Os autos da Operação Marquês são um labirinto processual — muito devido à intensa litigância do arguido José Sócrates. Mas os tribunais superiores estão, finalmente, a encontrar uma luz ao fundo do túnel. E para tal tem sido decisiva a aplicação do artigo 670.º do Código de Processo Civil (CPC) contra as manobras dilatórias. É por isso que Sócrates e os restantes 17 arguidos individuais pronunciados a 25 de janeiro estão a apenas um recurso de serem finalmente julgados.
Depois de o desembargador Francisco Henriques ter decidido aplicar o artigo 670.º do CPC pela primeira vez na Operação Marquês, apenas dois incidentes impediam a baixa dos autos para a primeira instância: os incidentes de recusa interpostos por Sócrates no Supremo Tribunal de Justiça (STJ) e uma reclamação do José Paulo Pinto de Sousa para o STJ sobre a rejeição da admissão de um recurso.
Ora, os incidentes de recusa de José Sócrates foram rejeitados pelo STJ no passado dia 28 de novembro, com o tribunal a seguir os passos do desembargador Francisco Henriques e a aplicar o art. 670.º do CPC. Mas a reclamação do primo do ex-primeiro-ministro foi aceite — e é precisamente este último incidente que está a impedir a baixa dos autos.
O que significa que o desembargador Francisco Henriques vai ter que admitir o recurso de José Paulo Pinto de Sousa. Mas tem duas opções à sua disposição na admissão do recurso para forçar a baixa dos autos para que o julgamento comece em breve: ou aplica o efeito devolutivo ou aplica novamente o art. 670.º para que o recurso seja tratado num processo à parte.
A alternativa é o recurso do primo de José Sócrates ter efeito suspensivo e o processo ter de esperar pela decisão do STJ.
Como a Justiça está a combater a “óbvia evidência” das manobras dilatórias de Sócrates
O conteúdo da última decisão tomada pelo STJ, no passado dia 28 de novembro, é uma boa metáfora processual do que tem sido a litigância intensiva de José Sócrates e de como a lei pode permitir inúmeros obstáculos a uma simples decisão.
Estava em causa um simples requerimento de incidente de recusa de dois desembargadores, ao qual a defesa de José Sócrates conseguiu juntar um juiz conselheiro — no final, o que estava em causa era a rejeição de três juízes, e não de dois. Como também estavam em causa inúmeras nulidades, às quais o advogado Pedro Delille acrescentou sucessivos requerimentos e reclamações.
Dito de outra forma: Sócrates apresentou um incidente de recusa a 29 de maio, juntou-lhe mais dois requerimentos a 2 e a 25 de julho e, no dia em que o STJ se preparava para tomar uma decisão final (26 de setembro), ainda alegou factos novos (que eram falsos) que obrigaram o conselheiro relator Celso Manata a parar tudo e a consultar a Relação de Lisboa para concluir que o ex-primeiro-ministro não tinha razão.
Daí que a conferência da 5.ª Secção do STJ tenha concluído que resulta “com óbvia evidência” da “tramitação dos presentes autos” que o “arguido [José Sócrates] pretende atrasar o mais possível o trânsito em julgado na decisão proferida a 20 de junho de 2024 e, assim, obviar igualmente a que o processo que corre termos no Tribunal da Relação de Lisboa — no qual o incidente de recusa que deu origem no presente processo foi apresentado — prossiga os seus termos normais”. É isso que se pode ler no acórdão do STJ de 28 de novembro a que o Observador teve acesso.
Ou seja, os conselheiros Celso Manata, Agostinho Torres e Vasques Osório entendem que José Sócrates está a utilizar meios que a lei não permite para impedir a execução da decisão de pronúncia para julgamento da Operação Marquês tomada no passado dia 25 de janeiro de 2024 — há pouco mais de 10 meses.
Daí que os três conselheiros da 5.ª Secção do STJ tenham seguido os passos da conselheira Helena Moniz e dos colegas da 3.ª Secção do STJ no caso BPP: aplicar o art. 670.º contra as manobras dilatórias, de forma a que a sua decisão seja executada de imediato e que qualquer outro incidente sobre a mesma matéria seja tratado num processo à parte.
