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As chaminés dos crematórios de Auschwitz-Birkenau deixaram de fumegar há mais de 75 anos, mas as engrenagens da Indústria do Holocausto continuam a girar, ainda que noutros ramos de atividade – a edição de livros sobre o genocídio empreendido pela Alemanha nazi é um negócio florescente, até em Portugal. A edição nacional de livros sobre história é rarefeita e tem graves lacunas cronológicas e geográficas, mas uma busca no website da Wook com as palavras “Holocausto” ou “Auschwitz” produz uma enxurrada de resultados, a que se somam, claro, muitos livros sobre o assunto cujo título não inclui estas palavras.

Considerando apenas o presente mês Setembro de 2020 e apenas editoras portuguesas de primeiro plano, registou-se o lançamento de quatro livros sobre o tema, um no género ficcional – O Mágico de Auschwitz, de José Rodrigues dos Santos (Gradiva, 456 páginas) – dois na área da divulgação histórica – O voluntário: A história real do herói da resistência que se infiltrou em Auschwitz, de Jack Fairweather (Vogais, 509 páginas), e Holocausto, de Irene Flunser Pimentel (Temas & Debates, 592 páginas) – e ainda outro destinado ao público juvenil – Os que desapareceram em Auschwitz: A história real da minha família durante a Segunda Guerra Mundial, de Michael Rosen (Leya, 128 páginas).

A capa de “Holocausto”, de Irene Flunser Pimentel (Temas e Debates)

É relevante realçar que O voluntário: A história real do herói da resistência que se infiltrou em Auschwitz é a segunda obra sobre a abnegada e destemida missão do resistente polaco Witold Pilecki publicada pela Vogais: O voluntário de Auschwitz: Uma história real de coragem sem limites, escrito pelo próprio Pilecki, já vai na 3.ª reimpressão.

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Os necrófagos de Auschwitz

A par da série Tomás de Noronha, decalcada dos thrillers hermético-semióticos da série Robert Langdon, de Dan Brown, José Rodrigues dos Santos tem vindo a apostar nos “romances históricos”, empadões épicos “baseados em acontecimentos verídicos”, que alternam ténues e pueris enredos ficcionais – que dão sempre papel de relevo a personagens portuguesas – com longas, escolares e entorpecedoras prelecções pedagógicas sobre os grandes eventos que marcaram a história da primeira metade do século XX: a implantação do comunismo na URSS, a ascensão de regimes autoritários na Europa e Japão entre as duas guerras mundiais, a Guerra Civil Chinesa, a Guerra Civil de Espanha, a II Guerra Mundial.

Atendendo:

1) aos mais de três milhões de exemplares vendidos por O tatuador de Auschwitz (2018), de Heather Morris (que, entretanto, lançou no final de 2019 uma espécie de sequela, A coragem de Cilka, prontamente traduzida para português) e ao sucesso generalizado de outras ficções ou relatos ficcionados de “vivências do Holocausto”

e 2) aos antecedentes e ao infalível faro comercial de José Rodrigues dos Santos, pode dizer-se que a aparição de O mágico de Auschwitz – onde se cruzam as histórias do Grande Nivelli, “o mágico judeu que encanta Praga” e de Francisco Latino, um voluntário português que lutou contra os soviéticos na Frente Leste, integrado na Divisão Azul – nada tem de inesperado. Na verdade, chega até tardiamente a um segmento de mercado onde já se acotovelam A bibliotecária de Auschwitz, A bailarina de Auschwitz, O carteiro de Auschwitz, O farmacêutico de Auschwitz, As irmãs de Auschwitz, As gémeas de Auschwitz, Os bebés de Auschwitz, A rapariga de Auschwitz, O rapaz de Auschwitz, O rapaz que seguiu o pai para Auschwitz, As cartas perdidas de Auschwitz, Sonata em Auschwitz, O violino de Auschwitz, para citar apenas livros com Auschwitz no título que estão disponíveis em edição portuguesa. O Grande Nivelli nem sequer foi fruto da imaginação de José Rodrigues dos Santos, pois teve existência real – nasceu em Berlim como Herbert Levin em 1906 e faleceu nos EUA em 1977 – e a sua história já foi contada, para um público infanto-juvenil, em The magician of Auschwitz, escrito por Kathy Kace e ilustrado por Gillian Newland. Mas, claro, um talento das letras e um pensador sofisticado como José Rodrigues dos Santos mesmo, quando se baseia “em acontecimentos verídicos e em personagens reais”, nunca se limita a reaquecer velhas histórias: a sua editora assevera que “O Mágico de Auschwitz revela-nos a Shoah como nunca foi mostrada […], transporta-nos ao coração do maior dos campos da morte nazis e revela-nos episódios desconhecidos do Holocausto, incluindo o papel que o misticismo e o esoterismo desempenharam na Solução Final. Uma das mais importantes obras da literatura portuguesa contemporânea”.

Herbert Levin, aliás o Grande Nivelli

Em 1949, Theodor Adorno fez a famosa proclamação de que “Escrever poesia depois de Auschwitz é bárbaro” (frase frequentemente adulterada para “É impossível escrever poesia depois de Auschwitz”), mas, felizmente, os poetas conseguiram prosseguir o seu mister sem cair na barbárie. Todavia, a acusação de “barbárie” é válida para os fabricantes de ficções edulcoradas que se alimentam do Holocausto, a pretexto de proporcionarem “um testemunho impressionante de coragem e sobrevivência”, “uma memória viva dos acontecimentos que marcaram esse período tão dramático da história mundial” ou uma homenagem a quem teve “força e determinação para superar a mais profunda das noites”.

