Em plena pandemia de Covid-19, com o vírus SARS-CoV-2 espalhado por 188 países, a notícia mais aguardada — a seguir à descoberta de uma vacina ou tratamento eficaz — será, provavelmente, a de que o vírus se está a tornar mais fraco. “Esta variante enfraquecida que encontrámos faz-nos pensar que talvez algo esteja a acontecer”, anunciou na semana passada o médico italiano Arnaldo Caruso. Mas aquilo que identifica como “uma esperança” pode, no entanto, não ser mais do que isso, visto não parecer ter uma base sólida para se apoiar.
Aos jornais Corriere della Sera (Itália) e El Mundo (Espanha), Arnaldo Caruso disse que a equipa que liderava na Universidade de Brescia (Itália) tinha encontrado uma “variante do SARS-CoV-2 que infeta as células e se replica muito bem, mas é pouco agressiva”. Segundo o virologista, esta “variante” foi descoberta acidentalmente num indivíduo assintomático com uma alta carga viral.
Fica por explicar exatamente o quer o médico dizer com menos forte ou menos agressivo. Pedro Simas, virologista no Instituto de Medicina Molecular (Lisboa), diz ao Observador que não entende o que pode significar este alegado enfraquecimento do vírus. “O vírus é geneticamente muito estável”, diz. “Não há evidência nenhuma de que o vírus esteja a sofrer mutações de modo a que se reflita nas suas características biológicas, nomeadamente produzir uma infeção mais atenuada.”
A diretora-geral da Saúde, Graça Freitas, disse também, na conferência de imprensa de terça-feira, que “vamos ter de esperar para ver mais estudos sobre o vírus, sobre as alterações, pequenas, mas muitas alterações genéticas que este vírus teve”. Por agora, a diretora-geral da Saúde vai continuar a ser “muito cautelosa em relação aos muitos estudos que vão sendo publicados”.
O médico italiano, por sua vez, acrescenta que “o vírus está a perder a força por causa do calor”. Celso Cunha, diretor da Unidade de Microbiologia Médica do Instituto de Higiene e Medicina Tropical (Lisboa), explica ao Observador que há razões para o SARS-CoV-2 se transmitir menos no verão, mas que o motivo não é o calor.
Um outro médico italiano, Alberto Zangrillo, diretor dos cuidados intensivos do Hospital de San Raffaele, em Milão, disse recentemente que “o novo coronavírus já não existe em termos clínicos”, porque aquele hospital não tem novos casos de Covid-19 nos cuidados intensivos e intermédios. Ainda que seja verdade que há menos casos graves a chegar aos hospitais — em Itália, Portugal e noutros países — as declarações de Zangrillo já mereceram a crítica de colegas italianos e da subsecretária da Saúde italiana, Sandra Zampa.
Não se pode afirmar que está mais fraco
“O vírus perdeu muita força do ponto de vista da infeção”, disse Arnaldo Caruso, presidente da Sociedade Italiana de Virologia, na entrevista ao jornal espanhol El Mundo. “Tudo leva a pensar que o vírus já não tem o poder destrutivo que tinha antes.”
O médico italiano baseia as suas afirmações no facto de as pessoas que têm sido testadas ultimamente no Hospital Civil de Brescia terem uma carga viral mais baixa, mas também num caso particular, em que uma pessoa tinha uma carga viral muito alta, mas nenhum sintoma. O vírus isolado desta pessoa terá demorado mais dias a infetar as células num teste realizado em laboratório (seis dias) do que os casos anteriormente conhecidos (2-3 dias), refere o médico.
Pedro Simas não conhece este trabalho — nem podia, porque ainda não foi publicado numa revista científica —, mas diz que “se trata de um estudo pontual e que, do ponto de vista evolutivo, não faz sentido”. Um vírus bem sucedido é aquele que consegue infetar o maior número de hospedeiros (neste caso, pessoas) e continuar a disseminar a doença. Ter menos capacidade para infetar as células, como parece verificar-se no caso referido, ou, por outro lado, ser tão virulento que provoca uma doença grave e, eventualmente, morte tem o efeito contrário.
Sem dados publicados, sem a certeza de que o vírus do indivíduo selecionado seja geneticamente diferente do de outros indivíduos e sem saber se está espalhado na população, Caruso quis, mesmo assim, divulgar esta informação porque traria uma “mensagem de esperança”. Mas os colegas italianos, ouvidos pelo Corriere della Sera, não concordam com a divulgação precoce.