Recorde-se que, no caso da Operação Marquês, esta não é a primeira vez que o art. 670.º é aplicado. Já o foi pela 3.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa por proposta do desembargador Francisco Henriques no passado 21 de novembro. Tendo em conta que o STJ rejeitou agora o incidente de recusa contra este desembargador, várias fontes judiciais contactadas pelo Observador salientam que a posição do relator da Operação Marquês na Relação de Lisboa saiu claramente legitimada e reforçada.
Como José Sócrates tentou construir uma nova teia de incidentes processuais
Tudo começou com um requerimento de recusa dos desembargadores Francisco Henriques e Adelina Barradas de Oliveira apresentado por José Sócrates a 29 de maio de 2024.
Francisco Henriques passou a ser o novo titular dos autos da Operação Marquês após as desembargadoras Raquel Lima, Micaela Rodrigues e Madalena Caldeira terem tomado a sua última decisão a 2 de maio: a rejeição de todas as nulidades do despacho de pronúncia de 25 de janeiro invocadas pelas defesas dos arguidos.
Sócrates argumentou que Francisco Henriques tinha participado em dois julgamentos que nasceram de certidões extraídas da Operação Marquês por decisão do juiz de instrução Ivo Rosa. É verdade que Henriques foi o juiz presidente do coletivo que condenou Ricardo Salgado em março de 2022 a uma pena de prisão efetiva de seis anos por três crimes de abuso de confiança e foi o primeiro adjunto do coletivo que condenou Armando Vara em junho de 2021 a uma pena de prisão efetiva de dois anos de prisão pelo crime de branqueamento de capitais.
Já a desembargadora Adelina Barradas de Oliveira tinha tido intervenção, enquanto 2.ª Adjunta, na análise em conferência de uma reclamação de José Sócrates sobre a obrigação de apresentação quinzenal na GNR decidida pela primeira instância em julho de 2022 — e que a Relação de Lisboa manteve em junho de 2023 (obrigação que caducou no passado dia 1 de novembro). Tal obrigação periódica foi decidida nos autos do processo que nasceu da pronúncia para julgamento de José Sócrates decidida pelo juiz de instrução Ivo Rosa.
O ex-primeiro-ministro alegava que a lei impunha que os dois desembargadores se declarassem impedidos. Como tal não aconteceu, Sócrates apresentou o incidente de recusa no STJ com o argumento de que os desembargadores Francisco Henriques e Adelina Barradas de Oliveira não tinham independência para decidirem sobre o seu processo.
Contudo, a tese de Sócrates tinha duas fragilidades, como o STJ veio a constatar ao longo da tramitação dos seus sucessivos requerimentos:
- Nenhum dos três processos acima referidos é o atual processo da Operação Marquês;
- E José Sócrates não tem qualquer tipo de intervenção nos dois casos que foram julgados pelo juiz Francisco Henriques. Tais factos dizem única e exclusivamente respeito a Ricardo Salgado e a Armando Vara.
Explicando de forma simples e esquemática. A Operação Marquês dividiu-se em vários processos (com diferentes numerações) com a decisão do juiz Ivo Rosa de abril de 2021. Por um lado, Rosa decidiu quatro pronúncias para julgamento decididas pelo juiz de instrução. A saber:
- Processo 16017/21.9T8LSB — José Sócrates e Carlos Santos Silva foram pronunciados por três crimes de falsificação de documento e três crimes de branqueamento de capitais;
- Processo 9153/21.3TELSB — Ricardo Salgado foi pronunciado por três crimes de abuso de confiança;
- Processo 9152/21.5TELSB — Armando Vara seria julgado por um crime de branqueamento de capitais;
- E ainda houve uma pronúncia de João Perna, antigo motorista de Sócrates, pelo crime de detenção de arma proibida.
