894kWh poupados com a
i

A opção Dark Mode permite-lhe poupar até 30% de bateria.

Reduza a sua pegada ecológica.
Saiba mais

GettyImages-527436078
i

Corbis via Getty Images

Corbis via Getty Images

O Professor-Estrela, o Aprendiz, a Vigilante. Como três investigadoras relatam os assédios que terão Boaventura Sousa Santos como peça-chave

Boaventura Sousa Santos diz reconhecer-se na personagem traçada no texto que denuncia casos de assédio, recusando acusações de que o 'Star Professor' é alvo. Universidade de Coimbra demarca-se do CES.

“Todas sabemos.” Esta metade do graffiti — que aparecia, uma e outra vez, nas paredes, para logo desaparecer apagado com lixívia —, era propositadamente escrita no feminino. “Todas sabemos.” Antes daquelas palavras, aparecia o nome de um homem, um professor conceituado, a estrela da instituição. E mesmo que atrás do seu nome apenas se lesse “fora”, o “todas sabemos” tinha um significado claro — todas as mulheres da instituição sabiam dos rumores de assédio moral e sexual que envolviam o nome do diretor emérito. A instituição é o Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra. O nome escrito na parede o de Boaventura de Sousa Santos. E se os escritos já não se leem, a publicação, em março, de um livro em inglês trouxe de volta a recordação das palavras que surgiram tantas vezes escritas em 2018.

“As paredes falaram quando mais ninguém podia.” É devido à memória desse graffiti que este é o título do texto onde três mulheres contam histórias de assédio sexual vividas na academia. Assinado por três investigadoras, uma delas portuguesa, o texto — um capítulo de um livro coletivo, escrito em inglês — conta as suas experiências, através de uma etnografia, com assédio sexual e moral numa instituição universitária por onde as três passaram.

Não há referências a nomes, mas o puzzle é fácil de montar. Falam do CES, como a própria instituição reconheceu, e a personagem central da história, o Star Professor (uma alusão ao seu estatuto de estrela dentro do meio académico) é Boaventura Sousa Santos, diretor emérito do centro de investigação.

Não há referências a nomes, mas o puzzle é fácil de montar. Falam do CES, como a própria instituição reconheceu, e a personagem central da história, o Star Professor (uma alusão ao seu estatuto de estrela dentro do meio académico) é Boaventura Sousa Santos, diretor emérito do centro de investigação.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Texto de três investigadoras leva Centro de Estudos Sociais a investigar denúncias de assédio sexual. Boaventura de Sousa Santos implicado

Apesar das tentativas do Observador, não foi possível falar com o professor. Ao Diário de Notícias, Boaventura Sousa Santos disse reconhecer-se na personagem traçada no artigo, recusando todas as acusações de que o Star Professor é alvo.

Boaventura Sousa Santos recusa todas as acusações de que o Star Professor é alvo no texto das investigadoras

antonio silva/LUSA

Intitulado “Sexual Misconduct in Academia” (Má Conduta Sexual na Academia), o livro foi publicado pela conceituada Routledge, editora britânica especializada em livros académicos. O capítulo “The walls spoke when no one else would. Autoethnographic notes on sexual-power gatekeeping within avant-garde academia” é assinado por Lieselotte Viaene, Catarina Laranjeiro e Miye Nadya Tom.

Quinta-feira o texto já circulava no CES

A 31 de março, numa altura em que a aproximação das férias da Páscoa já se sentia em Portugal, o ebook é lançado. Tem 260 páginas, 12 capítulos e conta, na primeira pessoa, diversas histórias vividas dentro das comunidades académicas por alunos, funcionários e investigadores. O objetivo assumido é “aprender com essas experiências para informar uma ética do cuidado na universidade”.

Na quinta-feira passada, contou ao Observador um professor do CES, o texto circulava rapidamente nos grupos de Whatsapp e poucos seriam os que ainda não o tinham lido ou, pelo menos, ouvido falar do seu conteúdo.

O último capítulo, escrito por três antigas alunas e investigadoras do CES, é mais uma dessas histórias. Não foi automático, mas a pouco e pouco, o texto começou a circular entre a comunidade académica. Na quinta-feira passada, contou ao Observador um professor do CES, o texto circulava rapidamente nos grupos de Whatsapp e poucos seriam os que ainda não o tinham lido ou, pelo menos, ouvido falar do seu conteúdo. Entre segunda e terça-feira, começaram a surgir as primeiras publicações nas redes sociais. Miguel Vale de Almeida, antropólogo português que foi deputado à Assembleia da República, foi um dos primeiros.

