Foi em viagem pelo Japão que se despediu dos 39 anos. Num continente que já faz parte do seu trajeto, Margarida Vila-Nova encontrou-se com um aniversário redondo apaziguada com o percurso que fez, mas com ambições e desafios que a motivam. “Estou feliz com o caminho que fiz até aqui e estou a atravessar uma fase estável da minha vida. O futuro é uma incógnita, mas são, afinal de contas, os sonhos que nos mantêm alerta para continuar esse caminho”, diz em entrevista ao Observador. Sem rodeios, sabe que é reconhecida pelo percurso multifacetado que fez e por ser um dos rostos célebres da representação nacional. Ao longo das últimas décadas, deambulou entre o teatro, a televisão e o cinema, criando um notável corpo de trabalho que é mais do que apenas currículo: “É uma forma de estar”. Agora, é dela a voz da segunda série dos Podcast+ do Observador, “Piratinha do Ar”.
É através dos gestos, mas sobretudo com as palavras, que tem procurado entregar-se a uma carreira que começou cedo e que se desenrolou naturalmente, sem que tivesse que realmente fazer grandes escolhas. “Desde pequena que este universo [da representação] me fascinava e me despertava curiosidade, ao mesmo tempo que impunha respeito pelo silêncio e pela concentração.” Esse fascínio, recorda, fazia-se pela repetição, num tempo em que colocava uma cassete de VHS de “E Tudo o Vento Levou” para ver a figura inesquecível de Scarlett O’Hara (interpretada por Vivian Leigh) quando dizia “Tomorrow is another day”. Ainda hoje sabe de cor a cena, bem como as canções de Edith Piaf, uma das suas vozes favoritas – e outra das influências prementes. Pode dizer-se que foram a sua primeira escola. “Se soubesse cantar, era assim que faria. Se soubesse representar, era assim que faria. Foi a puxar a Scarlett muitas vezes para trás que aprendi. A repetição sempre esteve muito presente. Repetir um olhar, repetir um trejeito, procurar a verdade daquele texto, daquela emoção”, disse em entrevista ao Público, em 2015.
Entre o mundo das telenovelas, das séries televisivas, mas também do cinema e nos palcos de diversos teatros, fez-se atriz aplaudida. Nunca pensou em abandonar verdadeiramente a representação, mas teve um período de fuga que, diz, a ensinou que “é na dor e nas dificuldades” que mais se cresce. Diz-se otimista e acredita que consegue ver o “copo meio cheio” para não se desperdiçar na vida – mesmo que tropece em “pedras no meio do caminho”, parafraseando o poeta Carlos Drummond de Andrade. O tempo é “perfeito para olhar ao que foi feito, e clarificar os passos que se desejam para o futuro”, diz.
Do cinema até La Féria
Nasceu a uma segunda-feira, 6 de junho de 1983, no ano que marca o início da aventura a que hoje chamamos Internet e no mesmo em que a estrela mais brilhante da pop, Michael Jackson, lançava oficialmente o single “Billie Jean”, que se tornaria num dos temas mais bem-sucedidos de sempre na história da indústria musical. No seio de uma família já ligada ao panorama audiovisual, filha de dois produtores, Margarida Vila-Nova estreou-se no cinema com apenas quatro anos, em “O Bobo”, filme de José Álvaro Morais. Só sabia dizer oui e non, mas para este telefilme francês isso bastava – além da presença de menina curiosa e genuína. A mãe da então futura-atriz era chefe de produção do filme, rodado em pleno verão, que no caso de Margarida foi vivido naquele set numa forma de encantamento raro.
“Via montar a calha do travelling e ficava fascinada com a forma como aquele trabalho era feito – até atingirem o equilíbrio. Como preparavam a luz. Há uma memória de infância que tenho muito presente – é o silêncio. O silêncio do plateau. É uma questão de respeito pelo deus do cinema, seja ele qual for. Depois achava graça aos atores, às maquilhagens, aos figurinos. Sempre gostei do lado folclórico que isto pode ter, a fantasia, o sonho”, recordou na mesma entrevista concedida ao jornal Público. Os passos seguintes foram dados naturalmente. Foram surgindo as primeiras pequenas participações e aos 15 anos surgiu uma primeira série, “Os Jornalistas”, numa altura em que se contavam pelos dedos das mãos os adolescentes a desempenhar papéis no pequeno ecrã nacional.