Por outro lado, Ivo Rosa arquivou 172 crimes que faziam parte da acusação do Ministério Público. E esse arquivamento aconteceu no Processo 122/13.8TELSB — que são os autos originais da Operação Marquês —, tendo tal decisão sido alvo de um recurso do Ministério Público que em grande medida foi deferido pela Relação de Lisboa a 25 de janeiro de 2024 e que deu origem a uma pronúncia para julgamento de José Sócrates e de mais 17 arguidos individuais e quatro arguidos coletivos pela prática de 118 crimes.
Ou seja, os autos que são agora titulados pelo desembargador Francisco Henriques são os autos do processo 122/13.8TELSB — que nada têm a ver com os autos dos processos 16017/21.9T8LSB, 9153/21.3TELSB, 9152/21.5TELSB. Quatro processos, quatro numerações diferentes.
Acresce a tudo isto que os factos que deram lugar aos julgamentos de Ricardo Salgado e Armando Vara — e nos quais o juiz Francisco Henriques participou — também nada tinham a ver com José Sócrates:
- No caso de Salgado, estava em causa a apropriação indevida de cerca de 10 milhões de euros de fundos do Grupo Espírito Santo. A primeira instância condenou o ex-líder do BES a uma pena de seis anos de prisão, tendo a Relação de Lisboa aumentado a pena para oito anos de prisão efetiva em maio de 2023. Ainda está pendente um último recurso no Tribunal Constitucional sobre esta matéria;
- Já Armando Vara foi julgado por ter branqueado cerca de 535 mil euros — uma parte dos dois milhões de euros que recebeu de Carlos Santos Silva através de um esquema de várias sociedades offshore que o Observador relatou aqui. Os fundos dessa conta bancária nunca foram declarados às autoridades fiscais portuguesas. Os cerca de 535 mil euros foram enviados para Portugal para financiar a aquisição de um apartamento em Lisboa, tendo sido consumado o crime de branqueamento de capitais. Vara foi condenado a dois anos de prisão efetiva, a pena já transitou em julgado e, no âmbito do cúmulo jurídico que foi feito com o processo Face Oculta, poderá ter de voltar para a prisão.
Por tudo isto, mas não só, os desembargadores Francisco Henriques e Adelina Barradas de Oliveira não se declararam impedidos e, após Sócrates ter suscitado a intervenção do STJ, a conferência da 5.ª Secção decidiu a 20 de junho de 2024 não dar razão ao ex-primeiro-ministro.
“Não existem elementos no processo que permitam considerar que a intervenção dos referidos juízes desembargadores no processo possa ser considerada suspeita, nem — muito menos — que o requerente [José Sócrates] tenha indicado e provado factos objetivos que constituem motivo sério e grave para gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade”, lê-se na decisão tomada pelo STJ.
A habitual senda de sucessivos requerimentos de Sócrates
A partir da decisão tomada pelo STJ a 20 de junho de 2024, José Sócrates abriu uma nova estrada de sucessivos requerimentos que podem ser descritos de forma cronológica.
A 2 de julho tentou recusar um terceiro juiz: desta vez, estava em causa a imparcialidade do conselheiro Agostinho Torres — que tinha participado como adjunto na conferência da 5.ª Secção que indeferiu o incidente de recusa de Sócrates. Porquê? Porque tinha decidido enquanto desembargador relator da Relação de Lisboa um dos recursos do ex-primeiro-ministro sobre a prisão preventiva a que foi sujeito a 24 de novembro de 2014.
A decisão do então desembargador Agostinho Torres foi tomada em março de 2015 e ficou conhecida por conter uma frase sobre a alegada origem ilícita dos cerca de 30 milhões de euros depositados em nome de Carlos Santos Silva na Suíça (mas que, segundo o MP, pertencerão a José Sócrates). “Quem cabritos vende e cabras não tem de algum lado lhe vem”, escreveu Agostinho Torres, que deu como fortemente indiciados os indícios de corrupção contra Sócrates — apreciação essa que foi confirmada diversas vezes por diferentes desembargadores da Relação de Lisboa e conselheiros do Supremo.
