“Todas sabemos.” Esta metade do graffiti — que aparecia, uma e outra vez, nas paredes, para logo desaparecer apagado com lixívia —, era propositadamente escrita no feminino. “Todas sabemos.” Antes daquelas palavras, aparecia o nome de um homem, um professor conceituado, a estrela da instituição. E mesmo que atrás do seu nome apenas se lesse “fora”, o “todas sabemos” tinha um significado claro — todas as mulheres da instituição sabiam dos rumores de assédio moral e sexual que envolviam o nome do diretor emérito. A instituição é o Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra. O nome escrito na parede o de Boaventura de Sousa Santos. E se os escritos já não se leem, a publicação, em março, de um livro em inglês trouxe de volta a recordação das palavras que surgiram tantas vezes escritas em 2018.
“As paredes falaram quando mais ninguém podia.” É devido à memória desse graffiti que este é o título do texto onde três mulheres contam histórias de assédio sexual vividas na academia. Assinado por três investigadoras, uma delas portuguesa, o texto — um capítulo de um livro coletivo, escrito em inglês — conta as suas experiências, através de uma etnografia, com assédio sexual e moral numa instituição universitária por onde as três passaram.
Não há referências a nomes, mas o puzzle é fácil de montar. Falam do CES, como a própria instituição reconheceu, e a personagem central da história, o Star Professor (uma alusão ao seu estatuto de estrela dentro do meio académico) é Boaventura Sousa Santos, diretor emérito do centro de investigação.
Apesar das tentativas do Observador, não foi possível falar com o professor. Ao Diário de Notícias, Boaventura Sousa Santos disse reconhecer-se na personagem traçada no artigo, recusando todas as acusações de que o Star Professor é alvo.
Intitulado “Sexual Misconduct in Academia” (Má Conduta Sexual na Academia), o livro foi publicado pela conceituada Routledge, editora britânica especializada em livros académicos. O capítulo “The walls spoke when no one else would. Autoethnographic notes on sexual-power gatekeeping within avant-garde academia” é assinado por Lieselotte Viaene, Catarina Laranjeiro e Miye Nadya Tom.
Quinta-feira o texto já circulava no CES
A 31 de março, numa altura em que a aproximação das férias da Páscoa já se sentia em Portugal, o ebook é lançado. Tem 260 páginas, 12 capítulos e conta, na primeira pessoa, diversas histórias vividas dentro das comunidades académicas por alunos, funcionários e investigadores. O objetivo assumido é “aprender com essas experiências para informar uma ética do cuidado na universidade”.
O último capítulo, escrito por três antigas alunas e investigadoras do CES, é mais uma dessas histórias. Não foi automático, mas a pouco e pouco, o texto começou a circular entre a comunidade académica. Na quinta-feira passada, contou ao Observador um professor do CES, o texto circulava rapidamente nos grupos de Whatsapp e poucos seriam os que ainda não o tinham lido ou, pelo menos, ouvido falar do seu conteúdo. Entre segunda e terça-feira, começaram a surgir as primeiras publicações nas redes sociais. Miguel Vale de Almeida, antropólogo português que foi deputado à Assembleia da República, foi um dos primeiros.
O Centro de Estudos reagiu e fez um primeiro comunicado interno, mas rapidamente percebeu a dimensão do que se passava. Esta terça-feira divulgou uma nova nota no seu site, agora pública, onde dava conta de que estava a par do que dizia o texto, onde reconhecia que era do CES que ali se falava e de que o sucedido merecia uma investigação.
Sobre nomes, em resposta ao Observador, preferiu não falar. O comunicado “reflete as preocupações que neste momento concentram a atenção dos órgãos diretivos do CES: averiguar a ocorrência de eventuais falhas institucionais e/ou condutas inadequadas”. Isso será feito através da comissão independente “que está a ser constituída e ao trabalhar rapidamente na clarificação e melhoria dos instrumentos existentes para a prevenção e combate a todas as formas de assédio”.
Assim, a resposta assinada pela diretora executiva Rita Pais — questionada pelo Observador sobre os nomes dos docentes que estavam a ser avançados e comentados nas redes sociais — foi curta: “Não estamos neste momento a comentar aspetos que virão a ser, certamente, objeto de averiguação por parte da Comissão.” Mesmo sem comentar, a descrição feita no artigo cola-se ao perfil de Boaventura Sousa Santos, o que viria a ser reconhecido pelo próprio ao Diário de Notícias. Já à Sábado, o atual diretor do CES, António Sousa Ribeiro, defendeu que o artigo “é explícito em relação a situações e nomes”, reconhecendo que o “Star Professor” será Boaventura, assim como Bruno Sena Martins, professor da instituição, será outra das personagens: o “Aprendiz”.
