O Hospital de Santa Maria começou esta terça-feira a fazer testes serológicos, de deteção de anticorpos, a pacientes e aos seus profissionais de saúde, depois de os validar “internamente” para serem usados na unidade hospitalar — mas quem os faz deixa um alerta: hoje, ainda não é possível estimar que percentagem da população está imune a partir da população com anticorpos.
As discussões sobre a imunidade de grupo como solução para tentar travar a propagação do novo coronavírus nos países — permitindo a infeção da população saudável e protegendo apenas os grupos de risco — têm sido uma constante e, devido ao desgaste provocado pelo confinamento, acentuam-se até nas regiões que rejeitaram a ideia.
As respostas, porém, continuam a deixar mais dúvidas do que certezas: os especialistas de saúde ainda não estão certos de qual o teor de anticorpos necessário na população já infetada — tenha tido sintomas ou não — para evitar a reinfeção ou para evitar que venham a infetar outros.
Também ainda não se sabe se estes anticorpos, mesmo se em alto teor e suficientes para evitar reinfeções, garantem imunidade a longo prazo, até haver vacina (que, quando aparecer, também ainda ninguém sabe se conseguirá proteger a longo prazo ou se terá de ser administrada ciclicamente) ou só por um curto período. Ainda falta tempo, estudo e conhecimento deste novo vírus para ter a certeza de que quem foi infetado e gerou anticorpos está protegido, alertam os peritos.
Na população portuguesa, país onde o primeiro caso de infeção confirmada foi registado apenas no início de março — e onde, também por isso, a população recuperada é menor —, é ainda mais difícil avaliar quer a prevalência do vírus na população assintomática quer o valor clínico dos anticorpos em pacientes infetados que recuperaram, no que toca a proteger de reinfeções e contágio de outros no futuro.
Novos testes no Santa Maria, mas “ter anticorpos não é sinónimo de proteção”
Em Portugal, o Hospital de Santa Maria, em Lisboa, começou esta terça-feira a fazer os testes para monitorizar os anti-corpos entretanto gerados. A iniciativa foi explicada pelo diretor clínico do Centro Hospitalar Lisboa Norte. Em declarações à Rádio Observador, Luís Pinheiro ajudou a traduzir o que significa este início interno de testes serológicos. Por um lado, os testes serão apenas feitos por prescrição, “mediante solicitação do médico do hospital e mediante o contexto clínico se enquadrar ou não dentro das indicações determinadas”. Por outro, se o grau de fiabilidade é “elevadíssimo” na deteção de anticorpos, não se pode tirar daí conclusão alguma relativamente a uma eventual imunidade futura. “Existir anticorpos não é, neste momento, sinónimo de termos proteção. Não se sabe ainda se os anticorpos produzidos são protetores para uma eventual segunda infeção”, explica Luís Pinheiro.
Ou seja: mesmo com anticorpos gerados no sistema imunitário de alguém que tenha estado previamente infetado — tendo tido sintomas ou não, porque estes poderão ter sido inexistentes ou tão leves que parte da população não se tenha apercebido da doença —, não há certezas algumas quanto à proteção futura face a novas infeções. Porque o vírus é novo, não se sabe ainda nem o teor de anticorpos gerados necessário para garantir proteção nem a longevidade de permanência dos anticorpos no sistema imunitário. A imunidade e a duração dessa imunidade são, portanto, ainda impossíveis de garantir.
Para que servem, então, os testes que o Santa Maria começou a fazer? Também não são testes de diagnóstico — esses, diferentes, são feitos aos suspeitos de estarem infetados e servem para diagnosticar a doença —, mas podem trazer informações relevantes: por exemplo, saber se alguns profissionais de saúde terão contraído o vírus sem terem tido sintomas ou sem que os sintomas tenham ainda chegado (mas os anticorpos já) e perceber se, perante determinados níveis de anticorpos detetados, a reinfeção poderá ou não acontecer e com que frequência. Não é um teste de diagnóstico nem o substitui, mas complementa-o. E pode contribuir para o estudo científico do Sars-Cov-2.
