[Este trabalho foi originalmente publicado a 17 de março de 2023 e é republicado agora a propósito da morte de António Lobato, conhecida esta sexta-feira.]
Na véspera do acidente de avião que lhe mudou a vida, António Lobato, piloto aviador da Força Aérea Portuguesa, então com 24 anos, quase não dormiu. Por volta das 22h, em vez de apagar as luzes e dormir, como fazia todas as noites, sentou-se na cama e deixou-se estar, de pernas cruzadas, a conversar com a mulher, Maria dos Anjos. Durante horas, falou, falou, falou.
Naquela noite de 21 de maio de 1963, ali sentado, na casa no centro de Bissau para onde se tinham mudado a seguir ao casamento, oito meses antes, António Lobato não tinha como saber que alguma coisa lhe ia acontecer.
[Ouça aqui o primeiro episódio da série em podcast “O Sargento na Cela 7”]
O acidente de avião que tinha sofrido na base aérea de Sintra, exatamente cinco anos antes, que o atirou para uma cama de hospital durante três meses e quase lhe custou as asas — porque os pais quiseram obrigá-lo a abandonar o curso de piloto — não veio sequer à baila.
Entrevistados várias vezes pelo Observador, na moradia onde seis décadas depois vivem, no concelho de Sintra, António e Maria dos Anjos, mais do que daquilo que falaram, recordam-se da forma inusitada como acabou essa longa conversa. “Eu disse-lhe: ‘Se algum dia acontecer alguma coisa que eu não chegue a casa à hora habitual, não te preocupes que eu hei-de voltar’”, conta António Lobato.
Naquele momento, concordam ambos, não havia nada que os fizesse pensar que alguma coisa poderia correr mal no dia seguinte. Mas a verdade é que a história do piloto, como já terá dado para perceber pela coincidência que quase o fez perder a vida duas vezes da mesma forma, exatamente no mesmo dia, com apenas cinco anos de diferença, tem pouco de trivial.
Como também não será difícil de intuir, no dia seguinte, António Lobato não regressou à casa da Rua Teixeira Pinto — nem às 16h, como era habitual, nem a qualquer outra hora. No momento em que, em choque, soube o que tinha acontecido, Maria dos Anjos nem se lembrou da promessa que o marido lhe tinha feito: deixou-se apenas estar, muda e sem conseguir dormir, apesar de encharcada em calmantes. Os militares que lhe deram a notícia disseram-lhe apenas que António Lobato tinha tido um acidente e que estava desaparecido. Mas ela não conseguiu evitar pensar no pior cenário possível: temia ter-se tornado viúva — com apenas 19 anos.
Naquele dia, 22 de maio de 1963, António Lobato subiu ao cockpit do seu avião para participar numa missão à Ilha de Como, na Guiné Bissau, onde a Força Aérea Portuguesa suspeitava que se escondiam guerrilheiros do PAIGC, o Partido para a Independência da Guiné e Cabo Verde.
Devia ter estado de folga, mas ofereceu-se para ocupar o lugar do piloto que faltava. O seu “asa”, o piloto com quem fez parelha, também não devia ter sido o que acabou a voar ao seu lado. O que faz com que o acidente que ambos sofreram, em teoria, não devesse igualmente ter estado no guião — mas, uma vez mais, a história de António Lobato é tudo menos convencional.
Naquela manhã, o seu avião foi baleado e o piloto foi forçado a aterrar de emergência, no meio de uma bolanha, um campo de arroz, em plena Guerra de África. Capturado pelo inimigo, com feridas graves que ainda hoje lhe marcam a fisionomia, caminhou longamente até chegarem ao país vizinho, a Guiné Conacri, onde o partido fundado por Amílcar Cabral tinha as suas principais bases.
Foi lá, quase sempre na cadeia de Kindia, a pouco mais de 100 quilómetros da capital, que foi mantido prisioneiro durante sete anos e meio, certos também — capturado a 22 de maio de 1963, só seria libertado na madrugada de 22 de novembro de 1970, já António de Oliveira Salazar tinha sido substituído por Marcello Caetano na liderança do Estado Novo, mas ainda durava a guerra, que só haveria de ter fim depois da revolução de 1974.
