Raquel Brito chegou a casa numa cadeira de rodas a 26 de agosto de 2020, depois de 11 dias internada no Hospital Garcia de Orta, em Almada. Aos 40 anos, teve um AVC hemorrágico causado pelo rompimento de um vaso cerebral que conduz o sangue para o cérebro, sem causa conhecida. Não tinha fatores de risco.
Maria de Lurdes e João Brito mudaram-se para casa da filha que fica perto de onde moram, a 700 metros de distância, na Moita, distrito de Setúbal. Tratavam dos cães, Nina e Lobito, compraram uma cama para se instalarem, reorganizaram as suas vidas. Compraram uma cadeira para que a filha pudesse tomar banho, porque não conseguia manter-se em pé, e uma salamandra, que já estava debaixo de olho, devido à sua extrema intolerância ao frio. Mudaram a disposição de alguns móveis para facilitar a circulação. Estavam ali para o que for preciso. O tempo que for necessário.
Nessa altura, Maria de Lurdes tratava das coisas em casa, refeições, limpezas, roupas e tudo o mais que fosse preciso fazer. João Brito levava a filha onde fosse necessário para a sua recuperação. “Era o ‘Uber-pai’”, diz ele. Disponibilidade 24 horas. “Quando saiu do hospital, disseram-lhe que devia começar a fazer a rotina normal para não estar tão dependente”, recorda João Brito. Assim foi. Meses mais tarde, um segundo embate, mais exames, outra má notícia: um cancro na tiroide. Cirurgia no IPO de Lisboa em outubro de 2021. A cicatriz que tem no pescoço é mais uma prova de vida. A rede que construiu à sua volta tem sido essencial para a recuperação.
Vânia Silva
“Da minha casa vejo a dela. Ficámos amigas, estamos próximas, somos da mesma geração”
Vânia mudou-se há dois anos e meio para a mesma rua. O mundo é pequeno, conhecia o pai de Raquel do banco onde ele trabalhava, era seu gestor de conta, soube que a filha não estava bem de saúde, perguntou o que tinha acontecido, percebeu que o que correu mal até tinha, de alguma forma, corrido bem. Conheceram-se e trocaram contactos. “Da minha casa vejo a dela”, conta depois de mais um dia de trabalho com o fim de semana a bater à porta “Ficámos amigas, estamos próximas, somos da mesma geração.”
Como vizinha, conhece-lhe os hábitos e está atenta, agora que Raquel voltou a viver sozinha. Estores para baixo depois do meio-dia e telefona-lhe para saber se está tudo bem. Algum ingrediente que falte para uma refeição, tocam à campainha uma da outra. Raquel oferece-lhe limões e laranjas, com jeito para trabalhos manuais e com a veia criativa que tem, já fez embalagens de doces e uma caixa para gatos para a pequena Diana, filha de Vânia. Desde que moram lado a lado, é convidada para a festa de aniversário da criança.
Ao dispor para o que é necessário, para qualquer desenrasque. O marido já foi lá casa trocar umas lâmpadas à vizinha. Os cães de Raquel e o cão que Vânia tem agora são pretexto para dois dedos de conversa. Há outros assuntos quando se encontram. “Quem não sabe, não imagina que lhe tenha acontecido algo tão dramático, ela não mostra essa fragilidade.”
Ricardo Sant'Ana
"Quando estávamos internados, nunca carpimos muito as mágoas das nossas dores. Fazíamos o melhor que conseguíamos”
Raquel dá entrada no Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão a 6 de outubro de 2020, mais de mês e meio depois do AVC hemorrágico, causado pelo rompimento de um vaso cerebral que conduz o sangue para o cérebro. Ricardo Sant’Ana estava lá internado, a meio do seu tratamento de uma doença neurológica. Conheceram-se, ficaram amigos.
“Entrou para o mesmo serviço onde eu estava.” Lembra-se de ter ficado impressionado com a chegada de alguém que tinha tido um AVC aos 40, tão nova. “A maior parte das pessoas que estavam ali com AVC eram mais velhas.” Entenderam-se bem, eram tempos difíceis, de Covid-19, quase sem contacto com o mundo exterior, a não ser por telemóvel. “Duas pessoas praticamente da mesma idade, da mesma geração, fechadas, internadas, numa altura de pandemia, com visitas condicionadas, houve ali um entendimento e nasceu assim uma amizade”, recorda.
