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Luís Giovani Rodrigues era natural da ilha do Fogo, em Cabo Verde, e chegou em outubro a Bragança para estudar Design de Jogos Digitais
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Luís Giovani Rodrigues era natural da ilha do Fogo, em Cabo Verde, e chegou em outubro a Bragança para estudar Design de Jogos Digitais

Luís Giovani Rodrigues era natural da ilha do Fogo, em Cabo Verde, e chegou em outubro a Bragança para estudar Design de Jogos Digitais

Ódio racial ou rixa? O que se sabe e o que está por explicar na morte do estudante cabo-verdiano em Bragança

Giovani, cabo-verdiano de 21 anos, morreu depois de ser agredido por 15 homens à porta de um bar. Em Bragança, todos descartam um crime motivado por racismo, mas o caso tem pontas soltas por explicar.

A tese já corria nas redes sociais e acabou por ser alimentada pelo Livre quando o partido decidiu pedir explicações rápidas sobre o crime de Bragança: agredido com paus e ferros por um grupo de 15 homens, depois de um desentendimento dentro de um bar, Luís Giovani Rodrigues, um estudante cabo-verdiano, teria sido vítima de um crime racial, morto por ser negro.

“A luta contra o ódio e o racismo é também a luta pelo reforço da democracia, não apenas enquanto sistema político, mas enquanto um bem a preservar em tempo de ameaças e manipulações ideológicas”, escreveu Joacine Katar Moreira num comunicado publicado na sua página oficial no Facebook, apesar de também dizer que estava em causa “ódio, racial ou outro”.

Em Bragança, porém, ninguém olha para o crime da mesma maneira. E a investigação da Polícia Judiciária também não aponta nesse sentido. Mas há ainda muitas pontas soltas para que seja possível perceber, com certeza, o que aconteceu. Porque se desentenderam dentro do bar? E quem eram os homens que atacaram o estudante cabo-verdiano e os amigos que tinham saído com ele? Porque é que ninguém apresentou queixa logo a seguir à agressão? E como é que Luís Giovani Rodrigues foi deixado sozinho e encontrado, quase que por acaso, caído na rua e inconsciente por agentes da PSP que passavam na zona?

A PJ continua a interrogar suspeitos. A todas as dúvidas junta ainda uma outra: o que acabou por provocar afinal a morte do jovem? A pancada que terá levado na cabeça ou a queda, quando desmaiou? A resposta pode fazer diferença para o tipo de crime que virá a ser imputado aos agressores.

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PJ já identificou a maioria dos cerca de 15 homens que terão agredido cabo-verdiano Giovani

A sequência do acontecimentos

21 de dezembro de 2019. Para assinalar o fim do primeiro semestre académico, Luís Giovani Rodrigues, estudante que tinha chegado ao Instituto Politécnico de Bragança apenas em outubro, saiu com outros três amigos cabo-verdianos para o bar Lagoa Azul, muito conhecido na cidade. Já perto da hora de fecho, pouco antes das 3h da manhã, um dos amigos que o acompanhava desentendeu-se com um elemento de outro grupo que também estava na fila para pagar o cartão de consumo.

“Havia empurrões, muita gente a tentar fugir para os lados”, recorda ao Observador uma testemunha que se encontrava dentro do bar e que preferiu não ser identificada. Como começaram esses desacatos? Há duas versões para o que aconteceu. A mesma fonte garante que os dois jovens se desentenderam porque um dos amigos do estudante cabo-verdiano “estava a tentar passar à frente de várias pessoas para pagar”. Um primo da vítima, porém, em declarações ao jornal Contacto, explicou que um amigo de Giovani tinha tocado, sem querer, numa mulher, namorada de um dos elementos do grupo agressor, e que os problemas tinham começado aí, primeiro com uma troca de insultos e depois com alguns empurrões.

A única certeza é a de que o bar estava cheio. Por ser uma semana típica de jantares de Natal, havia muitos grupos de amigos no estabelecimento, o que contribuiu para aumentar a confusão. Para tentar controlar o problema, funcionários do bar tentaram pôr fim aos desacatos e o DJ levou Giovani e os amigos para a cabine onde trabalhava. Permaneceram lá alguns minutos. Cerca de 20, na primeira versão do que aconteceu, contada pelo primo do estudante; “uns cinco”, segundo a perceção da testemunha ouvida pelo Observador, que conta que “a pessoa que ficou na fila, um rapaz de estatura baixa, também se acalmou”. “Efetuou o pagamento na vez dele e saiu”, recorda.

