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[Esta é a segunda parte de um trabalho do Observador sobre o impacto da inflação e do atual momento económico no setor da música ao vivo. Pode ler aqui a primeira parte, sobre a possível tradução desta crise nos concertos de bandas e artistas internacionais em Portugal]
Fazer um orçamento para poder dar um concerto tornou-se, neste 2022, uma dor de cabeça para artistas nacionais e agências e editoras portuguesas de música — mais ainda, se esse concerto for fora do país. Depois de dois anos de anemia na indústria musical, de digressões nacionais e internacionais impossibilitadas pela Covid-19, foi como se os artistas portugueses estivessem dentro de um carro a tentar acelerar apenas para, logo uns metros mais à frente, chocarem de frente com um muro.
Durante este ano, foram muitos os que tiveram dores de cabeça só de olhar para orçamentos. Um deles foi Pedro Trigueiro. O fundador da Arruada, agência que representa artistas como Dino D’Santiago, Mallu Magalhães, Branko e Carminho, começou a fazer contas aos custos de atuações dos seus artistas, dentro e fora de portas.
Trigueiro dá exemplos. Num dos casos, afigurava-se uma possibilidade interessante: um artista da Arruada ir tocar ao Brasil. E na altura de fazer contas, o aumento dos combustíveis e o impacto da inflação e da crise energética foram claramente visíveis e quantificáveis.
Os orçamentos foram mostrados ao Observador. Só o voo custava 2.500 euros — há três anos, em 2019, o mesmo voo custava 1.300 euros, quase metade, garante o fundador da Arruada ao Observador. E depois era preciso somar outras contas: uma estadia no Brasil que em 2019 custava 65 euros por noite tinha passado, três anos depois, a custar 95 euros por noite, um aumento de 46%. Para alimentação, se em 2019 o orçamento para o mesmo país previa 35 euros de gastos por dia, agora o custo previsto tinha de passar para 70 — exatamente o dobro, isto é, um aumento de 100%. Nos transfers diários, os 100 euros de 2019 já não chegavam, agora eram precisos 170 euros. E nos extras de cargas de voo, os 250 euros de 2019 tinham-se transformado em 350 euros em 2022.
Dentro da Europa, a matemática não era muito mais fácil. Para um outro artista da Arruada, foi feito este ano um orçamento para um concerto em Amesterdão. Preço do voo: 450 euros, bastante mais do que os 250 euros de 2019. Hotel: 140 euros, significativamente mais do que os 90 euros gastos há três anos. Alimentação: 120 euros por dia, quando em 2019 se gastara 70 euros. Nos transfers diários, o aumento foi ainda mais pesado: os 200 euros de 2019 transformaram-se em 400 euros em 2022. E o valor pago para “extras de carga” nos voos também cresceu: se em 2019 gastava-se 250 euros, três anos depois gastou-se 350.
Pedro Trigueiro não tem dúvidas: “Há um problema na indústria da música ao vivo. São os custos de combustível, aluguer de viaturas, voos, hotéis, inclusivamente os custos de consumo de coisas tão perecíveis como comida. Está tudo mais caro”.
A mesma ideia é partilhada por Hugo Ferreira, fundador da editora independente Omnichord, que aposta forte na circulação internacional dos seus artistas, como Surma e First Breath After Coma (“falta-nos ir a dois continentes, África e Oceânia; Europa já fomos a quase todos países, América fomos sobretudo ao Brasil e EUA, na Ásia fomos à Coreia do Sul, à China, a Macau e Hong Kong”): “É combustíveis, logística, alojamento, alimentação. Tudo é mais caro e encarece imenso uma digressão. Estimámos que na Europa tenha havido um aumento de custos de 25% a 30%. Para fora da Europa, o aumento foi ainda maior. Para irmos ao [festival] South by Southwest, nos EUA — não sabemos ainda se vamos —, a diferença está em 40% de aumento”.
Os efeitos sentem-se generalizadamente. E a procura de bilhetes do público, com a diminuição do poder de compra, também pode cair. A 16 de novembro, por exemplo, a banda portuguesa Moonspell anunciava o cancelamento de uma digressão por Reino Unido e Irlanda, alegando que não tinham tido “outra hipótese” e que esse cancelamento se devia à “enorme crise financeira que o Reino Unido, a Irlanda e a Europa estão a viver, que afeta as vendas no setor do entretenimento”. Mas o cancelamento é já o último recurso. Em muitos casos, digressões ou concertos fora do país já não chegam sequer a ser marcados.