Antes disso, foi nas produções televisivas de Filipe La Féria para a RTP, “Grande Noite”, gravada ao vivo no Teatro Politeama, (1990) e “Cabaret” (1994) que apareceu tímida, mas determinada. “Na altura era o que queria fazer e aprendi muita coisa que de outra forma não teria conseguido. Pessoas como o Filipe La Féria fizeram de mim aquilo que sou hoje”, realça. Tinha 9 anos e ainda se lembra da primeira vez que recebeu aplausos, mas também das dores de barriga e da garganta seca antes de entrar em palco. A profissão – que ainda não a era verdadeiramente – exigia sacrifícios e Margarida já sabia que precisava de uma dose de coragem. “A primeira experiência de pisar um palco foi pela mão dele e de facto, alguém reparar em nós foi importante”, sublinha. Estava no seu mundo e numa década em que muita coisa começava a mudar no campo da ficção nacional.
[Já saiu: pode ouvir aqui o quarto episódio da série em podcast “Piratinha do Ar”. É a história do adolescente de 16 anos que em 1980 desviou um avião da TAP. E aqui tem o primeiro, o segundo e o terceiro episódios]
A chegada ao mundo das telenovelas
No fim da adolescência, Margarida montou uma empresa de produção com a mãe, a Magníficas Produções, que lhe trouxe mais destaque nos palcos. Produziu as peças “Confissões de Adolescente” – um espectáculo de grande sucesso no Brasil, cujo texto lhe veio parar às mãos –, mas também “Pedras Rolantes”, “ABC do Amor”, “A Menina que tinha medo do escuro”, “Por Uma Noite” e “A Noite dos Assassinos”. Abandonou o projeto da produtora ao fim de algum tempo. “Os anos foram passando e não queria mais fazer ‘Confissões de Adolescente’. Queria fazer o Tchekhov, o Pinter, o Shakespeare. E não fazia sentido continuar a pagar para trabalhar. No fundo, fazia uma novela, ganhava dinheiro e investia numa peça de teatro. Fechámos a produtora e seguimos com as nossas vidas”, disse em entrevista ao Público.
A atriz tinha passado também pela produção, tornava o seu percurso pelo meio cada vez mais abrangente. Chamou amigas para contracenarem consigo, explica, mas dessas amizades surgia também uma relação profissional onde nem sempre era de fácil gestão. Paralelamente, tinha chegado o boom da televisão e da popularidade. “Acho que o auge foi o ‘Mundo Meu’. Acho que foi o momento mais hardcore de exposição pública. Foi na altura que apareceram os papparazzi. Foi uma maluqueira. Hoje, quando penso nisso, lembro-me de um tempo que não parece real. Mas pelo meio de tudo isto já tinha feito a boa, a má, a rica e a pobre, isso tudo resultou um bocado num esgotamento meu. Fiquei um bocadinho desolada, dececionada. Acho que estiquei um pouco a corda”, recordou em entrevista ao semanário Sol.
“Tempo de Viver”, “A Outra”, “Sentimentos” e “Sedução” trouxeram lugares de protagonista – e também a mostraram como antagonista. “Foram muitas as personagens que fiz, mas lembro-me melhor das que fui fazendo até aos meus 25 anos do que destas que se sucediam umas às outras com grande rapidez”, confessa. Pelo caminho tinha começado a trabalhar em cinema, nomeadamente com João Botelho, Mário Barroso ou João Mário Grilo, e prosseguiu no teatro, junto do encenador António Pires, com quem desenvolveu uma relação profícua e de grande ligação emocional. Quanto à televisão, recorda, tinha chegado a um momento de exaustão. Acabada de casar, em 2008, com o realizador Ivo Ferreira e de ser mãe pela primeira vez, Margarida quis outros caminhos, que rompessem convenções e com o momento artístico que vivia. “Quando comecei nas telenovelas ainda havia um preconceito… que ainda hoje existe, mas de outra forma. Quando cheguei a esse momento de algum cansaço senti que talvez me tivesse afastado do teatro e do cinema, que era algo que não queria perder. Senti que a dada altura o meu percurso estava afunilado”, salienta.
Macau e uma mercearia de produtos portugueses
O mundo estava demasiado à mão para ser ignorado e numa altura em que o desejo era “o de poder trabalhar com todos” e entrar nos projetos que ambicionava, sentia que era preciso deixar a televisão para segundo plano. “Os anos passam e deixamos de ter essa urgência”, explica. A busca continuou, mas de outra forma. Numa viagem pelo Oriente com Ivo Ferreira, pararam em Macau. Já nessa altura o casal procurava um negócio que pudesse envolver os dois. Entre uma possível churrasqueira, ainda em Lisboa, surgiu a ideia de uma mercearia de produtos portugueses. “E porque não ali em Macau? Estávamos muito zangados com Portugal: política, social, económica e culturalmente”, revelou em declarações ao Diário de Notícias na época que motivou a mudança.