A partir daqui também há mais dúvidas que certezas. A Polícia Judiciária ainda está a tentar reconstituir o caminho feito pelos estudantes do Politécnico de Bragança, depois de saírem do Lagoa Azul. O mais provável é que tenham caminhado mais de 500 metros pela Avenida Sá Carneiro, que está em obras e onde se encontra material de construção à vista. Dizem os habitantes da cidade que os rapazes não precisaram de andar um quilómetro até serem abordados pelo grupo de 15 homens que os cercou para lhes bater com paus, ferros e cintos.

Caso de jovem cabo-verdiano chegou às autoridades de Bragança como alcoolizado caído na rua

No meio da confusão, Giovani, entre os amigos, levou uma pancada na cabeça e caiu ao chão, mas não perdeu os sentidos e conseguiu voltar a pôr-se de pé. “O que os colegas relatam é que ficou um bocado confuso, cambaleante, e queria ir para casa”, assegura Orlando Rodrigues, presidente do Instituto Politécnico de Bragança.

Terá sido, aliás, o som forte dessa pancada a pôr fim às agressões. Logo a seguir, o grupo de estudantes, incluindo Giovani, fugiu em diferentes direções. “Alguns deles perderam a carteira e o telemóvel, foram à procura e, naquelas circunstâncias, deixaram de o ver”, explica Orlando Rodrigues. Perante a ausência do amigo, procuraram, ainda foram a casa ver se ele já lá estava, mas sem qualquer sinal. “Voltaram e, entretanto, a polícia encontrou-o”, explica o presidente do IPB.

No instante em que Giovani ficou sem os amigos, é difícil precisar o que aconteceu. Pelo relato dos amigos é possível saber que estava confuso e a cambalear, mas consciente. Pelo local onde acabou por ser encontrado por agentes da PSP, inanimado no chão, percebe-se que ainda caminhou mais alguns metros: estava a pouco menos de um quilómetro do bar Lagoa Azul.

O Observador espera ainda resposta da PSP sobre se os agentes que o encontraram estavam naquela zona numa patrulha de rotina ou se receberam algum pedido ou indicação. Certo é que nenhum dos amigos formalizou qualquer queixa — apresentada, entretanto, pela família da vítima. A outras pessoas que não estavam lá naquela noite, os estudantes contaram que achavam (erradamente) que era preciso pagar uma quantia avultada para o fazer. Assim, mais tarde, deram apenas conta do sucedido.

À primeira vista, e sem qualquer testemunha ou relato do que tinha acontecido, os agentes da PSP acreditaram estar perante um estudante inconsciente por ter bebido demais. Pelas 4h da manhã (uma hora depois de o grupo ter saído do bar), chamaram os Bombeiros Voluntários de Bragança.

“É a primeira vez que vejo um caso destes em Bragança”
Maribelle Brito, vice-presidente da Associação de Estudantes Africanos em Bragança e Mirandela

Mas  não era embriaguez. Os bombeiros encontraram um ferimento grave na cabeça do jovem e contactaram o INEM, que enviou uma Viatura Médica de Emergência e Reanimação (VMER). Giovani foi, depois, levado para o hospital distrital de Bragança, já com suspeitas de um traumatismo cranioencefálico.

Por causa do tipo de ferimento, entretanto confirmado, não ficou ali muito tempo. “Foram feitos os procedimentos normais para evacuar o doente para um hospital com essas competências, ainda que por via terrestre, porque o helicóptero não teve autorização para levantar voo por razões atmosféricas”, avança Orlando Rodrigues.

Luís Giovani Rodrigues acabou, então, por ser transferido para o Hospital de Santo António, no Porto, onde foi submetido a uma operação cirúrgica. Sem querer dizer o nome, uma familiar também a estudar no IPB conta que “os médicos até estavam bastante otimistas”. A operação correu bem e Giovani estava a reagir.

“Começámos a ter esperanças de que ia ficar bem, mas depois começou a piorar”, até que, no dia 30 de dezembro, foi comunicado ao pai, vindo de Cabo Verde no dia 24, que, após dez dias em coma, iam ser desligadas as máquinas. Tinha entrado em morte cerebral. Morreu na madrugada do último dia do ano, às mesma hora a que tinha saído, dez dias antes, do bar Lagoa Azul.