Uma operação “no limbo”, mais de 50 anos depois
Ninguém como ele esteve tanto tempo em cativeiro ao longo dos 14 anos que durou a Guerra de África. Foi para o libertar, a ele e aos outros 25 militares portugueses capturados pelo PAIGC ao longo do conflito, que em novembro de 1970 Portugal empreendeu uma das mais secretas operações da sua história, a obscura Mar Verde, que o governo do Estado Novo nunca admitiu que tivesse existido.
Conduzida por Guilherme de Alpoim Calvão, um dos mais condecorados oficiais das Forças Armadas Portuguesas durante o Estado Novo, a operação, cujos objetivos não se esgotavam no resgate dos prisioneiros (já lá iremos), foi supervisionada por António de Spínola, então governador da Guiné Bissau, e aprovada à última hora por Marcello Caetano.
Ainda hoje, mais de 50 anos depois de ter tido lugar — e de ter levado à condenação imediata de Portugal nas Nações Unidas —, o Governo português continua a não saber como tratar a operação, que falhou os objetivos maiores: capturar Amílcar Cabral e os restantes líderes do PAIGC e depor Sekou Touré, o homem que em 1958 conduziu a Guiné Conacri à independência para transformar o país numa ditadura marxista sangrenta.
Questionado pelo Observador, o Ministério da Defesa não foi capaz de esclarecer as dúvidas sobre se a Mar Verde continua a não ser oficialmente reconhecida pelo Governo. Isto apesar de os poucos documentos existentes sobre a operação terem sido desclassificados já depois de 2000 — o processo oficial, admitiu o próprio Spínola, em 1989, ao Centro de Estudos das Campanhas Africanas, “foi destruído” —, e apesar de Alpoim Calvão, que na primavera de 1975 ajudou a fundar 0 Movimento Democrático de Libertação de Portugal (MDLP), de extrema-direita, ter escrito um livro a detalhar tudo o que aconteceu.
“Depois do 25 de Abril, a operação nunca foi reconhecida pelo governo português. E mesmo hoje. Há não muito tempo o nosso primeiro-ministro pediu desculpa em Moçambique pelo massacre de Wiryamu. Mas, até hoje, nenhum governo português pediu desculpa por ter ido à Guiné-Conacri invadir o país. Portanto, ainda continua num certo limbo”, analisa, em entrevista ao Observador José Matos, investigador, especialista na Guerra de África e autor de “Ataque a Conacry, História de um Golpe Falhado”, editado em dezembro de 2020.
Uma história de guerra e de amor impossível (em que até o Papa Paulo VI entra)
António Lourenço de Sousa Lobato nasceu a 11 de março de 1938 em Sante, uma pequena aldeia minhota, no concelho de Melgaço, filho único do dono de uma mercearia e de uma doméstica.
É dele a história do novo podcast do Observador, “O Sargento na Cela 7”— vai de Braga, para onde se mudou sozinho com apenas 10 anos e onde se apaixonou pelos aviões, até ao dia em que regressou à vida normal, com especial ênfase nos sete anos e meio que passou em cativeiro, numa prisão com condições sub-humanas e onde quase todos os dias morria alguém.
Mas não só. Esta série em podcast, para ouvir em seis episódios, conta também a história do amor impossível entre António Lobato e Maria dos Anjos, a estudante do Magistério Primário que conheceu em 1960 em Aveiro, já depois de ter tirado o brevet e de ser nomeado instrutor de voo, e com quem finalmente conseguiu casar escassos oito meses antes de ser capturado — e que ainda hoje é sua mulher.