É improvável que, em 1949, Adorno fosse capaz de adivinhar que alguém se atreveria a urdir um romance de aerogare sobre o Holocausto e, menos ainda, que este “género” se converteria num dos mais lucrativos filões literários da segunda década do século XXI. E provavelmente teria uma apoplexia se soubesse que em 2011, uma “especialista em terapêutica ortomolecular” (?) lançaria um livro sobre nutrição intitulado A dieta de Auschwitz (que, por um macabro acaso, foi publicado pela Editora Ariana).

Nestes tempos transtornados em que vivemos, “Auschwitz” deixou de ser sinónimo de um crime monstruoso que maculou indelevelmente a humanidade para ser um chamariz da indústria livreira.

Auschwitz-Birkenau, Maio de 1944: Triagem de judeus húngaros recém-chegados, na rampa junto à plataforma ferroviária

Para que serve este livro?

Holocausto, de Irene Flunser Pimentel, é, claro, livro de natureza bem diversa, mas é legítimo perguntar o que traz de novo quer às obras de divulgação sobre o Holocausto quer à obra da autora. O título é desconcertante, para começar pelo seu extremo laconismo, que parece presumir que este é o primeiro livro sobre o Holocausto. Ou crerão autora e editora que a obra se afirmará como o livro definitivo sobre o Holocausto e que bastará dizer-se “Holocausto” para que todos percebam ser “o Holocausto de Irene Flunser Pimentel”?

Na verdade, sob o seu título monolítico, o livro divide-se em duas partes: uma que trata o Holocausto em geral e outra que aborda “o papel de Portugal” no Holocausto. No que à 1.ª parte diz respeito, Portugal tem sido bafejado com um apreciável caudal de obras de divulgação sobre o tema (como atesta a sobreposição acima referida de livros sobre a missão de Witold Pilecki), entre as quais há a destacar duas obras magnas: Holocausto: Uma nova história, de Laurence Rees (ver “Como serias tu em Auschwitz?”), e, sobre tema afim, KL: A história dos campos de concentração nazis, de Nikolaus Wachsmann (ver “Daqui só se sai pela chaminé”). Tal não significa, claro, que o assunto não seja suficientemente rico e vasto para acolher novos contributos.

Judeus de Würzburg, Alemanha, a caminho da deportação para Lublin, na Polónia, 25 de Abril de 1942

No que à perspectiva portuguesa diz respeito, a apresentação do livro feita pela editora afirma que “em Portugal o tema do Holocausto, ou Shoá, ficou submerso num limbo”. Ora, o assunto já foi amplamente explorado pela própria Irene Pimentel em Contai aos vossos filhos: Um livro sobre a história do Holocausto na Europa, 1933-1945 (2000, Gótica), em Judeus em Portugal durante a II Guerra Mundial: Em fuga de Hitler e do Holocausto (2006, A Esfera dos Livros), em Salazar, Portugal e o Holocausto, com Cláudia Ninhos (2013, Temas e Debates), em O comboio do Luxemburgo: Os refugiados judeus que Portugal não salvou, com Margarida Magalhães (2016, A Esfera dos Livros), e em numerosos artigos e textos para catálogos de exposições (as obras de Pimentel citadas na bibliografia de Holocausto perfazem uma página completa), obras a que se somam Portugal, Salazar e os judeus, de Avraham Milgram (2010, Gradiva) e Portugueses no Holocausto, de Esther Mucznik (2012, A Esfera dos Livros). Que descobertas sensacionais sobre o tema “Portugal e o Holocausto” terão vindo a lume nos sete anos decorridos desde que surgiram as 908 páginas de Salazar, Portugal e o Holocausto para que Pimentel se tenha sentido compelida a devotar mais umas centenas de páginas ao assunto?

A outra perplexidade resulta de Irene Pimentel argumentar longa e elaboradamente em favor do uso do termo “Shoá” em vez de “Holocausto” e , todavia, usar o termo “Holocausto” não só no título (e no texto) deste livro como no dos outros livros e artigos que escreveu sobre o assunto.

Pimentel declara ter escrito o livro “para que sirva de uma espécie de manual, em que se possam encontrar respostas a diversas perguntas e dúvidas, desfazer confusões, ajudar a derrubar ideias feitas e lugares-comuns contendo falsidades; em suma, contribuir para um maior conhecimento sobre o tema do Holocausto”. A obra está dirigida “à vasta comunidade de professores de História, a todos os leitores interessados no tema que o queiram aprofundar; e também a qualquer investigador que se interesse por abordar o assunto, sem ter de eternamente começar pelo início”.

No início do livro, Pimentel martela a ideia de que a maioria das pessoas tem do Holocausto um conjunto de ideias imprecisas e equivocadas – é um facto, mas a maioria das pessoas tem um entendimento impreciso e equivocado sobre quase tudo, trate-se da história da II Guerra Mundial, do Brexit, das eleições nos EUA, de astronomia, de demografia ou de bioquímica, porque seria o Holocausto uma excepção? Acontece que a maioria as pessoas não lê livros – e muito menos livros de divulgação histórica – e colhe a sua informação sobre o mundo em notícias ouvidas en passant na TV, em conversas de café e de cabeleireiro e, nos últimos anos, nas redes (ditas) sociais. Um inquérito realizado nos EUA (Holocaust Knowledge and Awareness Study) e divulgado há poucos dias revelou que 11% dos americanos (e 22% dos millennials) não sabem o que foi o Holocausto, que 45% (49% dos millennials) é incapaz de nomear um campo de concentração ou de extermínio ou um gueto e que 41% (66% dos millennials) não sabem o que foi Auschwitz.

