Se alguém é vigiado pelos serviços secretos, se os seus planos são constantemente castrados, se é assediado e perseguido, o que faz? Ou luta contra a própria ambição e sonhos e remedeia-se com uma vida sem levantar ondas; ou junta-se àquele que era o inimigo para poder usar as ferramentas a seu favor. Foi pelo menos essa a lógica que Karel Koecher usou quando decidiu colaborar com os serviços secretos checoslovacos nos anos 60.
De repente, estava nos EUA a pedir asilo, juntamente com a mulher, Hana — como se estivesse a fugir ao comunismo. Daí até construir uma carreira académica e se infiltrar na CIA foi uma viagem alucinante, agora descrita no livro O Último Homem Honesto (da Bertrand Editora), de Benjamin Cunningham.
O autor começou a ouvir histórias aleatórias quando era jornalista em Praga, República Checa. Rapidamente foi descobrindo mais detalhes que o fascinaram, como o facto de Koecher ter passado no teste do polígrafo para entrar na CIA quando já era espião ou como, ao ser detido anos mais tarde, conseguiu convencer Ronald Regan e Mikhail Gorbachev a ser trocado pelo mais famoso dissidente daquela época.
Durante as duas décadas que viveu nos EUA, passou informações aos soviéticos e sabotou as tentativas americanas de arranjarem espiões na América Latina. A mulher, Hana, passava informações mas não era uma agente ativa. Movimentava-se no circuito dos diamantes e na elite de Nova Iorque — com direito a festas de swing e cocaína.
Quanto a Karel Koecher, a curva nem sempre foi ascendente. Os soviéticos começaram a suspeitar dele porque alguém a viver tanto tempo fora rapidamente podia ter sido recrutado do outro lado e instalou-se o jogo de “quem está a enganar quem?”. Acabou preso pelo FBI nos anos 80 e mandado de volta para a Checoslováquia — onde nunca teve o reconhecimento que achava merecer.
Aos 89 anos, vive com a mulher nos arredores de Praga e aceitou contar a sua história ao jornalista Benjamin Cunningham para um artigo publicado no The Guardian em 2016. As entrevistas e os milhares de documentos analisados deram ao jornalista norte-americano muito mais material, nascendo assim o livro. O autor explicou ao Observador como foi reconstruir os acontecimentos do espião que operou durante a Guerra Fria e o que teve o próprio Karel Koecher a dizer de O Último Homem Honesto.
Estava a trabalhar em Praga, República Checa, quando ouviu falar de Karel Koecher pela primeira vez. Nessa altura a história de um espião na Guerra Fria era quase como um mito?
Sim, ele era como um mito urbano. Ouvia bocados da história aqui e ali. Quando comecei realmente a pesquisar, há uns sete anos, era para um artigo do The Guardian com umas cinco mil palavras. Eu vivia em Praga há uns seis ou sete anos e conhecia pessoas, tinha alguns recursos e pensei que podia encontrar este tipo. Ele não vivia escondido, mas também não era uma figura pública. Fiz umas chamadas, arranjei o email dele e começámos a encontrar-nos.
Foi a casa dele?
Sim, numa pequena localidade nos arredores de Praga. Já era jornalista há tempo suficiente para reconhecer uma boa história, portanto percebi desde o primeiro dia que aquilo podia ser maior do que um artigo. Porém, foi um processo longo. Não diria que tive de ganhar a confiança dele, mas foi preciso desenvolver algum tipo de diálogo.
Ele estava cético em falar consigo?
Foi uma mistura. É um homem interessante, cheio de camadas, e foi tramado demasiadas vezes na vida. As versões que fui ouvindo davam-lhe má reputação, acho que ele sentia que havia muita coisa distorcida e tinha o desejo de esclarecer, contar a versão dele. Nesse sentido, estava disposto a falar. Ao mesmo tempo, ele tem imensa auto-estima e acho que está convencido de que numa conversa cara a cara consegue dar-nos a volta, digamos assim. Além disso, está mais velho agora e penso que se sentia um pouco esquecido. Portanto, haver alguém interessado na história dele também fez com que estivesse disponível.
Como é que se entrevista e se filtra o que é dito por alguém que viveu a vida inteira como espião?