“A Raquel entra pelo próprio pé – não que isso retire gravidade ao que lhe aconteceu –, a parte afetada estava um bocado mais paralisada.” Ricardo percebeu que não era uma doente comum. “Uma pessoa muito alegre, bem-disposta, que se dava bem com toda a gente e queria ajudar toda a gente que precisava.” Com jeito para trabalhos manuais e bastante criativa, Raquel preparou a comemoração do Halloween ao fazer fantasias, bruxinhas sobretudo, com o que tinha ali, papel de limpar as mãos, sacos plásticos brancos e pretos. Fez bonecos de neve e decorou o quarto e cadeiras de rodas com bruxas e bonecos de neve, e ainda chegou a fazer pais-natal com sacos de plástico pretos e fraldas lá dentro.
A amizade permanece. Trocam mensagens regularmente, perguntam um pelo outro, querem saber como vai a vida, como vão os progressos. Se um liga e outro não atende, segue mensagem. Quando a chamada acontece são longos minutos ao telemóvel. Encontram-se sempre que Raquel vai a Alcoitão, pelo menos de quatro em quatro meses. Quando estavam internados, as conversas, a partilha de tantas angústias e muitas incertezas foram essenciais para os dois naquele momento das suas vidas. “É uma pessoa positiva, de bem com a vida. Quando estávamos internados, nunca carpimos muito as mágoas das nossas dores, fazíamos o melhor que conseguíamos”, recorda Ricardo Sant’Ana. Raquel saiu de Alcoitão a 1 de dezembro de 2020, quase dois meses de internamento. E continuou a recuperação.
António Raposo
"É muito importante manter os laços. Que as pessoas que estavam continuem a estar”
António conheceu Raquel num call center onde trabalharam juntos alguns anos. Tornaram-se amigos, daquelas amizades que, segundo Raquel, confirmam o ditado que “quando se está mal é que se conhecem os verdadeiros amigos”. Trocam mensagens quase todas as semanas, conversam regularmente, desabafam tristezas, partilham alegrias. Se há filme que querem ver no cinema, desafia-a a ir – foram ao Fórum do Montijo há uns meses. Não se lembram do que viram, mas “a companhia era o mais importante”.
Soube do AVC através de uma mensagem de uma colega de trabalho. Não queria acreditar, demorou uns dias a processar. “A Raquel foi sempre muito ativa, praticava desporto, não fumava, sempre com muita energia. Inicialmente, foi um choque, ainda por cima numa idade tão jovem.” Mandou-lhe uma mensagem uns dias depois sem saber se haveria retorno. A resposta acabaria por chegar. “Respondeu-me com áudio, notava-se alguma dificuldade na voz.”
Manteve-se atento, em contacto para estar a par do que se ia passando, tentando perceber se e como poderia ajudar. Estar perto sem impor. Respeitar o espaço mas disponível para o que fosse preciso. Na primeira visita após o AVC não sabia muito bem o que esperar. Viu a amiga de sempre em casa, na Moita. “Apesar de todas as dificuldades, aquela pessoa era a Raquel, a lutar e a tentar melhorar o mais rapidamente possível, aceitando os processos.” A ultrapassar a situação com persistência e com a postura de sempre, com otimismo e energia. “Estava melhor do que pensava”, garante António. Melhor na voz, frases mais completas, mais vocabulário, muitos dias e meses de fisioterapia para trás e para a frente.
De vez em quando António atravessa o Tejo para se verem. Hoje, quando olha para ela, saber que por fora não se nota aquilo por que passou e por que passa. Mas, bem lá dentro, sabe as batalhas da amiga, a vida que mudou, a ausência de gente. “É muito importante manter os laços. Que as pessoas que estavam continuem a estar”, diz ele.