Mas quem se interessa suficientemente sobre o Holocausto para despender 20 euros no livro de Pimentel faz necessariamente parte de uma minoria que já terá feito leituras mais sérias sobre o assunto do que O tatuador de Auschwitz e não se enquadra nesse retrato de ignorância e equívoco generalizado.

Cartaz de propaganda nazi, por Hans Schweitzer: As guerras, mesmo que iniciadas pelos nazis, são sempre culpa do judeu

A arquivista de Auschwitz

Se não é por falta de livros sobre o Holocausto que as pessoas não estão mais bem informadas sobre o tema, também não seria mais este livro de Pimentel a produzir a luz, pois fica muito longe de cumprir os propósitos com que se apresenta. A estrutura da obra tal como explanada no índice e na introdução até pode parecer sensata, mas Pimentel tem uma peculiar propensão para a ambiguidade e para a desordem e, em vez do prometido esclarecimento dos equivocados, pelo que o que este livro consegue é confundir e exasperar mesmo quem já tenha algumas noções sobre o tema.

Este Holocausto consegue também a proeza de ser completamente destituído de drama e humanidade: é um vasto e burocrático repositório de datas, decretos, reuniões de altos funcionários nazis, deslocações de massas humanas, execuções e exumações, onde raramente se avista um ser vivo. É o equivalente a ler um fastidioso relatório de auditoria às contas de 12 anos de actividade de uma grande empresa funerária – mas um relatório cujas páginas tivessem sido espalhadas por um vendaval e amontoadas numa ordem qualquer. É frequente que o texto aluda a leis, operações e entidades sem sobre elas prestar esclarecimentos – que podem nunca ser dados ou podem surgir muitas páginas à frente (assim acontece, por exemplo, com as Leis de Nuremberga, os Einsatzgruppen, ou a Operação T4).

Abundam também as referências a topónimos, sobretudo na Europa de Leste, com os quais o leitor português não estará familiarizado. Numa obra desta natureza seria indispensável a inclusão de mapas com os pontos-chave do Holocausto (guetos, campos de extermínio e concentração, locais de fuzilamentos em massa em território soviético) e que delimitasse as fronteiras das regiões administrativas da Europa sob o jugo alemão. Quantos leitores terão presente onde ficam Lublin e Stutthof ou quais os limites do Governo-Geral da Polónia?

Geografia do massacre: mapa incluído no Relatório Stahlecker (de 16 de Outubro de 1941), dando conta do número de judeus mortos pelo Einsatzgruppen A na Lituânia, Letónia, Estónia (apresentada como “Judenfrei” = “livre de judeus”), Bielo-Rússia e Rússia

Não menos indispensável, atendendo ao propósito e ao público-alvo anunciados na introdução, seria fornecer um índice remissivo detalhado – em vez disso há apenas um índice onomástico, o que quer dizer que quem queira saber o que foi a Operação Reinhard ou os Sonderkommando ou o que se passou em Treblinka terá de vasculhar laboriosamente as 592 páginas.

“Holocausto” contém, indubitavelmente, uma enorme quantidade de informação – não se duvida de que Pimentel tenha consultado a bibliografia e os arquivos relevantes para o tema – mas dele é difícil extrair conhecimento e, muito menos, iluminação, devido a uma escrita confusa e pouco rigorosa e a várias imprecisões e até erros factuais, de que se dão exemplos abaixo.

Sobreviventes do Sonderkommando 1005 (uma das unidades de judeus responsáveis pelo “trabalho sujo” nos campos de extermínio e de concentração) junto a uma máquina de triturar ossos no campo de concentração de Janowska

Lapsos, imprecisões, distorções e enigmas

Pg. 15: Ainda vamos na introdução e já o leitor é confrontado com uma desconcertante definição de “genocídio”, termo que, lembra a autora, foi cunhado por Raphael (Rafał) Lemkin, um advogado judeu que nasceu na Polónia e se radicou nos EUA. Porém, é de crer que Lemkin não se revisse na definição de “genocídio” formulada por Pimentel: “relaciona-se com o facto de seres humanos terem pretendido privar outros da humanidade comum e impedi-los de viverem na mesma terra”. Por este critério, seriam “genocídio” as lutas entre cartéis de droga mexicanos ou entre “famílias” de mafiosos ou qualquer disputa por posse de território. Mais à frente, Pimentel apresenta definições mais correctas de genocídio, mas esta entrada é um mau prenúncio.

Rafael Lemkin, criador do termo “genocídio”

Pg. 26: Pimentel acha imprópria a designação “campo de extermínio”, que considera “antinómica”, por “campo” ser um “local onde são concentrados e regrupados [sic] de forma durável prisioneiros”. Bem, essa é a definição de “campo de concentração”, a palavra “campo” isolada não tem associada essa noção, define apenas um espaço, pelo que “campo de extermínio” seria perfeitamente válido. Mas Pimentel prefere designar “locais para onde foram conduzidas as vítimas com o objectivo exclusivo de serem assassinadas” com a terminologia proposta por Bruttman & Tarricone, “centre de mise à mort”, que, escreve Pimentel, “em português poderá traduzir-se por ‘centro de morte’”. A tradução é inadequada: “centro de morte” designa um lugar onde se morre, sem implicar a “agência”, a intencionalidade, a organização que estão expressas no francês “mise à mort”, cuja tradução mais fiel é, afinal de contas, “extermínio”.