O Karel é muito inteligente. Ele enquadra a história de uma forma intencional. Entrevistei vários agentes do FBI que estiveram envolvidos na detenção dele [nos anos 80]. Tanto uns como os outros dizem coisas que não são verdade. Então, tinha de tentar perceber se aquela pessoa estava a mentir-me de propósito para me convencer de algo ou se já não se lembrava corretamente de algo que aconteceu há 40 anos. Também acho que as pessoas guardam as memórias de certa forma e tendem a exagerar. Por exemplo, ir pescar um peixe pequeno e dizer que foi enorme. As pessoas agarram-se à memória dourada do passado. Quando vamos encontrar-nos com alguém que foi espião, ainda por cima agente duplo, já levamos um certo ceticismo, o radar está sempre ligado.
Nos muitos documentos que analisou, encontrou certamente coisas que não batiam certo com a versão de Karel Koecher? Confrontava-o com isso?
Devo dizer que, das pessoas que entrevistei, as versões dele eram das que batiam mais certo. Mas provavelmente ele foi rever o próprio ficheiro antes de falar comigo. Mas quando lemos tanta coisa, e eu analisei cerca de 30 mil páginas, começa-se a perceber a lógica. É muito burocrático, as pessoas cortam e colam coisas de outros documentos e, por vezes, percebe-se que a forma como relatam não é com o intuito de mentir ou de enganar alguém 35 anos depois, mas é para ficarem mais bem vistos, exagerando a sua importância na história.
Qual foi a história que descobriu que parecia mais surreal do que ficção?
O percurso do Karel. Na Checoslováquia tinha muitos problemas, era um outsider que era assediado, criava problemas enquanto miúdo e adolescente, não se enquadrava ali. Não seguia as regras, não estava nas boas graças da polícia e dos serviços secretos. Não conseguiu os empregos que queria porque não se encaixava nos padrões e então corrigiu a trajetória, uma espécie de “se não os podes vencer, junta-te a eles”. Pensou que a melhor hipótese que tinha, até de poder viajar, era juntar-se aos serviços secretos. Foi o que fez e acabou em Nova Iorque — não sei se tinha logo isso em mente, acho que foi mais o desespero de “o que me resta fazer? Vou tentar isto e talvez resulte.” Tinha um amigo nos serviços secretos e através dele conseguiu entrar.
Ele tinha sempre um plano para transformar uma desvantagem a favor dele?
De certa forma, sim. Há outra história, digna de filme: quando ele é detido e está na prisão, tem a ideia de ser trocado por um famoso dissidente, Anatoly Sharansky, e envia o advogado para tentar fazer esse acordo e virar o jogo a favor dele. O Sharansky era um nome realmente importante naquela altura e a sugestão de que este tipo [Karel], que não era assim tão importante (interessante, sim, mas não tão importante) no panorama global da Guerra Fria consiga sugerir ser trocado por uma celebridade e que a discussão chegue ao nível do [Ronald] Regan e do [Mikhail] Gorbachev é incrível. E eles concordam. Acho que houve muita sorte envolvida, sim, e as circunstâncias em que ele foi preso e investigado também permitiram que resultasse, mas a ideia de que ele tenha orquestrado tudo de certa forma é impressionante.
Há outros momentos que demonstram como ele era inteligente?
Sim, ele passou um teste do polígrafo quando foi contratado pela CIA. Parece uma coisa inventada para um filme. Se alguém tem um polígrafo impossível de enganar, só pode ser a CIA, certo? Mas ele mentiu e passou.
Na Checoslováquia era realmente visto como um nome problemático. Foi preso, perseguido, não podia fazer nada. De repente, chega aos EUA e sobe os degraus até chegar à CIA de uma forma que parece quase simples. Como é que ele estava a viver uma espécie de sonho americano quando já era um agente secreto?