“Para avaliar se o vírus mudou são necessários estudos com um grande número [de pessoas], o que, no momento, não me parece que estejam disponíveis”, afirma Giuseppe Ippolito, diretor científico do Instituto Nacional de Doenças Infecciosas (Roma). Nem tão pouco foi feito um estudo para perceber se houve perda ou ganho de alguma função por parte do vírus, acrescenta Giorgio Palù, antigo presidente das sociedades italiana e europeia de Virologia.
Arnaldo Caruso não nega a falta de conhecimento sobre esta situação em particular. “Até que conheçamos bem essa variante e a estudemos na população, não poderemos saber se é importante, se foi importante no passado ou será no futuro. Além disso, ainda não realizámos um estudo com animais sobre essa variante [só em células no laboratório], por isso não conhecemos a sua agressividade nos seres vivos.”
O calor não torna o coronavírus mais fraco
“Todos os positivos que temos tido ultimamente são positivos com baixa carga viral”, diz Arnaldo Caruso ao jornal El Mundo. “Significa que o vírus está a perder a força por causa do calor e provavelmente por outros fatores que ao dia de hoje desconhecemos”.
Celso Cunha entende que “a afirmação, tal como está plasmada na entrevista, é incorreta”. Ao Observador, diz que o investigador italiano até pode ter tentado usar uma linguagem simplificada, mas esclarece que o calor ou o frio não alteram a força do vírus. Os vírus respiratórios, como o da gripe, transmitem-se melhor no inverno porque as pessoas estão mais tempo em espaços fechados (onde o vírus se pode acumular), porque com temperaturas mais baixas é mais fácil as partículas do vírus se manterem suspensas no ar que nos rodeia (logo, chegar mais facilmente às vias respiratórias) e porque, segundo alguns estudos, o sistema imunitário tem menor capacidade de responder às infeções virais com o frio, explica o virologista.
O investigador português acrescenta que neste momento não há dados que indiquem que o vírus está mais forte nem mais fraco e que o aumento do número de pessoas assintomáticas também não indica que o vírus esteja enfraquecido ou que vá desaparecer.
O que acontece é que se as pessoas passam mais tempo no exterior têm um risco menor de serem infetadas e, mesmo que sejam infetadas, a quantidade de vírus a que estão expostas será menor do que num espaço fechado. Mas a carga viral (quantidade de vírus detetada nos doentes) não permite determinar como se vai manifestar a doença. “Sabemos que indivíduos jovens que foram infetados com cargas virais mais altas ou mais baixas apresentam sintomas semelhantes”, afirma o virologista. E nos idosos, cujo sistema imunitário se encontra debilitado, também parece que a carga viral não explica por si só a evolução da doença.
Mesmo que o vírus esteja a perder a capacidade de provocar doença grave e que a larga maioria das pessoas fique infetadas sem sintomas, isso não quer dizer que o vírus esteja prestes a desaparecer. Muito pelo contrário. Uma vez que se adapte a viver com o homem e a tirar proveito de o infetar sem o fazer adoecer muito, o vírus tem muito mais probabilidades de continuar connosco, à semelhança de outros coronavírus que provocam constipações comuns.
Apesar de defender que o vírus pode estar a ficar mais fraco e que será praticamente impercetível no verão, Caruso alerta que “não podemos baixar a guarda”. O virologista reforça que temos de continuar a usar máscaras e manter o distanciamento social, porque, mesmo que a maior parte das pessoas possa continuar sem sintomas, o vírus continua a ser capaz de causar danos severos nas pessoas mais debilitadas.
O vírus foi enfraquecido pelas mutações?
Arnaldo Caruso apresentou o vírus estudado como uma nova variante, mas Celso Cunha diz que é precoce defini-lo desta forma ou sequer tirar qualquer conclusão sobre se tem maior ou menor capacidade de infetar as pessoas. “Podem existir múltiplos fatores que justifiquem [a presença deste vírus modificado no indivíduo]: os fatores genéticos do hospedeiro, os fatores do sistema imune do indivíduo ou o microbioma (as bactérias que vivem no organismo e que podem influenciar o funcionamento do sistema imunitário).” O que se sabe é que dois vírus iguais podem ter efeitos muito diferentes em duas pessoas distintas.