Testes serológicos: “Existirem anticorpos não é sinónimo de proteção”
Quem será submetido ao teste? “Irão ser testados, depois de a infeção estar resolvida [depois de recuperados], os doentes que tenham tido um teste de diagnóstico positivo”, explica o diretor clínico do Centro Hospitalar Lisboa Norte. O objetivo é “fazer a monitorização da resposta imunológica e da sua evolução, correlacionando isso com a situação clínica do doente”.
Depois, poderá ser sempre feito um contributo para o conhecimento científico: se existirem resultados de testes que mostrem que pessoas reinfetadas tinham anticorpos, “temos de relacionar essa reinfeção com a quantidade desses mesmos anticorpos”, para perceber a partir de que quantidade de anticorpos se pode estar protegido. Este último ponto está ainda por apurar em todo o mundo.
A avaliação de quem deve ser ou não submetido a este teste serológico será clínica e interna e a informação tem de ser passada cuidadosamente, admite Luís Pinheiro. Uma interpretação errónea dos resultados “levaria a que as pessoas testadas achassem que por terem anticorpos estão protegidas e como tal não têm de ter cautela”: “Não podemos deixar que essa mensagem passe nesta fase porque o conhecimento científico não permite tirar essa conclusão”.
Os testes do Hospital de Santa Maria poderão, assim, detetar os níveis de anticorpos em doentes recuperados e perceber se já houve infeção em pessoas assintomáticas — como profissionais de saúde — ou com alta suspeita de infeção mas que testaram negativo. Mas a pergunta de um milhão de dólares permanece por responder: a produção de anticorpos e a existência de anticorpos já gerados no sangue de uma pessoa que foi infetada protege-a de uma próxima infeção ou não? E, se sim, por quanto tempo? A resposta pode ser frustrante mas ainda não há outra: “Nesta doença, ainda não se sabe”.
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Há pessoas infetadas que geram baixo teor de anticorpos, alerta especialista
Os testes serológicos que começaram a ser feitos esta terça-feira são testes quantitativos, que permitem detetar a existência de dois tipos de anticorpos no sangue: a imunoglobulidade M (IgM), detetada na fase aguda da doença (no caso da Covid-19, geralmente ao sétimo dia após sintomas); e a imunoglobulina G (IgG), que é produzida mais tarde, entre o 14.º e o 21.º dia depois dos primeiros sintomas de Covid-19 (que podem ser, em alguns casos, excecionalmente leves). A segunda, produzida mais tardiamente, é a que poderá ou não garantir imunidade futura que previna uma reinfeção. Falta determinar se o garante. E, caso o garanta, por quanto tempo.
Para Germano de Sousa, especialista em Patologia Clínica e fundador de um dos maiores grupos portugueses de laboratórios de análises clínicas, é bom que o Hospital de Santa Maria tenha começado a fazer este tipo de testes. “Faz sentido, especialmente sendo quantitativos porque as autoridades não recomendam outros — os testes qualitativos têm uma sensibilidade e especificidades muito, muito deficientes”.
Os testes serológicos feitos por esta altura não trazem ainda garantias de proteção imunitária, mas já têm alguma utilidade. “Eventualmente, pode-se entretanto começar a perceber que há uma percentagem de pessoas que teve a doença [e por isso tem anticorpos], mas que não teve sintomas” — e que percentagem é essa, desde logo. Tal não significa que seja possível detetar que população está imune a uma reinfeção, mas dados sobre a prevalência da doença na população podem vir a ser úteis no estudo da Covid-19 em Portugal. Até por se “começar a perceber a percentagem de doentes assintomáticos que esta doença dá” e que existem em Portugal.