Ana Costa
“Trabalhámos o equilíbrio, a paralisia facial, a força do lado afetado. Era preciso colocar-se de pé, ter mais autonomia”
A reabilitação não pára e recomeçou após a chegada do hospital com fisioterapia intensiva, de segunda a sexta-feira, em casa. Ana Costa foi a primeira fisioterapeuta de Raquel, encontrou-a numa cadeira de rodas, com dificuldades de equilíbrio, o lado direito paralisado. Entendia o que tinha de fazer, falava e compreendia, queria recuperar, não pretendia perder tempo, tomava banho sozinha, preferia assim, mesmo que tivesse de se ensaboar só com uma mão, com calma e com tempo. A mãe limpava-a com a toalha porque Raquel não percebia se o corpo estava seco ou molhado. Fizeram uma pequena rampa de acesso da porta de casa para o quintal, ainda era verão, estava calor, havia que aproveitar o ar livre para que os exercícios não fossem apenas dentro de casa. Ainda era tempo de máscaras devido à pandemia.
“Trabalhámos o equilíbrio, a paralisia facial, a força do lado afetado, a transferência da cadeira de rodas para o sofá, para a cama, para a casa de banho”, recorda. Ana tinha mais um domicílio na agenda e uma doente bastante motivada. Os objetivos estavam traçados. “Colocar-se de pé, ter mais autonomia, mais funcionalidade nas atividades básicas do dia a dia.” Fizeram-se alterações em casa para que ficasse o mais adaptada possível às novas necessidades. “Estratégias de adaptação, otimizar mais o espaço para usufruir mais da casa.” No exterior, Raquel fazia exercícios com um colchão na relva e pequenas caminhadas passo a passo.
A janela terapêutica é essencial. “As primeiras semanas são muito importantes, o cérebro tem maior capacidade de reaprendizagem”, diz Ana Costa. É a neuroplasticidade, essa competência a funcionar. “É muito importante para quem sofre um AVC que seja visto na parte de reabilitação o quanto antes. Quanto mais cedo, melhor são os resultados.” Foi o caso de Raquel que não desistiu, que cumpria o que tinha de ser feito. “Era persistente, repetia os exercícios, dava o litro naquela hora e meia e, durante o resto do dia, ia insistindo bastante, e isso faz muita diferença.” A fisioterapeuta viu muita coisa naquelas semanas, antes de Raquel dar entrada no Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão. “Motivação, colaboração, e boa disposição no meio de um quadro muito repentino. A vida complicou-se e, de um dia para o outro, ficou completamente dependente de terceiros.” Mas Raquel voltou a andar. E as seis semanas que Ana passou com ela foram essenciais para isso.
Sónia Manzarra
“A Raquel é muito disciplinada. E é das poucas que estão cá para contar a história”
Há ano e meio que Sónia Manzarra acompanha Raquel. Inicialmente uma vez por semana, agora de 15 em 15 dias. Encontrou-a motivada, mas com perda de autoconfiança, um desnível no ombro direito, os últimos dois dedos da mão direita ora em garra, ora esticados ao limite, um movimento desarticulado do pé direito. Os objetivos eram claros: estimular o toque, trabalhar questões sensoriais e diferentes texturas.
“Todo o lado direito, desde o couro cabeludo ao dedo do pé, ela não sente. Mas mesmo não sentindo, trabalho como se sentisse.” Até quando aquela pergunta lhe saía pela boca: “como trabalhar aquilo que não se sente”? Essa é uma das funções de uma terapeuta ocupacional que facilita e capacita para as atividades do dia a dia, que se perdem por alguma condição clínica, seja motora ou cognitiva, emocional ou social.
Sónia sabe o que acontece num AVC. O peso da língua, as palavras que se arrastam, a voz que não sai. O acidente vascular cerebral dá-se num lado e afeta o outro, a paralisia de uma parte do corpo, a pressão do sangue, o derrame. Sabe também como funciona a Via Verde do AVC, que permite uma triagem antes da chegada ao hospital e um acompanhamento rápido nesta condição, como aconteceu com Raquel. “As primeiras 48 horas são fundamentais para que não haja perdas, para manter o que não foi perdido, porque ganhos não há.”