Para perceber melhor o impacto da inflação, da crise energética e do aumento dos combustíveis nos concertos de artistas nacionais, quer em território português quer (sobretudo) fora do país, o Observador ouviu vários representantes de editoras, agências e produtoras de espectáculos.
A dificuldade para tocar fora do país já existia. Mas agravou-se (muito)
Pedro Trigueiro não tem dúvidas: “Era mais fácil tocar fora do país em 2019 do que agora, claramente”. Hoje, não existe “a mínima margem para derrapar” os custos previstos, quando se fala em concertos e digressões internacionais. “À mínima surpresa dá-te vontade de cancelar tudo e ir para casa, porque fica inviável“, acrescenta, dando um exemplo do impacto que o momento atual já teve em artistas da Arruada: “O Branko foi agora ao Brasil. Foi a São Paulo e ao Rio de Janeiro. Se calhar em 2019 não iria fazer só duas datas. Se calhar fazíamos Coritiba e Portalegre, iríamos mais longe. Mas nesta altura, como as coisas estão e como os custos estão, temos de ir só aos dois epicentros”.
Luís Pardelha alinha no mesmo tom. O principal responsável da Produtores Associados, empresa que organiza eventos, festivais e concertos e que representa e faz gestão de carreira de cerca de 20 artistas — a maioria dos quais portugueses (Aurea, Deejay Telio, GNR, Lena d’Água, A Garota Não, entre outros) mas que também gere a carreira em Portugal dos brasileiros Arnaldo Antunes e Anavitória — diz: “Estamos a falar de um aumento de custos transversal, sendo que o aumento de custo das passagens aéreas foi dos que mais aumentou. Foi até um dos primeiros a ter aumentado, ainda durante a pandemia, na verdade”.
Quem também não tem dúvidas sobre a dificuldade acrescida para os artistas portugueses viajarem para tocar fora do país, nesta fase, é Vasco Sacramento. O principal responsável pela agência Sons em Trânsito, que “até à pandemia, em média, produzia cerca de 150 espectáculos por ano fora de Portugal” e que gere artistas como António Zambujo, Gisela João, Carolina Deslandes e Pedro Abrunhosa (entre outros), também dá exemplos sobre como os custos mudaram face a 2019.
“Vamos imaginar um espectáculo na Alemanha, para o qual temos de transportar dez pessoas”, começa por exemplificar Vasco Sacramento. “Agora, pensemos que cada voo custava 200 euros — e agora custa 400”. Juntando as dez pessoas, só na viagem o custo salta de 2.000 para 4.000 euros. “E agora vamos imaginar que é preciso comprar mais três lugares extra para transportar instrumentos musicais. Depois há o custo da hotelaria, que não aumentou só em Portugal, aumentou no estrangeiro também. Tudo isso faz com que a viabilização de um espectáculo se torne mais difícil, porque não estamos a falar de cachês ilimitados”.
A referência ao custo de transporte de instrumentos, por Vasco Sacramento, não é um acaso. O responsável da Sons em Trânsito, que trabalha com a fadista Gisela João e trabalhou durante anos com Ana Moura, lembra: “As coisas estão muito mais difíceis, nomeadamente no fado, que é a nossa música mais exportável. As regras das companhias aéreas estão cada vez mais apertadas no que diz respeito ao transporte de instrumentos musicais. E o fado não se compadece… não se consegue alugar uma guitarra portuguesa ou uma viola de fado na Turquia ou nos EUA”.
Habituado a lidar diariamente com artistas portugueses e internacionais, e com as suas agências e representantes, Pedro Azevedo, programador do Musicbox, olha para o cenário atual com preocupação: “É importante pensar no que perdem os artistas nacionais com o encarecimento das viagens e das produções fora de Portugal. Os artistas portugueses têm tudo a perder, está tudo cada vez mais caro e não têm muita hipótese de chegar ao centro da Europa, ou sequer muitas vezes a Espanha para poder trabalhar“.
As dificuldades sentem-se também, porventura até particularmente, quando se fala de artistas indie nacionais, ainda à procura de projetarem a carreira. É o caso das bandas e dos artistas a solo da Omnichord Records. De há vários anos para cá, a editora de Leiria aposta forte nas digressões internacionais dos seus nomes emergentes porque “com os transportes e comunicações de hoje, não faz sentido pensarmos só no mercado português”, porque “para um produto diferenciado [do que é mais pop], o mercado português é sempre pequeno, em dois ou três meses corres as salas do país em que consegues tocar” e porque “um artista cresce imenso ao abrir horizontes e vivenciar e observar o que acontece lá fora”, explica o fundador, Hugo Ferreira.