Pg. 28: “Um milhão e meio de crianças judias foram assassinadas na ‘Solução Final’, em primeiro lugar nos guetos, através da fome e da doença, e depois nos centros de morte, mas também pelos Einsatzgruppen e nas câmaras de gás”. Ou seja, apresentam-se as câmaras de gás como uma forma de extermínio diversa da dos campos de morte, quando na verdade as câmaras de gás eram a forma de extermínio dos campos de morte.

Pg. 29: Na enumeração dos quatro genocídios do século XX, segundo Kotek, lista-se “o dos judeus pelos nazis, a partir de 1941, com carácter sistemático à escala europeia, a começar pelas crianças”. O genocídio judeu estendeu-se às crianças, mas não começou pelas crianças; ignora-se de onde terá “caído” esta surpreendente revelação, a que o resto do livro não faz qualquer referência.

Pg. 30: Para justificar a (suposta) inadequação do termo Holocausto, escreve-se que “um sacrifício é um acto consentido ou voluntário, quando os judeus europeus assassinados pelos nazis não procederam a nenhuma escolha, nem tinham de expiar o que quer que seja”. Pimentel comete um clamoroso erro de raciocínio ao confundir a vítima com o executor: é claro que as vítimas, de um massacre ou de um sacrifício religioso, não procedem a nenhuma escolha, esse poder é o do carrasco ou do oficiante. Os cordeiros e os bois imolados nos altares também não estão lá por sua escolha, a escolha cabe a quem os oferece em sacrifício.

A sinagoga de Nuremberga, destruída em 1938, na Kristallnacht (Noite de Cristal), um evento decisivo na escalada da perseguição aos judeus pelo III Reich

Pg. 37: Quanto trata da relação do nazismo com a religião islâmica, escreve-se que, “quanto aos árabes e muçulmanos, durante a campanha da África do Norte, os nazis tentariam recrutá-los para o seu lado, mas com muito pouco sucesso”. É verdade, mas a África do Norte não foi a única região onde os nazis contactaram com populações islâmicas: na Jugoslávia ocupada os alemães tiveram tanto sucesso no recrutamento que foi constituída uma divisão inteira das SS (cerca de 17.000 homens), a 13.ª Divisão de Montanha Waffen SS, conhecida como “Handschar” (de “khanjar”, uma adaga oriental), só com muçulmanos bósnios.

Pg. 43: Ao assistir em Minsk a um fuzilamento em massa de judeus, em Agosto de 1941, Himmler “ordenaria aos seus serviços que inventassem métodos mais ‘humanos’, em resultado de que foram criadas as câmaras de gás”. A ideia que se impôs a Himmler em Minsk era que os métodos deveriam ser mais “humanos”, não para as vítimas, como se depreende desta frase, mas para os carrascos, pois estes ficavam nauseados por passar dias inteiros a matar gente indefesa a tiro, por vezes quase à queima-roupa. A morte através da câmara de gás separava o carrasco da vítima e deixava o trabalho sujo – conduzir as vítimas à câmara, remover os cadáveres e “processá-los” – aos prisioneiros judeus dos Sonderkommando. A Himmler era indiferente que a morte dos judeus fosse mais ou menos penosa para os judeus, o que o preocupava era a saúde mental dos seus homens.

Pg. 46: A propósito de Adolf Eichmann, o principal obreiro da logística do Holocausto, escreve-se que “ao fugir para a Argentina no pós-guerra, viria a ser capturado e levado para Israel”. Eichmann, não foi capturado “ao fugir para a Argentina”: no pós-guerra viveu, sob identidade falsa, na Alemanha até fugir para a Argentina em 1950; aí, sob nova identidade, viveu pacatamente durante anos e sentiu-se tão seguro que até chamou a sua família para junto de si. Eichmann só foi rastreado e capturado pela Mossad em 1960.

Adolf Eichmann

Pg. 64: Sobre o funcionamento da máquina do Estado durante o III Reich, fala-se da “competição darwiniana inerente ao sistema nazi”. Sim, sabe-se que Hitler estimulava a competição entre diferentes organismos e departamentos do Estado, mas o que tinha essa competição de especificamente “darwiniano”? “Competição darwiniana” é um termo com um significado preciso, não é um ornamento.

Pg. 78: “Outro aspecto relacionado com o horror único do Holocausto foi ainda o facto de os nazis terem tido sucesso nesse objectivo aparentemente impossível de tornar a Europa ‘livre de judeus’”. Em menos palavras: o que é horrível no Holocausto é ter acontecido. Monsieur de La Palisse não diria melhor.

Pg. 102-103: Na Polónia, em 1942, “assistiu-se a uma ‘concatenação de duas grandes operações de engenharia racial’, uma de homicídio de judeus e a outra de depuração dos polacos, muitos dos quais recusaram a captura, escapando para as florestas, à Aktion Zamosc. O fracasso dos planos de construção e instalação por Otto Ohlendorf de Volksdeutsche na Zamojszczyzna levaria à reinstalação de ucranianos em aldeias polacas, incentivando-os ao ‘incêndio étnico’ através da Operação Wehrwolf”.