O problema face a quaisquer garantias de proteção de reinfeções é que falta tempo para perceber o comportamento futuro dos sistemas imunitários na reação à infeção. “Não temos experiência suficiente deste vírus”, admite. No caso do tétano, a imunidade garantida é de 20 anos; na varíola, é “para vida”; este, “se for como os outros coronavírus, dá imunidade para uns meses” — e depois volta a ser possível a reinfeção. Mas ainda ninguém tem certezas.
“Como é que se vai comportar no futuro o vírus e o sistema imunológico? Não sabemos ainda”, refere o especialista em patologia clínica. Por isso, poderá ter de haver testes cíclicos de deteção de anticorpos no sangue para perceber se os níveis de imunoglobulina G (IgG), que pode ou não garantir imunidade e proteção futura, “mantêm-se constantes ou desaparecem”. Disto dependerá também a eficácia de qualquer vacina que dificilmente chegará antes da primavera ou verão de 2021: não está excluída a hipótese de não haver vacinas com eficácia a longo prazo na imunidade. Ou seja: as vacinas que aí vierem podem proteger a população apenas por um período curto de tempo, mediante a resposta imunológica a um vírus que é novo.
Há um problema adicional relativamente à imunidade e proteção da população face a futuras infeções ou a reinfeções com o novo coronavírus. “O sistema imunitário nem sempre responde como gostávamos que respondesse” e “há pessoas que tinham um resultado do teste positivo, estavam infetadas, e praticamente não tinham ainda imunoglobulina G”, aponta Germano de Sousa. Ou seja: há casos em que a IgG, que é produzida entre o 14.º e o 21.º dia pós-sintomas e que todos desejam que consiga garantir a proteção para evitar reinfeções, nem sequer é detetada em teor significativo em pacientes infetados. “Também houve casos reportados na China: pessoas que tiveram a doença, que foram diagnosticadas, em que se identificou o vírus mas em que o baixo teor de IgG foi visto como um problema”.
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A identificação de níveis altos de anticorpos e de imunoglobulina G em pessoas previamente infetadas não garante por si só imunidade, muito menos a longo prazo, mas pode abrir algumas possibilidades no combate à doença. Germano de Sousa levanta uma: “Se chegarmos à conclusão que há indivíduos que têm um altíssimo teor de anticorpos, nada garante que essas pessoas não possam vir a doar plasma, para percebermos se isso melhora ou não a condição de outros indivíduos que estejam internados em unidades de cuidados intensivos. Não há evidências de que não possa melhorar”.
Nesta fase, ainda ninguém pode avançar com números concretos sobre “o tal ponto de corte”, os níveis de IgG a partir dos quais “pode realmente haver imunidade”, refere Germano de Sousa. Já existem “hipóteses, feelings, wishful thinking, alguma experiência — mas pequena”. E falta tempo, estudo e uma população recuperada mais alargada e distendida nos meses.
Para a imunidade de grupo ser solução, infeções teriam de disparar
A certeza de que ainda não é possível garantir que quem é infetado e cujo sistema imunitário gera anticorpos não pode voltar a ser infetado — até num prazo de poucos meses —, tem sido corroborada por várias autoridades de saúde e é um argumento forte para quem defende que as medidas de contenção são, pelo menos numa fase inicial de investigação do vírus, preferíveis à tentativa de gerar imunidade de grupo com recurso a infeções na população mais saudável.
Em Portugal, a diretora-geral da Saúde, Graça Freitas, já se referira a isso há três semanas, quando tentou explicar que ninguém sabe nem o teor de anticorpos necessário para garantir imunidade nem qual o comportamento dos sistemas imunitários e dos anticorpos ao longo do tempo na prevenção de invenções. “Para o sarampo, nós sabemos. Para a rubéola, nós sabemos. Para a papeira, nós sabemos. Mas eu só posso saber para este novo coronavírus quando houver mais estudos. Ter anticorpos pode não ser suficiente para dizer que estou protegido, tem de haver um número suficientemente elevado de anticorpos para haver proteção”. Qual? Falta a resposta.
