A segunda ocasião de nota que contribuiu para a aceleração deste desenvolvimento foi o anúncio por parte de Donald Trump de que os EUA iriam retirar as tropas norte-americanas daquela parte da Síria, rompendo desta forma a aliança estratégica que mantinham com os curdos do YPG.

Ao todo, e neste momento, os EUA têm cerca de mil soldados na Síria. A retirada anunciada por Donald Trump diz respeito a apenas 50 a 100 militares das forças especiais, que ali estão para auxiliar, sobretudo de forma técnica, os curdos do YPG. Mais importante ainda, a presença daqueles militares norte-americanos era um dissuasor mais do que suficiente para a Turquia não avançar sobre os curdos — para fazê-lo, teria de passar pelos soldados dos EUA, o que levaria a um pico inédito de tensões entre aqueles dois aliados da NATO.

Esse dissuasor desapareceu com a movimentação desses 50 a 100 militares para outras partes da Síria — um número reduzido de militares mas cuja ausência, aliada à invasão turca, pode mudar de acelerar indelével o rumo da guerra na Síria.

Trump criticado por republicanos por romper aliança com curdos

Pouco antes da ofensiva turca ter começado, Donald Trump já tinha recorrido ao Twitter para dizer que a Turquia terá de assumir a responsabilidade de garantir que os militantes do Estado Islâmico mantidos até agora em cativeiro pelos curdos YPG — são à volta de 11 mil combatentes, mantidos em cerca de 30 locais de cativeiro — fiquem sob controlo. “A Turquia tem de ter o controlo dos combatentes do Estado Islâmico que a Europa recusou que regressassem”, disse Donald Trump.

A decisão de retirar tropas daquela região da Síria deu origem a críticas a Donald Trump até do Partido Republicano. “Isto o Presidente a exercer a liderança americana de forma a manter a nossa coligação multinacional para derrotar o Estado Islâmico e a prevenir um conflito entre a Turquia, nosso aliado na NATO, e os nossos parceiros locais na luta contra o terrorismo”, atirou o líder dos republicanos no Senado, Mitch McConnell.

“Durante a administração de Obama aprendemos da maneira mais dura de que é preciso liderança americana e não uma retirada para melhor servir os interesses da América”, acrescentou aquele senador.

Já depois de os bombardeamentos turcos terem começado, o senador republicano Lindsey Graham, por norma um aliado próximo de Donald Trump. Referindo que está a ser preparado um “desastre” que este desenvolvimento “assegura a reaparecimento do Estado Islâmico”, Lindsey Graham assegurou que vai “liderar os esforços para que Erdoğan pague caro” e ainda deixou uma mensagem a Donald Trump: “Insto o Presidente Trump a mudar de rumo enquanto ainda vai a tempo ao regressar ao anterior conceito de zona de segurança, que estava a funcionar”.

Também a primeira embaixadora dos EUA nas Nações Unidas a ser designada por Donald Trump, a republicana Nikki Haley, criticou a retirada das 50 tropas norte-americanas que, na prática, abriram o caminho à Turquia.

“Temos sempre de proteger os nossos aliados se queremos que eles nos protejam a nós. Os curdos foram essenciais para o sucesso da nossa luta contra o Estado Islâmico na Síria. Abandoná-los à morte é um grande erro”, escreveu Nikki Haley no Twitter, juntando ainda uma hashtag onde se lê “A Turquia Não É Nossa Amiga”.

Curdos queixam-se de terem sido “apunhalados nas costas” pelos EUA

Pouco depois do anúncio de retirada das tropas dos EUA daquela zona da Síria, o SDF, o exército curdo que tem como maior integrante o YPG, emitiu um comunicado onde dizia: “O ataque infundado da Turquia nas nossas áreas terá um impacto negativo na nossa luta contra o Estado Islâmico e também contra a estabilidade e a paz que criámos na região nos últimos anos”.

Além disso, numa outra ocasião, os curdos do YPG disseram ter sido “apunhalados nas costas” pelos EUA.

Enquanto isso, os curdos admitiram entrar em conversações com o regime de Bashar al-Assad, ao qual se têm oposto ao longo desta guerra. Segundo a Reuters, esta terça-feira, um membro da liderança curda, Badran Jia Kurd’s, disse que essa era uma possibilidade perante uma retirada dos EUA.

“Se a América sair da área, especialmente da fronteira, nós, como uma administração independente e enquanto [parte do] SDF, estaremos obrigados a estudar todas as opções disponíveis”, disse.

Erdoğan telefonou a Putin

O Presidente turco, Recep Tayyip Erdoğan, disse esta quarta-feira numa conversa telefónica com o seu homólogo russo, Vladimir Putin, que uma ofensiva turca contra uma milícia curda síria contribuirá para a “paz e estabilidade” na Síria.

“Durante esta conversa, o Presidente declarou que a operação militar planeada a leste do Eufrates contribuirá para a paz e estabilidade da Síria e facilitará o caminho para uma solução política”, segundo uma fonte da Presidência turca.

Vários países, incluindo a França, mostraram-se preocupados com as consequências humanitárias de uma nova frente no conflito sírio, bem como o destino dos milhares de jihadistas do grupo extremista Estado Islâmico (EI) detidos em campos controlados pelas forças curdas.

Após o anúncio no domingo, pela Casa Branca, de uma retirada dos soldados norte-americanos da Síria, o Presidente dos EUA, Donald Trump, fez declarações contemporizadoras, ao assegurar que “não abandonou” os curdos e ameaçando “destruir completamente a economia da Turquia” caso Ancara “ultrapasse os limites”.

A Rússia e a Turquia, que apoiam lados opostos no conflito sírio, intensificaram a sua cooperação nos últimos anos, em particular no noroeste da Síria. Na terça-feira, Moscovo apelou para que “não seja sabotada a resolução pacífica” do conflito na Síria, em alusão à ofensiva que Ancara pretende lançar.

O Presidente Vladimir Putin e o seu conselho de segurança sublinharam, durante a reunião, “a importância, no atual momento, de evitar qualquer ação que poderá sabotar uma resolução pacífica” do conflito no contexto da formação recente de um Conselho constitucional, segundo o porta-voz Dmitri Peskov, citado pelas agências russas.

Numa altura em que a operação turca iniciada esta terça-feira parecia cada vez mais eminente, com o destacamento de milhares de combatentes e tanques na fronteira síria, o porta-voz do Presidente turco falou com o conselheiro de segurança nacional do Presidente dos EUA, Robert O’Brien. Segundo a Presidência turca, Ibrahim Kalin e O’Brien debateram “o estabelecimento da zona de segurança”.

“Manteremos a ONU [Nações Unidas] e todos os países envolvidos, incluindo a Síria, informados sobre o desenrolar da operação”, indicou hoje o ministro dos Negócios Estrangeiros da Turquia, Mevlüt Cavusoglu, citado pela agência estatal Anadolu.