Não só a sintaxe é duvidosa como Pimentel nada mais diz sobre a “Aktion Zamosc” e a “Operação Wehrwolf”, pelo que caberá ao leitor investigar. A Aktion Zamosc visava a limpeza étnica da região de Zamość (Zamojszczyzna), quer de judeus quer de polacos, para que aí fossem instalados alemães étnicos (Volksdeutsche), mas os polacos ofereceram resistência determinada, desenvolvendo constantes acções de guerrilha contra os nazis entre Dezembro de 1942 e Julho de 1944, no que ficou conhecido como “Sublevação de Zamość”. Os alemães responderam com operações de “pacificação” desta região levadas a cabo em Junho-Julho de 1943 foi dado o nome de Wehrwolf I e II (que não deverão ser confundidas com o plano Werwolf, nascido em 1944, que é coisa bem diferente).

Expulsão de polacos da região de Zamość, em Dezembro de 1942

Pg. 120: “Entre 7 e 15 de Abril, a Itália fascista invadiu e anexou a Albânia, mas teve de confrontar-se com uma grande resistência, que levaria mais tarde a Alemanha a ajudar esse país do Eixo, mandando tropas para os Balcãs”. O assunto volta a ser tratado na página 380: “em Janeiro de 1941 [a Alemanha retirou] as tropas dos Pirenéus, para resolver ‘o problema a leste’, provocado pela mal-sucedida invasão da Albânia pela Itália, transferindo-as para os Balcãs”.

Entre 1939 e o Armistício com os Aliados, assinado em 1943, o exército italiano quase só averbou derrotas, mas a invasão da Albânia, em Abril de 1939, foi a sua única vitória inequívoca, pelo que os italianos não apreciarão esta reescrita da história por Pimentel. A invasão do minúsculo país dos Balcãs foi um passeio para as forças italianas e após cinco dias de combates contra forças italianas superiores em número e, sobretudo, em equipamento, o parlamento albanês depôs o rei Zog e ofereceu a coroa a Victor Emmanuel III.

A Itália defrontou-se com uma “grande resistência” foi quando tentou invadir a Grécia (a partir da Albânia) em Outubro de 1940. Em Abril de 1941, as forças italianas pouco ou nada tinham progredido em território grego e tinham acumulado pesadas baixas e foi esta situação de impasse (humilhante para um regime que gostava de se ver como herdeiro do poderio imperial romano) que levou Hitler a desviar para sul parte das forças que se preparavam para invadir a URSS (Operação Barbarossa), desencadeando ataques contra a Jugoslávia e a Grécia. Estas operações (baptizadas como 25 e Marita, respectivamente) foram coroadas de sucesso e asseguraram ao Eixo o domínio do flanco sudeste da Europa, mas tiveram o efeito de atrasar nalgumas semanas a invasão da URSS, o que poderá ter contribuído decisivamente para que as forças alemãs da Operação Barbarossa fossem imobilizadas pela chegada do Inverno russo antes de terem atingido os seus objectivos.

Pimentel volta ao assunto Itália/Albânia pela terceira vez na página 445 e, apesar da sintaxe arrevesada, aproxima-se mais dos factos do que nas duas tentativas anteriores.

Pg. 132: “Em Setembro [de 1940] a Alemanha nazi ordenou o recenseamento dos judeus na zona ocupada francesa e, em Outubro, cerca de 300.000 empresas judaicas passaram a ser administradas por ‘arianos’”. Uma vez que em toda a França existiam, antes da guerra, cerca de 315.000 judeus, é muito improvável que, apesar do proverbial talento judeu para os negócios, existissem 300.000 empresas judaicas só na zona ocupada.

Pg. 141: Mencionam-se “três Einsatzgruppen actuando na retaguarda da Bielo-Rússia, nas repúblicas bálticas e na Ucrânia […] dirigidos, respectivamente, pelos comandantes da SS Jeckeln, Prutzmann, Korsemann e Bach-Zelewski”. São, “respectivamente”, quatro comandantes para três Einsatzgruppen em três regiões.

Os Einsatzgruppen em acção, em Zboriv, na Ucrânia, 5 de Julho de 1941: Os judeus são forçados a cavar as suas próprias sepulturas

Pg. 143: “Os nazis contavam com o apoio voluntário dos Hiwis ou Trawnikis (com o nome do local onde eram treinados), prisioneiros de guerra ucranianos, letões e lituanos anti-russos, anti-comunistas e anti-semitas, apelidados de Hilfswillige”.

Os Hilfswilliger (“auxiliares voluntários”) incluíam não só prisioneiros de guerra como civis e foram recrutados em todo o leste europeu ocupado pelos nazis e entre eles havia também russos (e até alemães étnicos, a quem costumavam ser confiados postos de chefia intermédios). Hiwi era a forma abreviada de Hilfswilliger; os Hiwi que foram sujeitos a um período de treino no campo de Trawniki, perto de Lublin, eram designados por Trawniki ou Trawnikimänner (homens de Trawniki).

Pg. 152-153: A secção intitula-se “O ‘fim’ da Operação T4 e a utilização dos ‘especialistas’ dos centros de morte”. Desde o início do livro, a Operação T4 foi várias vezes aludida mas não explicitada, como se fosse algo do conhecimento de todos os leitores; agora, na secção que (supostamente) trata do seu fim, dá-se notícia do seu início, em Outubro de 1939, e explica-se em que consistiu.