“O Sargento na Cela 7” conta ainda as histórias dos homens que se cruzaram com Lobato, um dos dois primeiros pilotos da Força Aérea Portuguesa a chegar a Bissau, numa altura em que não havia lá nada; nem base, nem aviões, nem ordens, nem superiores. “Nós fomos para a Guiné e não havia nada. A Força Aérea não tinha nada, tinha lá uma pessoa. Vamos para lá para começar a guerra. Não havia aviões, não havia nada! Nem base, nem coisa nenhuma. As coisas eram feitas assim um bocado no joelho. Resolveram começar a mandar gente para a Guiné: ‘Pronto, vai!’”, recorda o antigo piloto, agora com 84 anos.
Quando Geraldino Marques Contino, o operador de criptologia com um problema de atitude que foi capturado pelo PAIGC na primeira e única missão em que participou, chegou ao país, Lobato já estava em Kindia há quase três anos. Conheceram-se não nessa cadeia, mas na casa-prisão do PAIGC, em Conacri, para onde o piloto foi enviado depois de uma das muitas tentativas de fuga que fez ao longo dos anos de cativeiro.
Foram ambos libertados pela operação Mar Verde, a 22 de novembro de 1970 — mas se não tivesse saído nesse dia, Dino, como é conhecido, teria voltado para casa de qualquer forma, não muito tempo depois. Foi o próprio Papa Paulo VI, por intermédio do seu secretário, quem intercedeu por ele, junto do arcebispo de Conacri, que por sua vez escreveu a Amílcar Cabral.
“Quando foi a Mar Verde já tinha sido informado de que ia ser libertado no Natal. Todos os anos libertavam prisioneiros, o Cabral chamou-me e disse-me. Nessa altura não percebi porquê, eu até era dos mais rufias”, conta Geraldino, hoje com 77 anos, ao Observador, exibindo as cópias das cartas que na altura foram trocadas, sobre si, entre estes três interlocutores improváveis.
Fugir ou não fugir? Depende
Por mais rufia que fosse, Dino, que esteve preso na Guiné Conacri durante três anos, garante que nunca pensou em fugir — “Fugir? Eu?! Não! Fugir para onde?”, ri-se, quando o Observador lhe coloca a questão. “Para muita gente aquilo foi dramático, mas eu procurava sempre aligeirar a situação. Porque nós não tratávamos assim os prisioneiros do PAIGC e eles sabiam disso. Nunca ninguém nos bateu para saber nada”, explica, garantindo que ao longo de todo o cativeiro nunca foi maltratado pelos guerrilheiros — versão que tanto António Lobato como João Neto Vaz, companheiro de cárcere e de fuga do piloto, confirmam. Apesar de terem sido mantidos presos durante anos e em condições miseráveis, os três garantem que nunca foram torturados.
O que não significa que António Lobato não tenha tido, praticamente desde a primeira hora ao longo dos 90 meses que passou em cativeiro, outra coisa em mente senão fugir. Só conseguiu fazê-lo quando se juntou, em Kindia, com António Júlio Rosa — nada menos do que o alferes com quem Dino foi apanhado pelo PAIGC, em Bissassema —, e João Neto Vaz, agora com 78 anos, que recebe o Observador na casa onde mora, sozinho, numa pequena aldeia perto de Minde, com vista para a serra de Mira de Aire.
Foi justamente por ter tentado fugir da casa-prisão de Conacri que foi transferido para Kindia, juntamente com Júlio Rosa — apenas para uns tempos depois estarem, já com António Lobato, a fazer o caminho inverso, por terem conseguido evadir-se daquela prisão de alta segurança, sem que ninguém tivesse dado por nada.
“Um gajo quando está preso só pensa em fugir”, ri-se e encolhe os ombros, para logo a seguir se acinzentar e deixar atormentar pelas outras memórias desses anos de guerra. “Falar é chato, entra muito cá dentro. Mas quantas horas passo eu nisso? Quantas horas?”, emociona-se Vaz, a quem os pais, na altura, chegaram a fazer o funeral, tantos foram os meses que passaram sem qualquer notícia sua.
“Quer queiras quer não, não haverá gajo nenhum que não venha da Guiné ou com um sentimento de saudade por certas coisas ou de revolta contra ele próprio… Mas nós é que fomos para lá, eles já lá estavam. Essa é que é a parte chata da questão”, diz, para depois recordar as atrocidades da guerra que continuam a não lhe sair da cabeça.