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A última vez que tal apreciação foi confirmada foi precisamente no despacho de pronúncia para julgamento de Sócrates pela prática de três crimes de corrupção passiva, 13 crimes de branqueamento de capitais e seis crimes de fraude fiscal. Total: 22 crimes pelos quais o ex-primeiro-ministro será julgado.
No seu incidente de recusa contra Agostinho Torres, José Sócrates voltou a usar esse acórdão contra o conselheiro para tentar demonstrar a sua alegada parcialidade. Escrevemos “voltou a usar” porque, logo em 2015, Sócrates alegou no Tribunal Constitucional que tal fundamentação de Agostinho Torres, com recurso a provérbios populares, era inconstitucional. O relator Cura Mariano, hoje presidente do STJ, rejeitou tal argumentação de Pedro Delille num acórdão de agosto de 2015.
Sócrates alegou também, citando o penalista Paulo Pinto de Albuquerque, que, “tratando-se de um tribunal coletivo (…), basta a parcialidade de um dos seus membros para inquinar toda a atividade do tribunal”.
No mesmo requerimento de 2 de julho, José Sócrates repetiu diversos argumentos que já tinham sido rejeitados pelos tribunais superiores inúmeras vezes, como a composição do coletivo que o pronunciou ou o facto de não ter sido notificado a estar presente no sorteio dos juízes que apreciam os seus recursos, por exemplo.
A 5 de julho, o relator Celso Manata recusou os argumentos para o impedimento de Agostinho Torres, visto que o advogado Pedro Delille não tinha apresentado o incidente de recusa dentro do prazo de 10 dias imposto pela lei.
As maiúsculas de Delille e o parecer do MP
A 25 de julho, José Sócrates volta à carga com nova reclamação face à decisão de 5 de julho para afirmar que o relator Celso Manata não tinha competência para emitir a mesma. Em novo (e longo) requerimento, a defesa do ex-primeiro-ministro discorda que a lei imponha qualquer prazo para o incidente de recusa ser apresentado e repete as mesmas nulidades que já tinha apresentado anteriormente.
E solicita, em letras maiúsculas, “QUE O PEDIDO DE IMPEDIMENTO SEJA APRESENTADO AOS SENHORES JUÍZES VISADOS PARA SE PRONUNCIAREM”. Os visados eram os desembargadores Francisco Henriques e Adelina Barradas de Oliveira e o conselheiro Agostinho Torres.
Por decisão do relator Celso Manata, o Ministério Público (MP) no STJ emitiu parecer sobre esta reclamação para dizer o óbvio: boa parte dos argumentos apresentados por Sócrates já tinham sido repetidos anteriormente sempre com o mesmo resultado: a rejeição.
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“Quanto às nulidades, o requerente, a seu tempo, já as invocou, não lhe sendo lícito repetir o que já anteriormente fez (para mais quando, neste momento, se mostra claramente ultrapassado o prazo para tal invocação), muito menos estamos perante o local e o momento adequados para invocar erros na forma do processo”, lê-se no parecer do MP.
O MP também discordou de Sócrates quanto à necessidade de se ouvir os conselheiros visados pelo incidente de recusa, logo entendeu que a declaração de nulidade do acórdão não devia ser dada.
O “FACTO NOVO” que fez parar o processo mas era falso
Depois das férias judiciais, a conferência da 5.ª Secção foi marcada para o dia 26 de setembro, de forma a decidir-se sobre o requerimento de 25 de julho apresentado por Sócrates. Mas eis que, nesse mesmo dia 26 de setembro, o advogado Pedro Delille apresenta um novo requerimento que apresenta um “FACTO NOVO” (sic).
E qual era o “FACTO NOVO” do dia 26 de setembro? Um alegado facto datado de 16 de julho dos autos Processo 16017/21.9 T8LSB — o processo da pronúncia do juiz Ivo Rosa que foi anulada a 21 de março de 2024 por decisão das desembargadoras Maria José Cortes e Maria Rosário Silva Martins. Tal decisão obriga a refazer a decisão de Ivo Rosa, o que será feito pela juíza de instrução Sofia Pires.