Sónia usa várias técnicas como uma bacia com sementes, feijões e grãos, para Raquel meter o pé, a mão, agora anda com uma meia cheia de sementes calçada no pé direito. “Para estimular a nível arterial, tanto a circulação venosa quanto arterial”, explica a terapeuta ocupacional que a aconselhou também a usar diferentes esponjas no banho, além dos habituais exercícios de sentir diferente texturas, como o algodão. Mesmo falando bem, entendendo-se tudo o que diz e explicando o que pretende dizer, há pressão para articular melhor a fala. Sónia Manzarra não facilita.
Raquel tem sensibilidade extrema ao frio, o corpo fica rígido como se fosse pele de cortiça. Não sente o calor, pode queimar-se na cozinha, pode cortar-se e não sente. “Temos trabalhado exaustivamente a sensibilidade geral.” Se não fizer, ela sabe que só se prejudica. A abordagem é holística, sempre a tentar perceber o que fazer com os ganhos que vai tendo. “É muito disciplinada”, garante a terapeuta ocupacional que comenta que Raquel é um caso de uma reabilitação atípica, nada normal, depois do AVC hemorrágico. “É das poucas que está cá para contar a história.”
Nuno Nunes
“A nossa história começa com uma empatia enorme. Mas soube logo que tínhamos muito trabalho à frente"
A fisioterapia é sagrada. Se Ana Costa foi importante numa primeira fase de recuperação, ao longo de seis semanas, Nuno Nunes tem sido essencial na rotina diária, depois do internamento em Alcoitão, na clínica de medicina física e reabilitação Moifisa, na Moita. “A nossa história começa com uma empatia enorme.” No primeiro dia, quando a viu sair do carro com a ajuda do pai e a fazer o trajeto até à clínica, percebeu que ela tinha, recorda “um défice muito significativo ao nível do equilíbrio. Tínhamos muito trabalho pela frente”.
O objetivo era fazer terapia intensiva. De uma hora em cada sessão, chegou gradualmente às cinco horas consecutivas. “A Raquel é extremamente disciplinada, uma paciente altamente comprometida com o tratamento, sempre muito focada, com uma postura de participação muito ativa, sempre a perguntar o que pode fazer em casa.” Começam os exercícios de destreza, coordenação e fortalecimento dos membros, a trabalhar o equilíbrio. Três sessões por semana. A recuperação corre bem na fisioterapia. “É uma rapariga, face ao que viveu, muito alegre, muito participativa, comunica com outros pacientes, partilha a sua história, ouve outras histórias, nunca foi de se lamentar, sempre positiva face ao seu problema”, observa o fisioterapeuta.
Neste momento, faz reeducação postural global, uma a duas vezes por mês, com Nuno Nunes. “Avaliamos a postura da Raquel, cervical, ombro, cotovelo, mão, membros inferiores. Interpretamos a causa dos desalinhamentos dessas articulações, levamos os músculos a um limiar de um estiramento prolongado”, explica. É isto que está a fazer, alongamentos em postura, 30 minutos a alongar numa posição, 30 minutos noutra, com atenção à respiração, à contração muscular. “A Raquel tem sido emocionalmente forte durante todo este processo e isso manifesta-se na sua recuperação”, sublinha.
Miguel Grunho
“Não tínhamos e continuamos a não ter uma causa para o AVC da Raquel”
O AVC hemorrágico de Raquel, com hemorragia intracerebral, numa pessoa com 40 anos, não é muito habitual. Não havia fatores de risco, não era hipertensa, não fumava, não tinha excesso de peso, exercitava o corpo, caminhava. Nada faria prever o que aconteceu naquele feriado de agosto. O médico neurologista Miguel Grunho acompanha Raquel no Hospital Garcia de Orta, interessado nesta história invulgar. Um estudo de caso. “Não tínhamos e continuamos a não ter uma causa para o AVC da Raquel”, revela. Mesmo depois da investigação e análises médicas feitas à volta da situação. “A hemorragia intracerebral não é o mais habitual e é mais difícil de justificar.” É o caso.
Mas havia outro problema. Na angio-TAC que fizeram na urgência, quando Raquel deu entrada com o AVC a 15 de agosto de 2020, nesse exame que analisa os vasos do pescoço, que começa mais abaixo na aorta e vai até ao cérebro, apanhando a região cervical, que procura tumores, foi detetado um nódulo na tiroide. O nódulo poderia ter passado despercebido e não ter sido referido clinicamente. Mas foi e essa referência foi devidamente valorizada, se tivesse sido ignorada, o quadro teria sido pior. “Houve uma sequência de eventos que acabaram por funcionar bem”, diz o médico.