O principal responsável da Omnichord explica que neste circuito mais alternativo as viagens tornaram-se também um problema. Com uma nuance: “Em 2015 ou 2016, assim que pensámos na via de internacionalização, a nossa aposta foi logo comprar uma carrinha de nove lugares mais carga. Não podíamos estar sujeitos a alugar carrinhas. Seria um custo absolutamente incomportável. A grande maioria de digressões contínuas que fizemos foram com a nossa carrinha, de outro modo seria muito difícil. É claro que com uma Surma consigo trabalhar mais em voos, porque são menos pessoas envolvidas. Com bandas maiores é absolutamente impossível. Se já era, agora ainda mais”.
“Tudo isto é ressaca da Covid”
As dificuldades mais recentemente somam-se a problemas anteriores: mais antigos, como a dificuldade estrutural e histórica para exportar a música portuguesa para o mundo, e mais recentes. A indústria musical chegou a 2022 depois de dois anos em stand-by devido à Covid-19. E isso teve efeitos prejudiciais que perduram no pós-pandemia, acreditam alguns dos agentes musicais, promotores e produtores de concertos ouvidos pelo Observador.
Hugo Ferreira, da Omnichord, habituado a lidar com o circuito indie europeu, nota: “Foram inúmeras as agências europeias que fizeram um downsizing [redução de estrutura] considerável. E era aí que se incluíam muitos projetos portugueses que estavam até em agências muito interessantes mas não eram os artistas do agente principal, eram artistas de algum agente associado. Muitos projetos nacionais trabalhavam com agentes que têm anos disto, que trabalham à comissão e que durante a pandemia deixaram de trabalhar. As agências deixaram de representar 60 bandas para ficarem só com as dez mais lucrativas. E os artistas portugueses sofreram com isso“.
Também Pedro Trigueiro, da Arruada, vê um efeito de “contaminação” da Covid-19 na indústria musical, notando uma mudança de comportamento do público que diz ver no pós-pandemia. “Tudo isto é ressaca da Covid”, aponta. “Ainda antes desta crise [económica] já se sentia que a procura de bilheteiras tinha decrescido. Ainda em setembro estive em Londres com agentes e promotores internacionais, sobretudo europeus, e toda a gente se queixava: as salas estavam a ir até 60% da lotação, houve uma fuga concreta de público”.
Para o fundador da Arruada, “as pessoas estão mais retraídas”, porque com a pandemia “perderam-se hábitos”. Agora “o público já está a voltar”, mas com um comportamento diferente, mesmo no “centro da Europa”: “As compras de bilhetes estão a fazer-se muito em cima da hora. As condicionantes e variáveis são muitas e a sensação de incerteza de quem compra bilhetes é maior”. Isto tem o seu impacto, acrescenta Trigueiro: “Quem faz o planeamento de uma digressão e não vê o cashflow à frente, não sabe se é ou não viável. Não dá para estar a um mês de um concerto em Amesterdão com vendas de 20% da sala. Mesmo que depois se venha a confirmar que as vendas chegam a 80%, não podes um mês antes ver a sala a 20% e dizer ‘falta um mês, é na boa, vamos na mesma’. Não vamos, não vai dar”.
Pedro Trigueiro dá um exemplo: “Em maio, ainda antes da crise dos combustíveis fósseis estalar para o nosso lado, fizemos Londres, Amesterdão e Bruxelas com a Mallu Magalhães. E os concertos esgotaram — mas mais em cima, com muito menos antecedência. Fomos na mesma. Eram ainda outros custos, que estavam mais ou menos antecipados, ainda dava. Agora…”
Paralelamente à “incerteza” criada pela Covid-19, e ao planeamento menos atempado das idas a concertos pelos espectadores (excetuando, claro, concertos em que a procura é tão grande que a compra de bilhete faz-se muito cedo), há outro dado que torna o comportamento do público menos previsível: a perda de poder de compra provocada pela inflação e pela crise energética.
É inevitável, entende Hugo Ferreira, que esta perda de poder de compra dos espectadores se reflita na programação das salas de concerto da Europa e do mundo: “O nível de vida está a baixar para toda a gente e, ao baixar o nível de vida, cresce uma insegurança nos promotores relativamente a contratações. Se vem uma banda de fora cujo projeto não é tão conhecido, quantas pessoas comprarão bilhetes?”