Algumas são tão violentas e tão impronunciáveis que só se atreve a revisitá-las depois de se assegurar que o gravador está mesmo desligado. “Aquilo depois de te suceder uma vez a ti, duas, três, quatro, cinco, a cabeça falha… A cabeça falha…”
Da ideia da Mar Verde às “últimas salvas do Império”
O plano da operação Mar Verde incluía a Frente Nacional de Libertação da Guiné (FNLG), que anos antes tinha recorrido ao governo português para pedir ajuda para derrubar o ditador Sekou Touré. Um dos objetivos era fazer um golpe de Estado e empossar um novo governo na Guiné Conacri, que fosse favorável a Portugal e viesse a expulsar o PAIGC do país.
Durante meses, centenas de dissidentes da FNLG foram treinados por militares portugueses escolhidos a dedo — Marcelino da Mata, um dos mais lendários e controversos comandos da guerra em África, foi um deles.
Tudo aconteceu no mais completo secretismo e na remota ilha de Soga, no arquipélago guineense dos Bijagós, onde os portugueses construíram um aquartelamento, onde até uma espécie de bordel de campanha montaram, com mulheres trazidas de propósito do bairro do Copilom, em Bissau.
Até poucas horas antes da partida, nem os militares portugueses que estavam a dar instrução na ilha, nem os comandos e fuzileiros que entretanto chegaram em lanchas, para se juntarem à força de dissidentes, sabiam o que estavam ali a fazer. Aliás, nem os comandantes das embarcações estavam ao corrente. “Só na véspera ou na antevéspera da partida é que o Calvão convoca os comandantes para explicar o que se vai passar”, recorda ao Observador Luís Costa Correia, o comandante do único navio que teve de acostar em Conacri na madrugada de 22 de novembro de 1970.
A bordo da “Montante”, Costa Correia levava os homens que o governo português tinha escolhido para ocuparem o poder na Guiné Conacri. Thierno Diallo, o militar mais graduado da FNLG e o homem eleito para substituir o Presidente Sekou Touré até que fosse possível convocar eleições, era um deles. Assim que ficou ao corrente do plano, contou ao Observador Bilguissa Diallo, sua filha, manifestou reservas e insistiu com Spínola para que lhe fizesse alterações. “E o Spínola disse-lhe: ‘Não, não é possível’. E perguntou-lhe: ‘Está com medo de ir libertar o seu país?’ E o meu pai, aí, disse: ‘Eu vou. Estou aqui. Vou. Mas acho que, assim, não vai resultar’.”
Em traços largos, foi isso mesmo. Depois de uma madrugada de intensos combates, de objetivos conseguidos e de alvos falhados, a frota comandada por Alpoim Calvão, que fez de tudo para dissimular a sua origem — até os cigarros que os militares levaram para terra eram guineanos e as fardas usadas iguais aos do exército da Guiné Conacri —, acabou por abandonar a capital do país, apenas com um grande objetivo alcançado.
Porque foi a operação que permitiu pôr fim ao mais longo cativeiro, o de António Lobato, “O Sargento na Cela 7” é também a história da Mar Verde — e de todos os episódios que a compõem, desde a primeira ideia até “à última salva do Império”, ironicamente disparada por ordem do comandante Costa Correia, outro dos homens que tinha manifestado grandes reservas no que diz respeito à operação.
Quando foi feito prisioneiro pelo PAIGC, o piloto António Lobato tinha 24 anos. Quando voltou a Portugal e pôde abraçar novamente Maria dos Anjos, tinha 32. Agora, que aceitou revisitar a sua história, António Lobato tem 84. Continua a dizer que a maior sensação de liberdade que conhece é voar.
“O Sargento na Cela 7” é uma série com seis episódios para ouvir no site do Observador, na Rádio Observador e também nas habituais plataformas de podcast e no Youtube. O guião e as entrevistas são de João Santos Duarte e Tânia Pereirinha. A sonorização e pós-produção áudio são de Diogo Casinha.