Porque é que importava contar a história dele? Não foi o espião mais importante da história dos espiões mas, por um lado, é mais simbólico do que isso porque se passa tudo durante a trapalhada que aconteceu na Guerra Fria. Na minha opinião, se este homem tivesse nascido nos anos 70 em São Francisco, por exemplo, tinha sido um bilionário tecnológico. Era super inteligente e ambicioso e esse local e tempo recompensavam essas características. Mas ele não nasceu nos anos 70, nasceu em Bratislava em 1934. Para a personalidade dele era uma época horrível para nascer, certo? Quando os comunistas dominam, a pior coisa que se pode ter é ambição, originalidade e uma mente livre. É-se morto e vai-se para a prisão por essas coisas. Depois, Karel vai para os EUA numa época em que — sou americano, ainda não era nascido, mas esses anos talvez tenham sido o mais próximo possível do sonho americano — se ouvia por toda parte “se trabalhares arduamente, podes ter sucesso”. Ali o sistema é perfeito para ele. É inteligente, ambicioso, vai estudar, não há problema. “Queres fazer um doutoramento? Aqui tens. Estamos a recrutar pessoas inteligentes, queres trabalhar? Aqui tens.” É boom, boom, boom. Mas, nos anos 70 e 80, esbarra numa parede. E aí é como se não chegasse ao topo, não completasse o sonho.
O que acontece aí? Ele queria deixar a vida de espião?
O livro começa com um interrogatório de setembro de 1976 [em que é questionada a lealdade de Koecher aos soviéticos]. Acho que é nesse momento que a porta se fecha. Penso que daí até 1981/1982, que é quando alguém o contacta e o traz de volta aos serviços de inteligência, ele aceita a possibilidade de ter uma vida normal. “Talvez não seja assim tão mau, vivo nos EUA, tenho um doutoramento da [universidade] Columbia, posso ser um professor catedrático e viver em Manhattan. Tenho alguns amigos, a minha mulher não está mal no negócio dela. Posso ter uma boa vida e integrar-me.” Só que nesse período acaba por não ter grande sucesso. Não consegue aquele trabalho bom de professor, não tem reconhecimento da sociedade de como é inteligente. Penso também que, quando voltam a contactá-lo, ele está deprimido e frustrado com o ponto em que está a sua vida. Se as coisas tivessem corrido de forma diferente em 1976/77 ou 78 e alguma universidade prestigiada o tivesse contratado, por exemplo, talvez tivesse dito que sim e ficado a viver pacificamente nos EUA. Mas com a personalidade que ele tinha, naquele período o ego dele não estava satisfeito, e portanto quando é abordado para voltar a ser espião no início dos anos 80, não consegue dizer “é muito arriscado. Já o fiz, já assumi esses riscos todos e sobrevivi. Temos um apartamento, vou só viver a minha vida” ou algo do género.
Por causa da adrenalina? A vida de espião era como uma droga?
Sim, é como uma droga. Este miúdo inteligente de quem os pais não queriam realmente saber, que é ambicioso na faculdade mas cujo valor a sociedade não reconhece, trabalha para os serviços secretos da Checoslováquia e estes também não se mostram assim tão contentes com ele, nada disso é fácil de encaixar. Achavam que não fazia o suficiente, enquanto ele queria que dissessem que ele era incrível, que estava a fazer um ótimo trabalho; quando tenta ser professor académico também não vê grande reconhecimento por parte da área; e depois chega este tipo que quer que ele volte a ser espião. Ele pensa: “Finalmente alguém reconhece que sou um génio.”
Mas depois acaba detido pelo FBI e fica mais de um ano preso até ser mandado de volta para a Checoslováquia.
Quando é preso e regressa à Checoslováquia, acha que será visto como um herói. Pelas histórias sobre ele, por ter estado preso e ter sido trocado para voltar à Checoslováquia, espera uma medalha ou algo do género e isso também não acontece. Afinal, não confiam nele porque viveu 20 anos nos EUA e, pior, o comunismo colapsa dois anos depois. Portanto, todos os comunistas são más pessoas. E isso faz-nos voltar um pouco à pergunta do início. Acho que ele aceitou falar por pensar “finalmente alguém que me respeita o suficiente para querer que eu conte esta vida extraordinária que tive”.
E a mulher dele, Hana? No livro é uma incógnita. Parece sempre que tem muito mais a dizer do que aquilo que transparece.