O Centro de Estudos reagiu e fez um primeiro comunicado interno, mas rapidamente percebeu a dimensão do que se passava. Esta terça-feira divulgou uma nova nota no seu site, agora pública, onde dava conta de que estava a par do que dizia o texto, onde reconhecia que era do CES que ali se falava e de que o sucedido merecia uma investigação.

Sobre nomes, em resposta ao Observador, preferiu não falar. O comunicado “reflete as preocupações que neste momento concentram a atenção dos órgãos diretivos do CES: averiguar a ocorrência de eventuais falhas institucionais e/ou condutas inadequadas”. Isso será feito através da comissão independente “que está a ser constituída e ao trabalhar rapidamente na clarificação e melhoria dos instrumentos existentes para a prevenção e combate a todas as formas de assédio”.

Atual diretor do CES, António Sousa Ribeiro, defende que o artigo “é explícito em relação a situações e nomes”, reconhecendo que o “Star Professor” será Boaventura, assim como Bruno Sena Martins, professor da instituição, será outra das personagens: o “Aprendiz”.

Assim, a resposta assinada pela diretora executiva Rita Pais — questionada pelo Observador sobre os nomes dos docentes que estavam a ser avançados e comentados nas redes sociais — foi curta: “Não estamos neste momento a comentar aspetos que virão a ser, certamente, objeto de averiguação por parte da Comissão.” Mesmo sem comentar, a descrição feita no artigo cola-se ao perfil de Boaventura Sousa Santos, o que viria a ser reconhecido pelo próprio ao Diário de Notícias. Já à Sábado, o atual diretor do CES, António Sousa Ribeiro, defendeu que o artigo “é explícito em relação a situações e nomes”, reconhecendo que o “Star Professor” será Boaventura, assim como Bruno Sena Martins, professor da instituição, será outra das personagens: o “Aprendiz”.

Ao Expresso, Bruno Sena Martins refuta os relatos feitos pelas investigadoras.

Quanto à Universidade de Coimbra, reagiu ao Observador, demarcando-se da situação. “A Direção e a Presidência do Conselho Científico do CES remetem as respostas sobre o assunto para o comunicado do CES. Recordamos que o Centro de Estudos Sociais é uma associação privada sem fins lucrativos, estatutária e juridicamente independente da Universidade de Coimbra.”

O que querem as investigadoras? Abrir o debate

“Admitindo que a memória é a fonte primária da nossa análise, é essencial destacar que a verdade de qualquer etnografia não é estável, pois a memória é ativa, dinâmica e em constante mudança.” As investigadoras, apesar de assinarem com o seu nome, ao longo do capítulo escolhem não identificar que situação ocorreu com qual delas, frisando que se baseiam nas suas memórias para escrever o texto. Em vez disso, são identificadas como a antiga estudante internacional de doutoramento, a antiga investigadora pós-doutorada e a antiga estudante nacional de doutoramento.

"Adicionalmente, refletimos sobre situações de abuso institucional, que tendem a acontecer em ambientes privados sem testemunhas. Eles podem tornar-se conhecidos pelas vozes dos sobreviventes, naturalmente subjetivas, emocionais ou até mesmo ressentidas. Estamos a escrever a partir dessas vozes", assumem as investigadoras.

“Adicionalmente, refletimos sobre situações de abuso institucional, que tendem a acontecer em ambientes privados sem testemunhas. Eles podem tornar-se conhecidos pelas vozes dos sobreviventes, naturalmente subjetivas, emocionais ou até mesmo ressentidas. Estamos a escrever a partir dessas vozes”, assumem as investigadoras.

O objetivo assumido, “compreender como a tradição de abuso sobreviveu desde os tempos do jus primae noctis [direito da primeira noite] até os dias atuais”, é encarado como uma tarefa demasiado complexa para um capítulo apenas, porém, assumem que a sua experiência “pode fornecer algumas pistas sobre por que motivo o mundo académico é um contexto tão fértil para esse tipo de comportamento abusivo”.