E o que Sócrates alegava agora? Que a juíza de instrução Sofia Pires teria alegadamente reconhecido que a “decisão instrutória” de Ivo Rosa foi “inteiramente anulada” pela decisão das desembargadoras Maria José Cortes e Maria Rosário Silva Martins. É um dos novos ‘cavalos de batalha’ que Sócrates passou a repetir em vários requerimentos — e também na última entrevista que deu à CNN Portugal — mas que não corresponde à verdade.
A decisão da Relação de Lisboa de 21 de março diz apenas respeito ao processo 16017/21.9 T8LSB. O que significa que apenas tem a ver com os três crimes de falsificação de documento e três crimes de branqueamento. Única e exclusivamente.
Dito de outro modo: a decisão das desembargadoras Maria José Cortes e Maria Rosário Silva Martins no processo 16017/21.9 T8LSB em nada influencia a decisão de pronúncia de José Sócrates e dos restantes arguidos no processo 122/13.8TELSB.
Contudo, o raciocínio do advogado Pedro Delille leva-o para outro universo processual. De forma sintética, Delille entende que uma decisão anula a outra, o que faz com que escreva no seu requerimento que a “decisão recorrida” (o acórdão de 20 de junho de 2024 do relator Francisco Henriques) deixou de existir.
Estes argumentos tiveram de ser apreciados pelo STJ, tendo o relator Celso Manata solicitado uma certidão à Relação de Lisboa da decisão tomada pelas desembargadoras Maria José Cortes e Maria Rosário Silva Martins para aferir se os argumentos de José Sócrates faziam sentido.
E constatou o óbvio, que o Observador já escreveu várias vezes desde o dia 21 de março: que apenas foi anulada, devido a uma alteração substancial dos factos feita pelo juiz Ivo Rosa, uma decisão de pronúncia de três crimes de falsificação de documento e de três crimes de branqueamento, ficando o Tribunal Central de Instrução Criminal obrigado a refazer tal decisão.
A decisão: “Os juízes não ficam impedidos só porque os arguidos assim o entendem”
O relator Celso Manata também tinha solicitado que o conselheiro Agostinho Torres fosse notificado para se pronunciar sobre o impedimento alegado por Sócrates, tendo aquele conselheiro afirmado que o arguido não tem razão: “E por isso não me declaro impedido”.
Celso Manata, que foi diretor-geral dos Serviços Prisionais durante os governos socialistas de António Guterres e de António Costa, ordenou aos serviços do STJ que notificassem José Sócrates do despacho de Agostinho Torres — um pormenor muito importante.
E, finalmente, a 28 de novembro, a conferência da 5.ª Secção proferiu a seguinte decisão:
- O acórdão de 20 de junho do relator Francisco Henriques é “irrecorrível”, de acordo com as regras do Código de Processo Penal;
- As nulidades sobre esse acórdão poderiam ter sido suscitadas no prazo de 10 dias, sendo que a apreciação feita pelo STJ seria “definitiva”. Ou seja, não poderia dar lugar à apresentação de novos requerimentos;
- Logo, o STJ apenas tinha de apreciar o requerimento de 2 de julho de José Sócrates. Tudo o que foi apresentado a 25 de julho e a 26 de setembro não seria apreciado pelo STJ;
- E o que decidiu o STJ sobre o que foi apresentado a 2 de julho? O mesmo que tinha decidido antes: havia um prazo de 10 dias para que a defesa de José Sócrates suscitasse o impedimento de Agostinho Torres e o mesmo não foi respeitado;
- Acresce — e agora aqui vem o pormenor da decisão do relator Celso Manata de notificar José Sócrates do despacho de Agostinho Torres de 30 de setembro — que o advogado Pedro Delille também deixou passar o prazo para colocar em causa o despacho de Agostinho Torres de não impedimento.