É mesmo isso. O problema é que ela não queria falar. Se o livro fosse um romance, a personagem dela estaria muito mais desenvolvida, pois ela é muito interessante e misteriosa. Em termos de documentos, também não havia tanta coisa sobre ela que pudesse dar-me contexto. Estive com ela, falamos, estive em casa deles, encontrámo-nos para beber café, mas ela simplesmente não confiava o suficiente para ter uma conversa extensa. Ela é um pouco mais nova, tinha 19 anos quando conheceu o Karel e esta odisseia começou. Acredito que fosse um pouco imatura, como qualquer pessoa de 19 anos tem de ser. Então entra nisto de forma ingénua, não penso que estivesse assim tão interessada na espionagem. Ela gostava de viver nos EUA, tinha bastante sucesso no ramo dos diamantes, viajava e as pessoas gostavam dela. Portanto, gostava daquele estilo de vida de Manhattan, mas também reconhecia que tudo aquilo era devido ao que Karel fazia. Por isso, era conivente ou uma espécie de assistente naquilo que ele fazia. Ao longo do tempo foi ficando mais envolvida, não a recolher informações, mas organizando reuniões e trocando informações. De repente, acabou tudo de forma abrupta e acho que ela ficou mais prejudicada do que o Karel. O que se soube sobre a louca vida privada, sobre as festas de sexo, danificou mais a imagem dela. Era uma mulher linda e os relatos em relação a ela são sexistas. Em inglês temos uma expressão que é “gatinha sexy” e naquela altura, nos anos 60, 70, 80, era assim que ela era caracterizada. Quando falei com alguns agentes do FBI, que têm 70 anos agora, todos tinham algum tipo de comentário. Não repugnante, mas qualquer coisa do género: “Aquela mulher, era… sabe? Costumava flirtar muito.” Esse tipo de bocas continuaram a circular sobre ela estes anos todos, portanto também acho que era por isso que não queria falar comigo. Seria só mais um tipo a querer distorcer a vida privada dela. Nos anos 90 arranjou um trabalho na embaixada britânica em Praga e acabou despedida depois de haver um mini escândalo nos jornais por a terem contratado.
O Karel também estava envolvido nessas festas, por exemplo, mas ele sai disto de uma forma muito diferente, certo?
Ela tinha uma nuvem negra de energia à volta. O Karel continua a ter esta aura fixe de espião. Para um homem ter participado em festas de sexo com muitas mulheres ainda é visto como uma coisa cool. Para uma mulher daquela geração, não.
Há pouco disse que sentia que ele queria manipular ou controlar a narrativa. Houve algum momento em que o Karel ficou mais vulnerável?
Penso que no tema do pai [que nunca lhe reconheceu valor nem o incentivou nas suas ambições ou conquistas]. Eu tentava puxar o assunto, a minha tentativa imatura de fazer psicanálise, e ele fechava-se. Quando eu tentava fazer paralelismos, ele chateava-se. Houve outro incidente: quando o Donald Trump estava quase a ser eleito presidente dos EUA, ele tinha uma opinião sobre o que estava a acontecer na política americana e, o facto de eu ter uma opinião diferente, era como se estivesse a questionar a inteligência dele.
Sentia que era um ataque?
Sim, demonstrava frustração e raiva. Achava: “Eu sou inteligente, devias ouvir o que estou a dizer.” Acho que não estava muito interessado em mergulhar nas coisas mais profundas
Eles foram trocados em 1986, deixando uma vida inteira para trás e voltando a um país, na altura Checoslováquia, que provavelmente já nem reconheciam. Como é que lidaram com isso?
Se pudéssemos entrar numa cápsula e regressar ao dia antes de serem detidos [em 1984], Hana era quem estava mais realizada. O Karel estava bastante chateado, não tinha uma carreira que o preenchesse. Se ambos estivessem a falhar, ele podia dizer: “OK, há algo errado com a América.” Mas, sendo ele o único a falhar, só podia pensar: “OK, há algo errado comigo.” Tinha de haver alguma inveja. Depois voltaram a um país que, não só não reconheciam, como provavelmente tinham idealizado. Penso que ele acreditava realmente que ia ser recebido como um herói. Pensava que ia reformar-se, toda a gente ia dizer que ele era incrível e contar a história dele. “Sou o tipo que penetrou na CIA, o grande inimigo.” Porém, nada disso aconteceu, até foi o oposto. Quiseram interrogá-lo porque era o quão louca a lógica daquela época era. Pensaram: “Se calhar agora és um espião americano. Se calhar os americanos prenderam-te para poderem mandar-te para cá…” Portanto, não confiavam nele. E a vida na Checoslováquia não estava propriamente fácil em 1986, a nível económico por exemplo, enquanto eles vinham de um bom apartamento e um estilo de vida superior em Manhattan. Depois, em 1989, com o colapso do comunismo ficaram do lado dos maus da fita. Ele era um deles, era espião da agência secreta que reprimia as pessoas e fazia coisas terríveis.