Acresce que “até 2019, na Europa, vivia-se uma fase de alguma confiança na curador, havia alguma vontade e disponibilidade das pessoas para dar tempo e dinheiro por novas propostas”, garante o fundador da Omnichord Records. Agora, o cenário é outro: “Usufruir de espectáculos musicais não é uma primeira necessidade para muita gente. E se o custo de vida aumenta, a aversão a arriscar cresce, porque o receio dos programadores também aumenta”. As bandas portuguesas, sem a notoriedade internacional dos grandes artistas pop, podem assim ser prejudicadas.
Os problemas estruturais da internacionalização: “Não há apoios, é curto”
O cenário atual pode ser de “tempestade perfeita”, mas há debilidades estruturais e históricas na capacidade de levar a música portuguesa ao mundo que não ajudam. E perante uma base mais frágil, as dificuldades recentes expõem ainda mais as tentativas de “furar” no estrangeiro. Tentativas essas que, ao longo dos anos, têm sido feitas em grande parte à margem do investimento público nesse crescimento fora de portas de uma indústria nacional.
Luís Pardelha, da Produtores Associados, resume: “Não tem havido nas últimas décadas uma política cultural de exportação da cultura portuguesa, não só da música. Há uma insuficiência de apoios [investimentos] para que essa internacionalização da música portuguesa possa acontecer, porque há outros países que têm políticas de apoio em que por exemplo as viagens são pagas. Cumprindo determinados padrões e em determinados enquadramentos, um artista [de outros países] consegue ter a viagem paga para a comitiva fazer uma digressão num determinado país. Esse investimento pode depois ter frutos, mesmo para o país. E é uma coisa que para nós é muito difícil de conseguir”.
Neste aspeto, artistas de países como França, Noruega ou Islândia têm vantagem, refere Luís Pardelha: “São exemplos de países que têm programas de apoio mais robustos. Mesmo o Brasil tem tido, ainda que irregularmente, programas de apoio à internacionalização e exportação dos seus artistas, da música e de outras disciplinas artísticas. Um promotor que esteja na dúvida entre contratar uma banda norueguesa e uma portuguesa, se a banda da Noruega tiver viagens pagas ou o hotel já pago, até pode achar a banda portuguesa interessante, mas… é uma batalha desigual“.
Não será necessariamente apenas pela fragilidade económica estrutural do país que o Estado português não investe mais em levar os artistas nacionais, neste caso músicos, a mostrarem-se fora de portas. Pelo menos é esta a crença de Pedro Trigueiro: “Há sempre uma grande preocupação com tudo o que tem a ver com o Estado, no sentido de que seja equitativo para toda a gente. Se algo vem do Estado, tem de chegar a todos. E isso é uma impossibilidade económica”.
O fundador da Arruada lamenta: “Não se cria uma estratégia como: se não dá para apoiar todos ao mesmo, vamos investir dando 20 slots de apoio por ano a 20 projetos. Concorria-se, tinham todos de se esgaçar e de esmifrar para tentar ganhar o apoio e do concurso saíam 20 projetos apoiados com capacidade de se impor internacionalmente. Nunca houve isto em Portugal”. Pedro Trigueiro acrescenta: “Fala-se muito no atual ‘som de Lisboa’. E temos dois sons de Lisboa, um mais eletrónico e outro do fado. Do ponto de vista estatal, ainda ninguém agarrou e disse: e exportar isto, levar isto em bando, em comunidade, para ‘rebentar’ com as cidades? Se calhar, era o melhor. Não estou a dizer que as cidades iam parar, Nova Iorque e Londres nunca vão parar, mas podia-se agitar as águas. Só que do ponto de vista estatal, nunca houve essa visão e este tipo de ações. Viram sempre os tipos da música como: eles desenrascam-se“.
Acresce que os artistas e as bandas que estão em Portugal, e que têm o seu público ancorado sobretudo neste país, partem com uma outra desvantagem face a artistas internacionais, lembrada por Luís Pardelha: “Num mercado tão pequeno como Portugal e com os preços de bilhetes que podemos ter em Portugal, não conseguimos gerar receitas que permitam ter uma bolsa de investimento para poder arriscar e internacionalizar uma banda”.