Ao Expresso, Bruno Sena Martins refuta os relatos feitos pelas investigadoras.
Quanto à Universidade de Coimbra, reagiu ao Observador, demarcando-se da situação. “A Direção e a Presidência do Conselho Científico do CES remetem as respostas sobre o assunto para o comunicado do CES. Recordamos que o Centro de Estudos Sociais é uma associação privada sem fins lucrativos, estatutária e juridicamente independente da Universidade de Coimbra.”
O que querem as investigadoras? Abrir o debate
“Admitindo que a memória é a fonte primária da nossa análise, é essencial destacar que a verdade de qualquer etnografia não é estável, pois a memória é ativa, dinâmica e em constante mudança.” As investigadoras, apesar de assinarem com o seu nome, ao longo do capítulo escolhem não identificar que situação ocorreu com qual delas, frisando que se baseiam nas suas memórias para escrever o texto. Em vez disso, são identificadas como a antiga estudante internacional de doutoramento, a antiga investigadora pós-doutorada e a antiga estudante nacional de doutoramento.
“Adicionalmente, refletimos sobre situações de abuso institucional, que tendem a acontecer em ambientes privados sem testemunhas. Eles podem tornar-se conhecidos pelas vozes dos sobreviventes, naturalmente subjetivas, emocionais ou até mesmo ressentidas. Estamos a escrever a partir dessas vozes”, assumem as investigadoras.
O objetivo assumido, “compreender como a tradição de abuso sobreviveu desde os tempos do jus primae noctis [direito da primeira noite] até os dias atuais”, é encarado como uma tarefa demasiado complexa para um capítulo apenas, porém, assumem que a sua experiência “pode fornecer algumas pistas sobre por que motivo o mundo académico é um contexto tão fértil para esse tipo de comportamento abusivo”.
O que esperam é que os relatos contribuam para a abertura de um debate sobre responsabilidades institucionais, refletindo sobre conceitos como “a rede do murmúrio”, “porteiros do poder sexual”, “incesto académico” e “extrativismo intelectual e sexual”.
O Professor-Estrela, o Aprendiz, a Vigilante
“O Professor-Estrela, no centro do nosso capítulo, estabeleceu uma escola académica de pensamento, que apela a estudantes de doutoramento e investigadores juniores de todo o mundo. A instituição está sediada num país onde poucos financiamentos públicos são atribuídos à investigação científica mas, graças ao seu perfil internacional, conseguiu atrair grande parte dos financiamentos de investigação nacionais e internacionais, o que a fez crescer muito rapidamente”, escrevem as três mulheres.
Em seguida, explicam que o professor detinha o poder e o cargo principal na instituição, o que na prática “significa uma identificação pessoal entre ambos”. O professor era a instituição, a instituição era o professor. Por outro lado, muitos investigadores “trabalhavam em condições bastante precárias, o que os tornava vulneráveis a abusos de poder institucionais”.
Além do professor, defendem, havia duas figuras cruciais para entender a dinâmica de poder: o Aprendiz e a Vigilante, amigos íntimos do professor, sendo a Vigilante alguém que mantinha uma relação muito próxima (inclusive amorosa) com o professor. “O Aprendiz foi considerado por muitos como o braço direito intelectual do professor e o seu sucessor”, subindo rapidamente na sombra do professor. Era ele quem recebia os doutorados estrangeiros, estudantes e outros jovens investigadores. “Para aqueles que acabavam de chegar, ele aparecia como um investigador sénior inteligente, bem sucedido, atencioso e extremamente prestável.”
Já a Vigilante tinha responsabilidades académicas e institucionais importantes e era ela, em conjunto com o Aprendiz, que recebia quem chegava para trabalhar com o grupo do professor. “Faziam o papel de porteiros, ‘indivíduos que facilitam o acesso ao grupo… pessoas chave que nos deixam entrar, nos dão permissão, ou concedem acesso’ (O’Reilly 2009) para novos investigadores que desejassem envolver-se nas diversas atividades de pesquisa do grupo em torno do professor.”