A incerteza cria um problema à ideia dos “certificados de imunidade” lançada pela Alemanha, que equaciona reintegrar mais rapidamente na vida normal a população que já gerou anticorpos ao novo coronavírus. Porém, como chegou a explicar também há três semanas a imunologista japonesa Akiko Iwasaki, que participou num debate em videoconferência promovido pela Fundação Calouste Gulbenkian, já ter anticorpos não significa nem que se está “protegido de uma reinfeção”, nem que “não se vai contagiar alguém”. Graça Freitas também insiste que “há vírus e bactérias que dão uma imunidade protetora duradoura”, em alguns casos “até para a vida”, mas em outros vírus e bactérias os anticorpos “decrescem ao longo do tempo”.
Já esta segunda-feira, foi a vez de a Organização Mundial de Saúde voltar a manifestar dúvidas quanto à eventual imunidade de grupo ser uma resposta eficaz à pandemia. Depois de no final da última semana ter explicado, através de um dos seus especialistas sanitários, Mike Ryan, que a percentagem de população que desenvolveu um elevado teor de anticorpos após infeção foi “muito baixa”, esta segunda-feira a OMS apresentou dados concretos: os primeiros estudos sugerem que em todo o mundo a população infetada que já desenvolveu anticorpos pode ser de apenas 2% ou 3%. Ou seja, seria necessário que o número de infeções (e, quase por certo consequentemente, de vítimas mortais) se multiplicasse brutalmente para que a imunidade de grupo travasse a pandemia.
Como explicou também recentemente a epidemiologista Mar Velaverde, do Instituto Suíço de Saúde Pública e Saúde Tropical, citada pelo jornal El Confidencial, “é preciso pelo menos 50% da população imune ao vírus para conferir imunidade de grupo e conseguir assim que a transmissão vá diminuindo na população”.
O que isto significa é que só o tempo trará resposta a algumas das questões que mais têm dividido os países que seguem estratégias sanitárias distintas, da contenção e confinamento à tentativa de criação de imunidade de grupo. Primeira: qual o teor de anticorpos que protege alguém da reinfeção e de contagiar outros? Segunda: qual a percentagem de doentes infetados que recuperam e geram um teor de anticorpos suficiente para evitar reinfeção e contágio a outros? Terceira: o que acontece ao longo do tempo aos anticorpos presentes no sangue — conseguem proteger de reinfeções a longo prazo (até haver vacina?) ou não?
Algumas respostas serão trazidas pelo tempo, mas em Portugal também é provável que venham a ser trazidas por um estudo que entrará na primeira fase, a fase piloto, nas próximas semanas. No início deste mês, a diretora-geral da Saúde, Graça Freitas, anunciou que o Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA) estava, “com a colaboração dos cientistas, dos académicos e da DGS” a entrar “numa fase piloto com outros países para ver qual é a altura” de iniciar a primeira fase de um estudo para tentar começar a perceber verdadeiramente o valor clínico dos anticorpos e o teor a partir do qual garantem imunidade.
A 9 de abril, Fernando Almeida, presidente do INSA, afirmou que no final de abril ou na primeira semana de maio seria realizado um “inquérito piloto”, com “uma população de 1700 pessoas”, para começar a perceber “os primeiros níveis de imunização, as primeiras proporções” e “para percebermos como funcionam os testes, como estão a funcionar na deteção de anticorpos e qual a logística que vai ser necessária” para um grande inquérito nacional, posteriormente (ou “mais para a frente”), quando “os nossos epidemiologistas assim o indicarem”, para “percebermos a imunidade de toda a população”.
O Observador tentou contactar o INSA para perceber em que fase de preparação está o projeto piloto inicial que deverá começar nas próximas semanas, mas não foi possível obter resposta até ao momento de publicação deste texto.
Com Aníbal Rebelo