Dos Dead Combo aos Buraka Som Sistema: dois exemplos de tentativas de internacionalização
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Luís Pardelha, da Produtores Associados, dá um exemplo de tentativa de internacionalização com o qual trabalhou diretamente: “Trabalhámos durante quase 14 anos com os Dead Combo, que foi uma banda considerada altamente exportável e trabalhou até bastante no mercado internacional. Mas foi num mercado alternativo e obrigou sempre a investimento não só da Produtores Associados como dos próprios Dead Combo”. Pedro Trigueiro, que trabalhou de perto com Buraka Som Sistema, fala desse exemplo de sucesso: “Não sei explicar. Como é possível chegar a Bogotá e ter cinco mil pessoas só para os ver? É algo que demora muito, sai do pêlo. Não podes esperar por ninguém, tens de ser tu a fazer contactos, tens de ser um chato, gastar dinheiro a comprar voos. Tudo isso feito à margem do Estado, do investimento público”.
A distância de Portugal ao coração da Europa, também referida no especial anterior relativo à vinda de artistas internacionais a este país, também afeta quem quer fazer o percurso contrário, isto é, sair ao invés de entrar, nota o responsável da Produtores Associados: “Sermos um país mais periférico e estarmos um bocadinho mais distantes do centro da Europa torna mais difícil a um artista português fazer a mesma digressão de um artista do centro da Europa. Estamos menos próximos, os custos são maiores e a nossa liquidez para suportar custos é menor”.
Pedro Azevedo, diretor artístico do Musicbox, não tem dúvidas sobre a desvantagem competitiva dos artistas portugueses num mercado concorrencial: “Alguns países no centro da Europa terem gabinetes públicos de exportação da sua música com critérios de seleção de apoios, que obviamente não chegam a toda a gente (e há uns melhores do que outros, no sentido de oportunidades e verbas disponíveis), faz com que as bandas e artistas dessas proveniências tenham apoios robustos para fazer digressões internacionais. Nós não temos. E isso é uma desvantagem e é preocupante”.
Os produtores e promotores de espectáculos elogiam, quase unanimemente, o papel da Fundação GDA – Gestão dos Direitos dos Artistas e dos seus concursos de apoio, nomeadamente a digressões e a showcases internacionais. Mas “continua a ser curto”, dizem.
O impacto nos concertos dentro de portas: “Para artistas emergentes, é castrador”
Para os artistas nacionais, a inflação e os aumentos no preço da energia e dos combustíveis tiveram impacto sobretudo quando as viagens são maiores e os concertos são fora do país. Mas internamente, nos concertos dentro de portas, também se sentem mais dificuldades, ainda que não no mesmo grau e não para todos. Aqui “já entra mais a questão da escala”, nota Pedro Trigueiro, da Arruada.
O fundador da agência que gere a carreira de artistas como Carminho, Dino D’Santiago, Rita Vian e Pedro Mafama aponta: “A um artista que tem um cachê de dez mil euros talvez não toque tanto, mas quando falamos em cachês de artistas que rondam os três ou quatro mil euros, é também muito pesado porque todos os 100 euros a mais [de custos] têm repercussões muito difíceis no Excel final”.
Para Trigueiro, “os artistas à procura do seu lugar têm muito mais dificuldade nesta altura” para ir tocar a cidades portuguesas distantes da sua área de residência. “Os preços das portagens aumentaram, os preços dos combustíveis aumentaram, os preços do aluguer de viaturas aumentaram. E quem mais sofre com isso é o próprio artista, porque o cachê do técnico vai ter sempre de ser pago, o cachê do instrumentista vai ter de ser pago, o aluguer da carrinha vai ter de ser pago, os combustíveis e a comida vão sempre ter de ser pagos. No final, sobra menos é para o artista“.
Também Luís Pardelha, da Produtores Associados, nota: “Os rent-a-cars, por exemplo, subiram em média cerca de 15% num ano”. E Vasco Sacramento, da Sons em Trânsito, acrescenta: “Temos a sorte, que noutros aspetos é um problema, de termos um país pequeno, em que as distâncias entre sítios são menores. Isso torna as coisas relativamente mais contornáveis. Há um aumento de custos, mas não é uma situação tão delicada quanto quando estamos a falar de digressões internacionais. Os problemas também se verificam, mas não com a mesma dimensão”.