“De certeza que não há aqui nenhuma organização estruturada de cariz ideológico relacionada com algum tipo de intolerância que não seja uma pequena marginalidade”
Orlando Rodrigues, presidente do Instituto Politécnico de Bragança

O presidente do Instituto Politécnico de Bragança só soube da morte do jovem na tarde do dia 31. “Toda a gente estava convencida de que a lesão que o Giovani sofreu não teria essa gravidade e de que ele recuperaria. Acho que a maioria das pessoas se recusou, num primeiro momento, a achar que era possível”.

A cidade ainda hoje questiona. As imagens das nove câmaras de videovigilância que se encontravam dentro do bar estão com a Polícia Judiciária, que, segundo o JN, já interrogou vários dos envolvidos na rixa mas que, para já, ainda se remete ao silêncio. Ao que o Observador apurou, ainda estão a ser feitos interrogatórios a pessoas suspeitas de terem estado relacionadas com o crime.

Num café de Bragança, uma senhora de meia idade reage a uma notícia sobre o caso, que passa na televisão. “Nem sei como é que hoje em dia, com a internet, alguém se atreve a fazer isto. Mais cedo ou mais tarde vai-se saber quem foi”. “Ainda se fosse uma palmada, agora porrada a sério? Nem aos cães…”, atira para o ar outra mulher, em jeito de resposta.

PJ garante que está “fortemente empenhada” no caso do estudante cabo-verdiano

Nem a PJ nem a cidade atribuem razões racistas a ato de violência

Nas redes sociais, rapidamente escalou a tese de que o ato violento teria motivações racistas, mas a Polícia Judiciária, citada pelo jornal Público, aponta para “motivos fúteis”. Ao Observador é explicado que, como em qualquer investigação, todas as hipóteses têm de ser consideradas, mas poucos elementos apontarão para um crime de ódio.

A entrada da PJ em campo apenas no início de janeiro é também motivo para muitos, sobretudo nas redes sociais, questionarem se o caso foi tratado com a diligência necessária ou se foi desvalorizado. A verdade é que, até à morte de Luís Giovani Rodrigues, a investigação estava a ser feita pela PSP, que tem competência para investigar crimes de ofensa à integridade física, como o que estava em causa. Com a  morte da vítima, a 31 de dezembro, o caso passou a poder configurar um homicídio, cuja investigação é da competência exclusiva da PJ. É só nessa altura, por isso, que a investigação muda de mãos.

“Um facto incontornável é que a morte de Giovani resultou de uma rixa”, começa por sublinhar Orlando Rodrigues. O sentimento é partilhado por um grupo de estudantes africanos que encontramos a discutir a fatalidade numa sala do edifício da Associação Académica do IPB. “Foi um ato pensado porque pararam a confusão no bar, mas foram para fora dele e arranjaram armas”, diz uma estudante cabo-verdiana.

Mas “temos de esperar pelo fim das investigações para poder dizer que não é racismo”, atira outra cidadã cabo-verdiana, com filhos a viver na mesma cidade.

“Toda a gente estava convencida de que a lesão que o Giovani sofreu não teria essa gravidade e de que ele recuperaria. Acho que a maioria das pessoas recusou-se, num primeiro momento, achar que era possível”
Orlando Rodrigues, presidente do Instituto Politécnico de Bragança

O clima é também de medo. Maribelle Brito, vice-presidente da Associação de Estudantes Africanos em Bragança e Mirandela, também presente na reunião, admite mesmo estar assustada. “É a primeira vez que vejo um caso destes em Bragança”. E “o que é certo é que, noutros sítios do país, eles ocorrem aos pontapés”, remata Hugo Nobre, Presidente da Associação de Estudantes.

Com uma população de cerca de 25 mil pessoas, Bragança tem 9 mil alunos. Desses, mais de 3 mil são alunos internacionais, de mais de 70 nacionalidades diferentes. “Sempre valorizámos como maior ativo a multiculturalidade”, sublinha Orlando Rodrigues. A comunidade cabo-verdiana é a mais significativa das africanas nos alunos estrangeiros naquele estabelecimento de ensino. “Se perguntar aqui na cidade, foi construída uma relação boa com os cabo-verdianos”.