Há duas estirpes de coronavírus a circular e a mais comum é “a mais agressiva”. O que muda agora?
Sem ser feita uma análise genética, não se sabe que mutações poderá ter o vírus do indivíduo estudado por Caruso, mas nem isso daria uma resposta conclusiva. Celso Cunha diz que já foram identificadas mais de sete mil mutações no vírus SARS-CoV-2. Mas estas mutações têm pouca relevância, diz Giuseppe Ippolito. O que mudou foram as condições ambientais, refere o diretor científico do Instituto Nacional de Doenças Infecciosas, em Itália. “O número de pessoas infetadas diminuiu, a melhoria das estratégias de vigilância permitiu que mais caso positivos fossem detetados e mais cedo.”
Pedro Simas concorda. O SARS-CoV-2 “é um vírus que apresenta uma estabilidade biológica muito grande, ou seja, as mutações não se traduzem em variações das características biológicas: capacidade de disseminação, capacidade de causar infeção, capacidade de causar doença ou capacidade de invadir o sistema imunológico”.
O virologista acrescenta ainda que o que estamos a assistir hoje em dia em todo o mundo não é uma atenuação da capacidade de infeção do vírus, mas o reflexo das medidas de isolamento e distanciamento social. Com a dispersão do vírus controlada, há menos infeções, logo também há menos infeções graves, porque essas são situações raras, explica Pedro Simas. Os casos graves a que assistimos no início do surto em Portugal pareciam muito frequentes porque só se faziam testes às pessoas doentes. À medida que se fazem muito mais testes percebe-se que as pessoas com sintomas e os casos graves são menos comuns do que parecia inicialmente.
Estará o vírus clinicamente extinto?
Parece não haver dúvidas de que em Itália, Portugal ou em muitos outros países onde se aplicaram medidas de distanciamento social o número de casos graves diminuiu, como confirma ao Observador António Sarmento, diretor do Serviço de Infecciologia do Hospital de São João. Há menos pessoas no hospital por causa da Covid-19, há menos casos graves e tem sido possível dar alta a mais doentes.
Alberto Zangrillo, diretor dos cuidados intensivos do Hospital de San Raffaele, em Milão, vai mais longe e, tendo em consideração que o hospital não tem novos casos de internamento nos cuidados intensivos ou intermédios por causa da Covid-19, considera que “o novo coronavírus já não existe em termos clínicos”.
O médico italiano ter-se-á baseado no estudo de Massimo Clementi, diretor do Laboratório de Microbiologia e Virologia do Hospital de San Raffaele. “A capacidade de replicação do vírus em maio está incrivelmente enfraquecida quando comparada com aquilo que tínhamos em março”, diz Clementi com base na análise dos dados de 200 doentes de várias idades. Massimo Clementi diz que agora estão a assistir a “nova doença” quando comparada com março e abril, mas também admite que as condições ambientais são mais favoráveis. De lembrar que os italianos estiveram fechados em casa durante mais de dois meses.
“É inegável e tranquilizador que a pressão sobre os hospitais diminuiu drasticamente nas últimas semanas. Não deve ser esquecido que isto é o resultado de medidas igualmente drásticas para conter a circulação do vírus”, lembra Luca Richeldi, diretor de Pneumologia no Hospital Universitário Agostino Gemelli, em Roma. “O vírus ainda está em circulação e é errado transmitir mensagens que não convidem à cautela.”
A subsecretária da Saúde italiana, Sandra Zampa, reforça que “a mensagem é errada” e convida os especialistas “a não confundirem as ideias dos italianos, favorecendo comportamentos de risco do ponto de vista da saúde”.
Pedro Simas reforça que se agora vemos menos casos graves é porque vemos menos casos em geral. As medidas de isolamento e distanciamento social foram muito úteis a conter a disseminação do vírus, mas não permitiram que se tenha criado imunidade. Caso o vírus se tenha, de facto, tornado mais capaz de infetar as pessoas sem as matar, um relaxamento das medidas neste momento permitiria que o vírus “se espalhasse ainda mais rápido”.
Atualizado com as declarações de Graça Freitas na conferência de imprensa de dia 2 de junho.