O principal responsável da agência que trabalha com António Zambujo, Gisela João e Pedro Abrunhosa, entre muitos outros, alude também a uma perda de recursos humanos com a pandemia: “Há muita gente que trabalhava nesta área, nomeadamente nas áreas mais técnicas, que não teve trabalho durante dois anos e foi trabalhar para outras atividades. Como 2022 foi um ano de regresso em força, tivemos uma grande falta de recursos humanos. E isso fez com que muitas atividades tenham tido custos bastante acrescidos”.
Se, como referia Pedro Trigueiro, com o aumento de custos “sobra menos para o artista”, aumentar os cachês é uma opção? Eventualmente, aumentando os bilhetes para que os artistas possam receber mais? Luís Pardelha, da Produtores Associados, desconfia dessa possibilidade: “Isto é uma equação: o custo de vida subiu, o poder económico das famílias diminuiu, vamos aumentar o bilhete? É uma fórmula que não vai bater certo”. Pedro Trigueiro, da Arruada, lembra outro obstáculo: “Os teatros têm os seus orçamentos aprovados. E no limite não podem aumentar o preço dos seus bilhetes sob pena de terem as suas salas vazias”.
Há um outro dado que asfixia a capacidade da economia dos espectáculos crescer em Portugal e dar mais fôlego económico aos artistas nacionais, nota Luís Pardelha: “O preço do bilhete médio cai dramaticamente quando saímos dos centros urbanos de Lisboa e Porto”.
Tudo somado, a situação atual é “castradora” para os artistas emergentes e em crescimento, aponta Pedro Trigueiro: “Quantos não estão a fazer contas de não poderem sair da sua zona, sejam de Lisboa, Porto ou de onde forem, porque não há orçamento para o fazer? Antigamente apresentava-se um cachê a um artista emergente do Porto para vir tocar a Lisboa e 800 euros se calhar compensava. Agora, ficas: mas 800 euros dá para quê? Só em consumos estás a gastar quase 300 entre portagens e combustíveis. É uma talhada muito grande, sobra-te pouco ou nada. Depois pagar a técnicos, pagar o aluguer de carrinha…”.
A quantidade de concertos que a economia da música exige pode trazer problemas de saúde mental?
As poucas receitas geradas por concertos de artistas nacionais têm também uma outra consequência negativa: a quantidade de espectáculos ao vivo que cada artista tem de dar aumentou também de forma muito significativa, sobretudo porque as receitas da música gravada (venda física ou streaming) são pouco compensatórias para os artistas. Pedro Trigueiro, por exemplo, assume esta realidade: “O ao vivo fica na frente de tudo isto, há uma obrigatoriedade de todos os artistas irem mais a jogo. Porque não dá para esperar por dinheiro de streamings ou de venda digital. Cada vez mais a música que se faz é um leitmotiv para voltar para a estrada”.
Vasco Sacramento alinha pelo mesmo tom: “Continuamos a não conseguir encontrar um modelo justo e equilibrado para remunerar a utilização dos conteúdos audiovisuais, nomeadamente da música gravada. A pirataria desapareceu da indústria musical enquanto fenómeno massivo e isso é bom. Mas as plataformas continuam a não conseguir, ou a não querer, é uma questão em aberto, remunerar os artistas e produtores de conteúdos de uma forma justa e equivalente ao investimento ali feito. Neste momento é praticamente impossível, em Portugal, um disco ser rentável, por exemplo”.
A necessidade de ganhar dinheiro através dos concertos faz com que possa haver “um excesso de espectáculos”, admite Vasco Sacramento. E dá um exemplo: “Por exemplo, o Tom Waits não faz espectáculos há anos e tem todo o direito de não os fazer. Tem todo o direito de se quiser gravar música nova, pô-la cá fora e não querer ir para a estrada. É um direito que lhe assiste. O que damos hoje como adquirido é que os artistas gravam discos para poderem ir para o estrada. Não deviam ter de ir obrigatoriamente. Pelo menos tanto”.
O responsável da Sons em Trânsito lembra ainda assim outro dado: não são apenas os artistas que precisam dos concertos para sobreviver, são também as suas estruturas. “Já tive esta conversa com vários artistas: há artistas que não têm um desejo muito grande de continuar em tournée mas sentem-se na obrigação de o fazer para que as pessoas que estão na sua estrutura e que têm uma situação económica menos vantajosa e mais frágil possam continuar a pagar as suas contas e sustentar as suas famílias”. Tudo isto, admite, “tem reflexo na quantidade de problemas de saúde mental que têm aparecido” neste setor artístico.