Celso Manata acabou por concluir o seu raciocínio assim:
Para existir um juiz impedido é necessário que o mesmo assim se tenha declarado ou, assim não tendo acontecido, que tenha existido decisão judicial que o declare impedido. Ou seja, os juízes não ficam impedidos só porque assim os arguidos o entendem”.
A história da (recente) aplicação do art. 670.º
Após dezenas de recursos, reclamações e incidentes de recusa de juízes ao longo dos últimos anos, que suspenderam sucessivamente a tramitação do processo para julgamento, a justiça portuguesa colocou um ponto final no que reconheceu agora serem manobras dilatórias do ex-primeiro-ministro. E para contrariar a estagnação da Operação Marquês bastou invocar um número: 670.º, o artigo do Código do Processo Civil contra as manobras dilatórias.
A aplicação do artigo 670.º começou a fazer escola com o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 20 de novembro. O juiz desembargador relator Francisco Henriques — que Sócrates já tinha também tentado afastar dos autos em junho — criticou duramente a litigância da defesa do antigo governante, acusando Sócrates de estar a “protelar de forma manifestamente abusiva e ostensiva a sua submissão a julgamento”. Como tal, recorreu àquele artigo do Código do Processo Civil com aplicação subsidiária no processo penal.
As consequências foram simples e imediatas: futuros incidentes processuais manifestamente infundados passam a ser decididos num processo à parte (com efeito devolutivo) e o despacho de pronúncia para julgamento de José Sócrates e mais 21 arguidos (17 individuais e quatro empresas) pela prática de 118 crimes deve baixar à primeira instância para ser executado, uma vez ultrapassadas as questões que estavam então pendentes no Supremo.
“Não é processualmente admissível a transformação de um processo judicial num interminável carrossel de requerimentos/decisões/recursos em que, sucessivamente, em todos os patamares de decisão judicial, são suscitadas, circularmente, sem qualquer fundamento real, sucessivas questões (…) até, enfim, à prescrição do procedimento criminal”, lê-se no acórdão da Relação de Lisboa a que o Observador teve acesso.
Apenas oito dias depois, agora no Supremo Tribunal de Justiça, o já famoso artigo do Código do Processo Civil voltou a ser utilizado na decisão de 28 de novembro acima citada, para recusar nova reclamação do ex-primeiro-ministro contra a rejeição de um incidente de recusa de juiz.
Esta era a última questão pendente no Supremo e o processo só não pode seguir já para julgamento, porque uma decisão de 26 de outubro do vice-presidente do STJ Nuno Gonçalves, que foi conhecida apenas na última semana, deu razão a uma reclamação da defesa de José Paulo Pinto de Sousa, primo de José Sócrates.
Em causa estava a admissão de um recurso contra o indeferimento de nulidades invocadas na sequência do acórdão de janeiro de 2024 da Relação de Lisboa que pronunciou o primo de José Sócrates para julgamento por dois crimes de branqueamento no processo Operação Marquês.
O recurso tem de subir ao Supremo para se analisar uma suposta composição irregular do coletivo composto pelas desembargadoras Raquel Lima, Micaela Rodrigues e Madalena Caldeira que assinou a pronúncia. Trata-se de uma alegada irregularidade já apontada antes pelas defesas — e que José Sócrates não se cansa de repetir, como fez novamente nos sucessivos requerimentos rejeitados pelo Supremo a 28 de novembro — e refutada pelo Conselho Superior da Magistratura.
Por exemplo, as desembargadoras Raquel Lima, Micaela Rodrigues e Madalena Caldeira rejeitaram tais argumentos na sua última decisão tomada a 2 de maio.
O recurso de José Paulo Pinto de Sousa é, neste momento, o que impede a baixa dos autos da Operação Marquês para a primeira instância para que um tribunal coletivo possa julgar o caso. Resta saber o que fará o desembargador relator Francisco Henriques, que terá de admitir o recurso do primo de José Sócrates: aplica novamente o art. 670.º do CPC ou dá um efeito suspensivo ao recurso?