Pg. 164: A secção intitulada “O massacre de Odessa” menciona que o massacre de judeus em Babi Yar “foi ultrapassado em amplitude pelas chacinas de Bogdanovika e de Odessa, a partir de 16 de Outubro”.

E é tudo o que se fica a saber sobre o “massacre de Odessa”, pois o resto da secção trata de outros assuntos.

Pg. 165: Na secção intitulada “É selado o destino dos judeus, homens, mulheres e crianças”, lê-se que “Após o destino dos judeus adultos ter sido selado na reunião de dia 20 de Outubro, com a decisão do seu fuzilamento em massa devido a represálias contra a Resistência, foi a vez de se decidido o das mulheres, crianças e idosos”.

Que reunião foi esta de 20 de Outubro (de 1941?), onde teve lugar, quem esteve presente e quem tomou decisões não se sabe, pois a reunião não é mencionada nas páginas anteriores nem nas seguintes. E a que judeus diz respeito? Aos da Alemanha, da Polónia, de toda a Europa, da URSS? E que “Resistência” é esta? A francesa, a norueguesa, a polaca, a soviética? É difícil extrair daqui um sentido, mesmo que se presuma que Pimentel pretendia escrever “fuzilamento em massa como represália contra a Resistência”…

Pg. 165: “O diplomata Franz Rademacher, Judenreferat do Ministério dos Negócios Estrangeiros, afirmou […] que logo que fosse possível […], mulheres, crianças e velhos seriam deportados por via marítima para campos de recepção a leste”.

Em 1940, após a capitulação da França, Rademacher tinha proposto a deportação dos judeus para Madagáscar, por via marítima, ideia prontamente abandonada, por o domínio dos mares pela Royal Navy a tornar inviável; em 1941 o destino dos judeus fora redireccionado para a Europa de Leste, mas Rademacher parece ter-se mantido apegado à ideia de usar navios para a sua deportação…

Pg. 168: A 1 de Novembro de 1941, “a Organização Topf foi contratada para construir um grande crematório e as primeiras câmaras de gás”.

Onde, não se diz e é a única menção no livro à “Organização Topf”. Na verdade, tal organização não faz parte da história da II Guerra Mundial, embora esta registe a existência de uma Organização Todt, consórcio alemão de engenharia e construção civil e militar que empregava trabalho escravo, e de uma J.A. Topf und Söhne, empresa de engenharia alemã que se distinguiu na construção de crematórios para campos de extermínio e de concentração e que, embora não tenha construído câmaras de gás, instalou o sistema de exaustores nalgumas câmaras de Auschwitz.

Reconstrução do crematório I do campo de Auschwitz I

Pg. 173: “Em 16 de Fevereiro de 1943, a IKL da SS, futuro Amt D: Konzentrationslagerwesen do WVHA, redesenhou o campo de prisioneiros de guerra soviéticos de Lublin”.

Sim, há uma lista de siglas no final do livro, mas não haverá forma de poupar o leitor a trechos tão indigestos?

Pg. 173: “Na Primavera de 1942, dois milhões de prisioneiros de guerra soviéticos e milhões de outros cidadãos da URSS haviam sido assassinados ou tinham morrido de fome”. Umas linhas abaixo: “[…] em meados de 1942, diminuíram as selecções de prisioneiros de guerra soviéticos, 40.000 dos quais já haviam sido enviados para os campos de concentração e mortos”.

Pg. 179: Em Julho de 1942, as forças policiais francesas às ordens de Vichy entregaram às autoridades alemãs “10.000 judeus estrangeiros da ‘zona livre’. Depois, várias rusgas permitiram a captura de 30.000 judeus em toda a França e, na Paris ocupada, realizou-se em 16 e 17 de Julho de 1942, a do Vel’ d’Hiv (Velódromo de Inverno), onde ficaram encarcerados cerca de 13.000 judeus, entre os quais 6000 mulheres, 4135 crianças, a maioria nascidas em França, bem como 5000 jovens solteiros”.

Também aqui a aritmética não bate certo.

Pg. 179-80: “Após a ocupação nazi [da Holanda] foi nomeado novo Reichskommissariat fur [sic] die besetzten niederländischen Gebiete, Arthur Seyss-Inquart, que também criou na Holanda, tal como na Áustria, a Zentralstelle für judische Auswanderung”.

Sobre o que significam em português estas designações e quais as atribuições e actuação destes organismos, nada é dito. Pimentel dá mostras de dominar a língua alemã (uma qualidade útil, senão mesmo imprescindível, para se escrever sobre o Holocausto) e parece presumir que os seus leitores também o farão, pelo que não terá visto inconveniente em semear o livro com termos e nomes de organismos em alemão, sem serem acompanhados pela necessária tradução/elucidação.

Mas a verdade é que qualquer elucidação sobre o Reichskommissariat für die besetzten niederländischen Gebiete ou a Zentralstelle für judische Auswanderung seria vã, pois estes termos, como tantos outros que são despejados a eito no livro, não voltam a ser mencionados. A lógica que presidiu à redacção de Holocausto é meramente acumulativa.

Pg. 180: “Na URSS, entre 23 de Novembro e 2 de Fevereiro de 1943, tropas soviéticas contra-atacaram, cortando as linhas húngaras e romenas a norte e sudoeste de Stalingrado, bem como armadilhando o 6.º Exército alemão nessa cidade”.

Em inglês, “trap” significa “armadilha”, mas “to be trapped” significa “ser/ficar encurralado” e foi isso que aconteceu ao 6.º Exército em Stalingrado.