O que esperam é que os relatos contribuam para a abertura de um debate sobre responsabilidades institucionais, refletindo sobre conceitos como “a rede do murmúrio”, “porteiros do poder sexual”, “incesto académico” e “extrativismo intelectual e sexual”.

O Professor-Estrela, o Aprendiz, a Vigilante

“O Professor-Estrela, no centro do nosso capítulo, estabeleceu uma escola académica de pensamento, que apela a estudantes de doutoramento e investigadores juniores de todo o mundo. A instituição está sediada num país onde poucos financiamentos públicos são atribuídos à investigação científica mas, graças ao seu perfil internacional, conseguiu atrair grande parte dos financiamentos de investigação nacionais e internacionais, o que a fez crescer muito rapidamente”, escrevem as três mulheres.

"O Aprendiz foi considerado por muitos como o braço direito intelectual do professor e o seu sucessor", subindo rapidamente na sombra do professor. Era ele quem recebia os doutorados estrangeiros, estudantes e outros jovens investigadores.

Em seguida, explicam que o professor detinha o poder e o cargo principal na instituição, o que na prática “significa uma identificação pessoal entre ambos”. O professor era a instituição, a instituição era o professor. Por outro lado, muitos investigadores “trabalhavam em condições bastante precárias, o que os tornava vulneráveis ​​a abusos de poder institucionais”.

Além do professor, defendem, havia duas figuras cruciais para entender a dinâmica de poder: o Aprendiz e a Vigilante, amigos íntimos do professor, sendo a Vigilante alguém que mantinha uma relação muito próxima (inclusive amorosa) com o professor. “O Aprendiz foi considerado por muitos como o braço direito intelectual do professor e o seu sucessor”, subindo rapidamente na sombra do professor. Era ele quem recebia os doutorados estrangeiros, estudantes e outros jovens investigadores. “Para aqueles que acabavam de chegar, ele aparecia como um investigador sénior inteligente, bem sucedido, atencioso e extremamente prestável.”

Já a Vigilante tinha responsabilidades académicas e institucionais importantes e era ela, em conjunto com o Aprendiz, que recebia quem chegava para trabalhar com o grupo do professor. “Faziam o papel de porteiros, ‘indivíduos que facilitam o acesso ao grupo… pessoas chave que nos deixam entrar, nos dão permissão, ou concedem acesso’ (O’Reilly 2009) para novos investigadores que desejassem envolver-se nas diversas atividades de pesquisa do grupo em torno do professor.”

"Certa vez, o Aprendiz convidou os alunos para uma festa em sua casa. Rindo, disseram que ele provavelmente estava a planear uma orgia. Essa piada revela uma ambivalência: os seus alunos sentiam-se empoderados ao serem convidados no sentido de pertencerem ao círculo interno. Alguns até estavam cientes dos perigos, que negaram com humor", contam as investigadoras no texto.

Com o passar do tempo, as três mulheres dizem ter ganhado consciência de como essas relações pessoais moldaram as dinâmicas institucionais, incluindo a produção e reprodução do incesto académico. “Essa dinâmica permitiu que essas duas pessoas desempenhassem o papel de porteiro do poder sexual, onde em muitas situações é difícil traçar uma linha clara entre coerção e consentimento”, escrevem.

No entanto, nem sempre o professor estrela precisava destas duas personagens para abrir as portas. As três investigadoras relatam no artigo uma situação que aconteceu com uma colega, que depois de um incidente com o docente terá decidido deixar de estudar no CES e regressar ao seu país. “Ela apenas contou a outra colega o motivo que realmente a levou a mudar de país: o seu supervisor, o ‘Star Professor’, tocou-lhe num joelho, convidando-a a “aprofundar o relacionamento de ambos” como “troca” pelo seu apoio académico. Nessa época, o docente estaria já com cerca de 70 anos”.

A “regra não escrita” e a insinuação de “amizade com benefícios”

“Certa vez, o Aprendiz convidou os alunos para uma festa em sua casa. Rindo, disseram que ele provavelmente estava a planear uma orgia. Essa piada revela uma ambivalência: os seus alunos sentiam-se empoderados ao serem convidados no sentido de pertencerem ao círculo interno. Alguns até estavam cientes dos perigos, que negaram com humor”, contam no texto. Em conversas informais, relatam as investigadoras, o Aprendiz chegou a questionar relacionamentos fechados e monogâmicos, criando zonas cinzentas sobre como lidar com os limites profissionais quando havia expectativas implícitas de relações “com benefícios” com os seus orientandos.