Com o passar do tempo, as três mulheres dizem ter ganhado consciência de como essas relações pessoais moldaram as dinâmicas institucionais, incluindo a produção e reprodução do incesto académico. “Essa dinâmica permitiu que essas duas pessoas desempenhassem o papel de porteiro do poder sexual, onde em muitas situações é difícil traçar uma linha clara entre coerção e consentimento”, escrevem.
No entanto, nem sempre o professor estrela precisava destas duas personagens para abrir as portas. As três investigadoras relatam no artigo uma situação que aconteceu com uma colega, que depois de um incidente com o docente terá decidido deixar de estudar no CES e regressar ao seu país. “Ela apenas contou a outra colega o motivo que realmente a levou a mudar de país: o seu supervisor, o ‘Star Professor’, tocou-lhe num joelho, convidando-a a “aprofundar o relacionamento de ambos” como “troca” pelo seu apoio académico. Nessa época, o docente estaria já com cerca de 70 anos”.
A “regra não escrita” e a insinuação de “amizade com benefícios”
“Certa vez, o Aprendiz convidou os alunos para uma festa em sua casa. Rindo, disseram que ele provavelmente estava a planear uma orgia. Essa piada revela uma ambivalência: os seus alunos sentiam-se empoderados ao serem convidados no sentido de pertencerem ao círculo interno. Alguns até estavam cientes dos perigos, que negaram com humor”, contam no texto. Em conversas informais, relatam as investigadoras, o Aprendiz chegou a questionar relacionamentos fechados e monogâmicos, criando zonas cinzentas sobre como lidar com os limites profissionais quando havia expectativas implícitas de relações “com benefícios” com os seus orientandos.
“Convidar estudantes e jovens investigadores para espaços fora do centro tornava-os mais vulneráveis. Além disso, os jovens investigadores ficavam por vezes muito isolados, como foi o caso da antiga estudante internacional de doutoramento e da antiga investigadora pós-doutorada que tiveram conhecimento do comportamento habitual de aliciamento e extrativismo sexual do Aprendiz tarde demais.” Quando aconteciam abordagens sexuais não consensuais ou intimidadoras, quem se queixasse acabava por ser questionado — foi a casa dele porque queria.
“Depois da série anual de masterclasses do professor, uma regra não escrita era a de juntar todos os investigadores num restaurante específico”, e os recém-chegados eram encorajados a participar para se integrarem melhor. “O restaurante era emblemático pelas homenagens ao professor por estudantes de diferentes gerações. Era um ritual tirar fotos de grupo e individuais com o professor e recitar os seus poemas. Havia muita bebida e os jantares terminavam de madrugada com toda a gente a cantar ou a dançar”, descrevem.
Sobre situações mais concretas, a antiga investigadora pós-doutorada conta que foi pressionada a mudar um relatório onde descrevia supervisão inadequada e falta de suporte institucional para implementar a sua pesquisa. A sensação que teve é que não recebia o apoio necessário por não ter alinhado no “ser amiga/colega com benefícios, esquema que o Aprendiz havia insinuado”.
Os grafitti que começaram a aparecer mais tarde — e cujas fotos circularam — vieram despertar o que a investigadora tinha adormecido na sua cabeça. “Vários anos após ter sido assediada sexualmente pelo Aprendiz, a investigadora pós-doutorada, a viver em outro continente, decidiu denunciá-lo nas suas redes sociais, acusando-o explicitamente de ser um ‘predador sexual’. Também avisou no mesmo post que o Aprendiz “não era a voz do anti-racismo nem da justiça social” […] o post nas redes sociais foi do conhecimento de pessoas ligadas ao centro e começou a circular a grande velocidade. A investigadora recebeu e-mails do advogado do Aprendiz, um dos advogados do instituto, a exigir que apagasse a publicação. Se não a apagasse, o advogado do Aprendiz apresentaria uma queixa-crime por difamação. Sob pressão, acabou por apagar o post. Apesar disso, o Aprendiz fez uma queixa-crime contra ela”, descreve o texto.
Nunca foi convidada para nenhum encontro com o professor e uma pesquisa com a qual deveria colaborar foi descartada.
O Observador contactou as investigadoras que, em conjunto, decidiram não falar ou dar quaisquer entrevistas sobre o texto em causa.
[Já saiu: pode ouvir aqui o quinto episódio da série em podcast “O Sargento na Cela 7”. E ouça aqui o primeiro episódio, aqui o segundo episódio, aqui o terceiro episódio e aqui o quarto episódio. É a história de António Lobato, o português que mais tempo esteve preso na guerra em África.]