Pg. 181: “Após uma ofensiva alemã em Kursk, em 7 de Julho de 1943, os soviéticos responderiam militarmente à Wehrmacht”.

“Militarmente”? Seria de esperar que os soviéticos respondessem à Wehrmacht com poemas satíricos?

Pg. 181: Um dia após a rendição da Itália aos Aliados, a 8 de Setembro de 1943, “as tropas aliadas desembarcavam em Palermo, perto de Nápoles”.

As tropas aliadas tinham conquistado Palermo, na Sicília, a 22 de Julho, o desembarque perto de Nápoles a 8 de Setembro foi em Salerno.

Tropas aliadas desembarcam em Salerno, Setembro de 1943

Pg. 189: “Com o avanço das tropas soviéticas na Polónia ocupada [em 1944], ocorreram, às mãos da SS, evacuações nas marchas da morte de prisioneiros judeus”.

O que se pretende dizer é, provavelmente, que, à medida que as tropas soviéticas foram avançando através da Polónia, a SS foi evacuando os campos neste território com prisioneiros judeus, em marchas a pé que ficaram conhecidas como “marchas da morte”.

Pg. 191: Repete-se a argumentação sobre a distinção entre campos de concentração e “centre de mise à mort” que já fora exposta na pg. 26.

Pg. 197: Indica-se como data de abertura do campo de concentração (KL) de Varsóvia o ano de 1935, embora na pg. 201 se indique a data correcta de Julho de 1943.

Pg. 202: “Na Alemanha, alguns campos de concentração também serviriam para a morte de prisioneiros”.

É verdade e tal ambivalência já fora explicitada no livro antes, nomeadamente na página anterior, pelo que não se percebe que isto seja aqui introduzido como se de nova informação se tratasse.

Pg. 209: Em Bomlitz-Benefeld, um campo-satélite de Bergen-Belsen, “600 judias fabricavam pó explosivo”.

Este “pó explosivo” era provavelmente pólvora e era produzido numa unidade fabril da firma Elbia.

Pg. 220: “No final da Primavera de 1943, prisioneiros judeus completaram o processo de desexumação dos cadáveres de Belżec para os queimarem”.

O que foi feito na Primavera de 1943 em Belżec foi uma exumação dos cadáveres; “desexumação” não se sabe o que possa ser.

A equipa da SS encarregada do campo de extermínio de Belżec

Pg. 236-37: “Dado que era formado em Agronomia, Himmler estava interessado em observar [em Auschwitz] as actividades agrícolas na ‘zona de interesse’”.

É típico deste livro-depósito: deixa-se cair um termo, nunca antes utilizado e que não volta a surgir e não se dá sobre ele explicação alguma, gerando uma frase enigmática. O termo “zona de interesse” tem um significado específico no contexto do Holocausto: a Interessengebiet de Auschwitz era uma área de 40 Km2 nas zonas rurais circundantes de Auschwitz cuja população polaca foi removida pelos nazis para criar uma “terra-de-ninguém” que assegurasse “privacidade”  aos seus malignos afazeres, e que, mais tarde, sob a administração da SS, foi convertida para a exploração agro-pecuária, empregando trabalho-escravo dos campos. O termo foi apropriado por Martin Amis para título do seu (medíocre e obsceno) romance de 2014 sobre Auschwitz.

Pg. 268: A parte I do livro pretende dar uma perspectiva genérica do Holocausto, a parte II a perspectiva portuguesa. Todavia, no final da parte I, no capítulo que trata da criação de um tribunal internacional para julgar os crimes de guerra nazis, Pimentel tem um lapso e, subitamente, durante dois parágrafos caídos do céu, escreve na perspectiva portuguesa. No contexto narrativo do livro é descabido que sejamos postos a par da forma como Salazar soube, pelo embaixador de Portugal em Londres, da criação desse tribunal, pois Portugal nada teve a ver com esse organismo nem com os crimes que ele julgou. Pimentel coligiu, em décadas de investigação sobre o Estado Novo e sobre o Holocausto, uma imensa quantidade de informação, mas não sabe como seleccioná-la e ordená-la num discurso congruente.

Pg. 274: Em 1943, “os aliados receberam uma nova e importante informação acerca das actividades das SS e da polícia alemã nos territórios soviéticos, na sequência da queda em território britânico de um avião transportando […] um elemento da polícia alemã, o austríaco Robert Barth”.

O avião em questão não caiu em “território britânico”, caiu numa zona de Itália sob controlo das tropas britânicas.

Pg. 318-20: Na parte II surgem frequentemente trechos que nada têm a ver com a perspectiva portuguesa e que repetem aspectos genéricos da história da II Guerra Mundial e do Holocausto que ou já tinham sido apresentados na parte I ou que teriam sido muito úteis para compreender melhor a parte I. É também o caso de todo o trecho que vai da pg. 463 à 472.

Pg. 334: “Pairou, ao longo do conflito bélico, a ameaça de Portugal […] ser invadido tanto pela Alemanha como por Espanha, até porque o país vizinho esteve muito perto de declarar a beligerância, movido sobretudo pela ambição de um império no Norte de África”.

É verdade que Franco ambicionava um império no Norte de África, mas a invasão de Portugal em nada serviria este desígnio, uma vez que Portugal não detinha territórios nem influência no Norte de África.