No final do livro perguntou-lhe se se arrependia de algo. Ele disse que sim, mas deixou as coisas bastante vagas.
Ele acredita que foi colocado numa situação má e reagiu o melhor que podia, acredita que não traiu ninguém de forma séria. Diz que teve muitas oportunidades para colocar pessoas em apuros, fazer com que alguém fosse morto mas que não o fez porque tinha uma bússola moral.
Mas não foi bem assim.
Quando lhe fazia uma pergunta específica, “então e aquele tipo que acabou por morrer?”, ele era relativo e acredito que, em parte, ele acredita que fez o correto na maioria das vezes. Em relação a isso, acho que não tinha arrependimentos. Acho que o arrependimento dele prende-se com o facto de as coisas não terem corrido melhor.
Ele achava que era uma questão de sobrevivência? Fez o que tinha de fazer?
Ele diz, por exemplo, “o meu arrependimento é não ter sido mais ambicioso” ou “o meu arrependimento é achar que podia mudar o mundo e estava errado”. Por um lado ele acha que agiu moralmente bem. Por outro, compara-se a uma metáfora de Thomas Mann sobre Fausto, um homem que vendeu a alma ao diabo em troca de conhecimento, o que não é assim tão moralmente aceitável. É um homem contraditório e não está muito interessado em revisitar os acontecimentos para dizer o que podia ter mudado.
Como é a vossa relação? Existe?
Não posso dizer que somos amigos mas respeito-o enquanto ser humano. Não concordo com muitas das coisas que fez, mas posso tentar colocar-me na pele dele. Tens 25 anos e o mundo não faz sentido, está a castigar-te por seres ambicioso. Então, o que fazes? Aceitas simplesmente? Podia ter-se acomodado mas não aceitou. Quando está nos EUA espera-se que seja leal, mas os agentes duplos não são leais a ninguém.
Era leal a ele próprio?
Sim, exatamente. Estás numa situação tão louca que o teu instinto é de sobrevivência. Tens de ser leal a ti próprio porque a agência de espiões da Checoslováquia não te vai ser leal, a CIA não te vai ser leal. Portanto, porque lhes serias leal? Toda aquela realidade louca precisava de atos loucos. Em inglês o título do livro é O Mentiroso, com o subtítulo O Último Homem Honesto, porque ele mentia o tempo todo, mas por necessidade. É uma representação honesta do ambiente louco em que ele vivia. Uma realidade que quase encoraja a mentir ou que requer mentir. O surpreendente seria alguém dizer sempre a verdade naquelas situações. Se dissesse a verdade, morria.
Uma coisa foi ele aceitar ser o protagonista de um artigo. Ficou igualmente satisfeito quando ouviu falar em livro?
Quando lhe escrevi a dizer que tinha o contrato para um livro, ele desejou-me sorte. Leu o livro e tinha um reparo aqui e ali, mas acho que reconhece que fiz um trabalho justo. Estamos em termos amigáveis. Quando fui a casa deles dizer que o artigo ia ser publicado e que conteúdo tinha, por exemplo coisas sobre a vida sexual deles, a Hana ficou muito zangada e basicamente pediu-me para sair. Eu não queria chatear ninguém mas eram detalhes que tinha de incluir. Ela estava preocupada com a imagem que ia passar dela. Quando o artigo foi publicado, o Karel escreveu-me a dizer que a Hana estava tranquila. Havia coisas más sobre ele ali, sobre ela, coisas de que as pessoas não se orgulhavam, mas o relato era justo.