Pessoas na cidade associam grupo atacante a vários casos de marginalidade

“Eu continuo a pensar no mesmo”, reforça uma rapariga cabo-verdiana. “Se os elementos do grupo já são conhecidos das autoridades, como é que nunca lhes aconteceu nada?”. A sala anuiu em uníssono.

É uma tese que circula na cidade, a de que serão reincidentes desacatos com o mesmo grupo de jovens. Orlando Rodrigues já ouviu nos corredores tratar-se de “um grupo de amigos envolvidos em alguma marginalidade”. “Apesar do resultado violento, imagino que não fosse essa a intenção”, sublinha o presidente do IPB. “De certeza que não há aqui nenhuma organização estruturada de cariz ideológico relacionada com algum tipo de intolerância que não seja uma pequena marginalidade”, reforça, admitindo ainda que “toda a gente se questionou se era possível uma coisa dessas em Bragança”.

Para já, entre quem investiga e nos registos da PSP, também não há elementos que apontem nesse sentido, da existência de um gangue violento responsável por vários casos de agressão semelhantes, mesmo que menos graves que este.

A prioridade da Polícia Judiciária, agora, é identificar todos os envolvidos, mas também perceber que crime lhes pode ser imputado: se ofensa à integridade física agravada pelo resultado — a morte do jovem —, se por homicídio. No fundo, a diferença está na intenção: para avançar para a imputação de homicídio, é preciso ter indícios de que, quando atacaram Giovani, os agressores queriam matá-lo ou, pelo menos, conformaram-se com a possibilidade de isso acontecer, dada a violência usada. Um crime de ofensa à integridade física, mesmo que agravado pelo facto de a vítima ter vindo a morrer, tem, pelo contrário, uma moldura penal muito inferior.

Vigília e missa. A agressão que Bragança não perdoa

O presidente do IPB vai a Cabo Verde ao funeral de Giovani, que deverá realizar-se ainda esta semana, depois de o corpo ser transladado na quinta-feira. A missa do sétimo dia foi na segunda-feira, em Bragança.

https://www.facebook.com/secretariado.dajuventude.3/posts/1520285431456554

Numa sala do edifício dedicado à Associação Académica, o Observador encontrou um grupo de dez estudantes que se juntou para preparar uma vigília em memória de Luís Giovani. Depois de escolhido o percurso, que passou obrigatoriamente pelo bar Lagoa Azul e pelo local onde o jovem foi encontrado caído e terminou com uma vigília na Praça da Sé, foi preciso escolher quem lia e cantava na missa dada pelo bispo D. José Cordeiro, da diocese Bragança-Mirandela, e pelo padre Calado, capelão do Instituto Politécnico de Bragança na Catedral de Bragança.

“As leituras já estão. Logo vemos quem canta o salmo”. “Olha que o salmo não é para qualquer um…”. A este movimento juntou-se também o Instituto Politécnico, “no sentido da defesa dos valores da paz, da convivência entre os povos e as culturas, que defendemos”, nas palavras do presidente.

Morte de jovem cabo-verdiano gera marchas de homenagem no país no sábado

Giovani tinha uma forte relação com a Igreja Católica. Já tinha sido acólito e escuteiro e costumava tocar piano na missa da vila de Mosteiros, de onde é originário, a cerca de 50 quilómetros de São Filipe, capital da ilha do Fogo.

Dentro e fora da igreja “era um rapaz sempre a sorrir”, conta-nos a estudante familiar com pesar no rosto. “Disséssemos algo engraçado ou algo triste, ele ria sempre”. Talvez por isso o gosto que ainda nutria, aos 21 anos, por desenhos animados. Os amigos contam que era “rápido e ágil a fazer amigos”.

Giovani era pianista da banda BeatzBoys em Mosteiros, Cabo Verde.

Ter vindo para Portugal seguir o sonho de tirar um curso não o fez, porém, abandonar o da música. Era pianista da banda BeatzBoys em Mosteiros, chegou a dar aulas de piano em Cabo Verde e, mesmo em Bragança, “tinha o piano no quarto e estava sempre a tocar”. Não estava a gostar da licenciatura de Design de Jogos Digitais, mas, pela dificuldade em arranjar vaga para estudar em Portugal, contava conseguir transferência de curso só no próximo ano. Apontando para o futuro, queria engenharia de energias renováveis. Quando acabasse a noite no bar Lagoa Azul, ia comprar um bilhete de comboio. Para passar o Natal em Lisboa.

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