Pg. 386-87: Depois de se dar conta de vários aspectos da entrada do Japão na guerra e das suas operações na Ásia-Pacífico, escreve-se: “Em 7 de Dezembro de 1941, ocorrera entretanto o ataque japonês a Pearl Harbor”.

Pimentel tem uma inclinação irreprimível para fornecer informação fora da ordem lógica.

Pg. 436: Sobre deportações de judeus para Leste: “O departamento de Calmeyer decidiu isentar 400 famílias, número depois reduzido para metade (201), constituídas por cerca de 160 pessoas”.

Como pode o número de pessoas ser inferior ao de famílias? É um prodígio digno do “mágico de Auschwitz”.

Pg. 484: “[…] a maioria dos comboios de deportados se dirigia para um campo perto de Katowice (Cracóvia, ou seja Auschwitz)”.

Katowice não é Cracóvia (cujo nome polaco é Kraków), são cidades distintas. Auschwitz (Oświecim, em polaco) fica perto de Cracóvia (80 Km) e mais perto ainda de Katowice (36 Km).

Auschwitz-Birkenau, Maio/Junho de 1944: Mulheres e crianças judias provenientes da Hungria são encaminhadas para a câmara de gás

Pg. 484: A “15 de Outubro [de 1944] o marechal Miklòz Horthy [regente da Hungria] anunciou na rádio que iria estabelecer um compromisso com os soviéticos e procurar negociar um armistício. O regente demitiu o governo de Sztójay, mas foi derrubado no próprio dia por um golpe de Estado perpetrado pelo Partido da Seta Cruz (Niylas), do fascista húngaro Ferenc Szálasi, por trás do qual estavam os nazis, em particular o chefe do golpe, o major Otto Skorzeny”.

Horthy tinha como primeiro nome Miklós e não Miklòz e era almirante e não marechal; o primeiro-ministro pró-nazi Döme Sztójay foi demitido a 29 de Agosto, não a 15 de Outubro, e foi substituído por Géza Lakatos. Horthy e Lakatos desenvolveram contactos com os soviéticos no sentido de negociar um Armistício, que foi anunciado ao povo húngaro na rádio por Horthy, a 15 de Outubro. Os alemães estavam cientes das manobras de Horthy e tinham planeado a Operação Panzerfaust para o caso de o regente “virar a casaca”: no mesmo dia 15, Horthy foi deposto por uma acção conjunta de tropas alemãs comandadas por Skorzeny e de milícias do Nyilaskeresztes Párt (ou NYKP, designado em português como Partido da Cruz Flechada, não “da Seta Cruz”), de Ferenc Szálas. Na página seguinte, Pimentel volta a designar o partido fascista Nyilaskeresztes por Niylas.

Budapeste, 15 ou 16 de Outubro de 1944: Tropas e tanques alemães estiveram não só “por trás” como na linha de frente do golpe de Estado contra Horthy

Pg. 490-495: As últimas seis páginas do capítulo “O caso dos judeus húngaros” nada têm a ver com a Hungria: tratam de “Refugiados em Portugal nos últimos anos de guerra” e de “Salazar e o final da guerra”.

Pg. 501: O Epílogo abre com a frase: “A 4 de Junho, tropas dos Aliados libertaram a cidade de Roma”. Falta indicar o ano – 1943.

Pg. 502: Quando, em Julho de 1944, o Exército Vermelho chegou ao campo de Majdanek, na Polónia, “milhares de soldados soviéticos observaram com os seus próprios olhos os crimes ali ocorridos”.

Em Majdanek, como em Auschwitz, os crimes não decorreram à vista dos soldados soviéticos, o que estes viram foram provas dos crimes que ali tinham sido cometidos.

Agosto de 1944: Incineração de cadáveres junto ao crematório V do campo de Auschwitz-Birkenau. Esta é uma das quatro únicas fotos que documentam os massacres ocorridos nos campos de extermínio; foram tiradas clandestinamente por membros dos Sonderkommando e o rolo foi enviado para fora do campo oculto num tubo de pasta dentífrica

Pg. 510-531: A secção do Epílogo intitulada “E em Portugal, quando e como se soube [do Holocausto]?”, apenas trata desse tema nas primeiras cinco páginas – a partir da pg. 514 até à pg. 531 o ponto de vista é, salvo breves trechos, global, não português.

Conclusão

O reparo feito imediatamente acima é só uma manifestação de um problema crónico que aflige o livro: Pimentel leu a literatura de referência e consultou os arquivos relevantes, está na posse de imensos factos e julga que tem uma história para contar, mas não sabe como fazê-lo e nem sequer tem a disciplina necessária para seguir a estrutura que delineou. O resultado é um monótono salmodiar de nomes de guetos e campos de extermínio, de altas patentes SS, de burocratas do III Reich, de rusgas, de transferências de prisioneiros, de abertura de campos, de expansão de campos, de encerramento de campos, de contagens de cadáveres, de que resulta não o esclarecimento mas o entorpecimento do leitor. E como a linguagem nem sempre prima pelo rigor, a imagem que se obtém é distorcida e confusa, como quando se olha através do fundo de uma garrafa.

A quem pretenda ficar informado sobre o Holocausto lendo um único livro, recomenda-se Holocausto: Uma nova história (Vogais), de Laurence Rees: não vai “dissipar todas as dúvidas sobre o Holocausto”, como promete o press-release do livro de Pimentel, mas é uma síntese clara e equilibrada e em que o rigor dos factos e da linguagem não implica o apagamento do elemento humano.