Num misto de saturação, entre o estado do país e as limitações da sua profissão, Margarida Vila-Nova fez as malas e viajou com a família para a cidade asiática. Desconhecida nas ruas, e mesmo a continuar a sua carreira como atriz – nomeadamente em filmes de Ivo Ferreira – a atriz abriu a Mercearia Portuguesa, em Macau. “Recomecei uma vida lá. Chegámos a Macau de mochila às costas, uma criança de três anos e grávida do Dinis. Montámos uma casa, uma loja. Fazia muitas horas de mercearia. A única forma de conhecer o próprio negócio é atrás do balcão, a conhecer o cliente que vai comprar os produtos. Sobretudo pessoas de Hong Kong e Singapura, de Taiwan ou do Japão”, sintetizou numa entrevista de 2015.
Merceeira e atriz, Margarida reconheceu a importância de ter um texto bem decorado em ambas as dimensões da sua vida. “Tinha de saber a história para vender o meu peixe”, sublinha. Com a ajuda de Catarina Portas e d’A Vida Portuguesa encontrou fornecedores e criou um negócio que ainda hoje se mantém de pé, mas com o qual já não se encontra ligada. A experiência desses anos, diz, foram determinantes para conhecer outros aspetos da vida – pelo simples facto de ser uma anónima. O período em Macau reservou-lhe um grande período de reflexão: “O meu percurso não parou, mas estive em constante questionamento sobre o que queria fazer e qual é que era o caminho que devia seguir”.
E tudo isso foi importante, diz, mesmo que seja um ciclo fechado da sua vida. “Hoje sou melhor mãe, mulher e atriz porque tive essa experiência. Apesar de tudo, foi um período que vivi noutro país, com outra língua, com uma distância que mantinha longe do meu porto seguro, mas que moldou a minha forma de ver o mundo. Embora levasse às costas todo um projeto familiar, descobri a minha insignificância, mas tudo isso foi importante, consigo perceber isso em retrospetiva.” Tal qual a personagem de repórter que desempenha no filme de Ivo Ferreira “Na Escama do Dragão” (2013), Margarida Vila-Nova teve nesses anos um deambular entre o que, bem vistas as coisas, ligavam ocidente e oriente, Portugal e Macau, mas também a sua vida antes e depois daqueles anos decisivos. Serviriam para regressar mais confiante, revela.
E agora, Margarida?
No trajeto que tem feito ao longo de praticamente 35 anos, há muitos momentos de olhar ao espelho, mas Margarida Vila-Nova parece distanciar-se da passagem do tempo como coisa de má memória, mesmo quem impliquem desafios e (re)conquistas. O divórcio e o fim da loja, da qual vendeu a sua parte, trouxeram-na de volta a Portugal. Regressou às novelas de forma discreta e assumiu papéis importantes em séries como “Sul”, “Causa Própria” ou “O Clube”. Por sua vez, em 2022, estreou-se no universo cinematográfico como realizadora de uma curta-metragem a que chamou “Pê”. No cerne do projeto que a empurrou para a realização estava uma carta, de 14 páginas, que o pai escreveu e lhe deixou antes de morrer. Acompanha um homem com um cancro terminal”, interpretado por Adriano Luz, à medida que deambula por Lisboa e se confronta “com uma realidade quotidiana alheia ao seu sofrimento, enquanto prepara a morte próxima”.
“Desde o primeiro minuto, sabia que o queria filmar. Mesmo sem ter definido a forma como iria filmar. Foram imagens que foram surgindo ao longo dos dois anos que fui pensando sobre o filme, que fui refletindo sobre a abordagem que queria aplicar. Parto de uma carta para construir o filme, a carta é sempre a estrela guia”, explicou em entrevista à agência Lusa. Adriano Luz, com quem Margarida contracenou por diversas ocasiões, destaca-a como uma das atrizes mais completas da sua geração: “Conheço a Margarida praticamente desde a sua adolescência e posso dizer que é uma excelente atriz – algo que toda a gente diria, é um facto. Mais do que isso: é uma pessoa íntegra, porque mantém uma preocupações de decência que para mim não é uma coisa despiciente. Nunca se deixou encantar pelo seu estatuto, algo que diz muito sobre ela”.
“Gosto do que ela é como mulher, do que diz, do que a move e nem sempre isso se encontra noutras pessoas deste meio”, explica o ator em declarações ao Observador. Quanto a Margarida, a fase atual é de grande liberdade. Gostava de trabalhar com Tiago Guedes, Tiago Rodrigues ou João Canijo – não tem problemas em dizê-lo. “Vou voltar a filmar nos próximos anos e por outro lado estou feliz com tudo o que fiz até aqui. Nunca quis ser uma única coisa; tive uma mercearia, mas nunca quis deixar de ser atriz por estar atrás de um balcão.” Os muitos passos a seguir podem ser feitos paralelamente. Aí ecoa naturalmente a frase de Scarlett, de que amanhã é outro dia: “É um caminho a fazer, mas estou entusiasmada e com vontade de agarrar novos desafios – mesmo olhando para as coisas com mais calma e uma certa segurança que só ganhamos à medida que os anos passam”.