“Convidar estudantes e jovens investigadores para espaços fora do centro tornava-os mais vulneráveis. Além disso, os jovens investigadores ficavam por vezes muito isolados, como foi o caso da antiga estudante internacional de doutoramento e da antiga investigadora pós-doutorada que tiveram conhecimento do comportamento habitual de aliciamento e extrativismo sexual do Aprendiz tarde demais.” Quando aconteciam abordagens sexuais não consensuais ou intimidadoras, quem se queixasse acabava por ser questionado — foi a casa dele porque queria.

A sensação que teve é que não recebia o apoio necessário por não ter alinhado no “ser amiga/colega com benefícios, esquema que o Aprendiz havia insinuado".

“Depois da série anual de masterclasses do professor, uma regra não escrita era a de juntar todos os investigadores num restaurante específico”, e os recém-chegados eram encorajados a participar para se integrarem melhor. “O restaurante era emblemático pelas homenagens ao professor por estudantes de diferentes gerações. Era um ritual tirar fotos de grupo e individuais com o professor e recitar os seus poemas. Havia muita bebida e os jantares terminavam de madrugada com toda a gente a cantar ou a dançar”, descrevem.

Sobre situações mais concretas, a antiga investigadora pós-doutorada conta que foi pressionada a mudar um relatório onde descrevia supervisão inadequada e falta de suporte institucional para implementar a sua pesquisa. A sensação que teve é que não recebia o apoio necessário por não ter alinhado no “ser amiga/colega com benefícios, esquema que o Aprendiz havia insinuado”.

Os grafitti que começaram a aparecer mais tarde — e cujas fotos circularam — vieram despertar o que a investigadora tinha adormecido na sua cabeça. “Vários anos após ter sido assediada sexualmente pelo Aprendiz, a investigadora pós-doutorada, a viver em outro continente, decidiu denunciá-lo nas suas redes sociais, acusando-o explicitamente de ser um ‘predador sexual’. Também avisou no mesmo post que o Aprendiz “não era a voz do anti-racismo nem da justiça social” […] o post nas redes sociais foi do conhecimento de pessoas ligadas ao centro e começou a circular a grande velocidade. A investigadora recebeu e-mails do advogado do Aprendiz, um dos advogados do instituto, a exigir que apagasse a publicação. Se não a apagasse, o advogado do Aprendiz apresentaria uma queixa-crime por difamação. Sob pressão, acabou por apagar o post. Apesar disso, o Aprendiz fez uma queixa-crime contra ela”, descreve o texto.

Nunca foi convidada para nenhum encontro com o professor e uma pesquisa com a qual deveria colaborar foi descartada.

O Observador contactou as investigadoras que, em conjunto, decidiram não falar ou dar quaisquer entrevistas sobre o texto em causa.

[Já saiu: pode ouvir aqui o quinto episódio da série em podcast “O Sargento na Cela 7”. E ouça aqui o primeiro episódio, aqui o segundo episódio, aqui o terceiro episódio e aqui o quarto episódio. É a história de António Lobato, o português que mais tempo esteve preso na guerra em África.]

Ofereça este artigo a um amigo

Enquanto assinante, tem para partilhar este mês.

A enviar artigo...

Artigo oferecido com sucesso

Ainda tem para partilhar este mês.

O seu amigo vai receber, nos próximos minutos, um e-mail com uma ligação para ler este artigo gratuitamente.

Ofereça até artigos por mês ao ser assinante do Observador

Partilhe os seus artigos preferidos com os seus amigos.
Quem recebe só precisa de iniciar a sessão na conta Observador e poderá ler o artigo, mesmo que não seja assinante.

Este artigo foi-lhe oferecido pelo nosso assinante . Assine o Observador hoje, e tenha acesso ilimitado a todo o nosso conteúdo. Veja aqui as suas opções.

Atingiu o limite de artigos que pode oferecer

Já ofereceu artigos este mês.
A partir de 1 de poderá oferecer mais artigos aos seus amigos.

Aconteceu um erro

Por favor tente mais tarde.

Atenção

Para ler este artigo grátis, registe-se gratuitamente no Observador com o mesmo email com o qual recebeu esta oferta.

Caso já tenha uma conta, faça login aqui.