Raquel teria de fazer mais exames, e fez, detetaram-lhe mais nódulos. E vem a má notícia: um cancro na tiroide. É encaminhada para o IPO de Lisboa, onde é operada em outubro de 2021, pouco mais de um ano depois do AVC. Com um AVC e um cancro na história clínica, o neurologista Miguel Grunho quis perceber se havia uma relação de causa e efeito entre os nódulos na tiroide e o que se tinha passado no cérebro de Raquel, a hemorragia intracerebral no AVC hemorrágico, e relacionar esses dois aspetos. Ou seja, adianta, perceber qual o mecanismo que estaria aqui em causa para evitar um novo evento, prevenir para não acontecer novamente.
Mais e mais exames, a colheita de urina durante 24 horas foi um deles, nada de conclusivo. A relação de causalidade entre o AVC e o cancro não é confirmada, não se pode dizer que uma situação provocou a outra. Sem resultados, portanto. “Até ao momento, não conseguimos conectar os pontos”, observa o especialista. Seja como for, atualmente, o Garcia de Orta faz exames à tiroide em casos de AVC, sempre que clinicamente faça sentido. Até porque o que aconteceu a Raquel pode repetir-se com outra pessoa, um primeiro problema, um segundo embate. “Não nos esquecemos de olhar com atenção para a tiroide”, garante o neurologista.
Miguel Grunho não deixa de destacar o modo de estar da sua doente durante todo o processo, apesar das várias más notícias que teve de lhe dar. “Compreendia, percebia, fazia as suas questões, o que vamos fazer para melhorar, para resolver, para andar para a frente, sempre focada muito mais na solução do que no problema.” “Ela aguentou-se estoicamente com otimismo e positividade”, garante. “Acabou por recuperar das suas maiores limitações. Tem havido bastantes desafios no seu caminho, mas tem sido uma pessoa muito otimista.” A presença da mãe e do pai tem sido fundamental. “Os pais da Raquel entendem o que está em causa e a seriedade das coisas”, refere. “Não me vou esquecer tão cedo deste caso”, confessa o médico.
Ricardo Brito
“Recebo uma mensagem da minha mãe. Foi um choque. E agora? O que é que eu faço?”
Ricardo Brito, o único irmão de Raquel, um ano e oito meses mais velho, vive a milhares de quilómetros de distância, num outro país. “Recebo uma mensagem da minha mãe. A Raquel está no hospital, teve um AVC. Foi um choque. O que faço agora? Meto-me num avião?” Estava na Irlanda, onde vive e trabalha há vinte anos. Ficou perturbado, sempre em contacto com os pais para saber da irmã, com o coração apertado, optando por não se enfiar num avião à pressa. “Estou longe, mas estou perto. São duas horas de voo”, diz através de uma videochamada o irmão, amigo e confidente de Raquel.
Falam de tudo, contam todas as coisas um ao outro, das suas vidas, dúvidas e certezas, angústias e felicidades, medos e alegrias. O que há de mais íntimo e profundo. Muitas vezes, é o primeiro a saber novidades pela irmã. Todos os domingos, a família conversa pelo ecrã do computador em momentos demorados para saberem uns dos outros, para colocarem a conversa em dia.
Depois do AVC, os dias foram difíceis para Ricardo que mantinha a esperança de que tudo iria correr pelo melhor com a irmã extrovertida, conversadora, bastante destemida. “Ela foi realista em relação ao que estava a acontecer, mas sempre com aquela ideia de não ficar parada, que ia melhorar.” As mensagens tornam-se diárias, como ela está, como não está, como corre a recuperação. A doença, mesmo à distância, teve impacto emocional e uma maior disponibilidade para a ouvir a qualquer altura.
João Brito e Maria de Lurdes
“A minha filha estava sentada, a tentar vestir-se, a desfalecer para o lado esquerdo, a ir pelo sofá abaixo.”
Dia 15 de agosto de 2020, feriado, fim de tarde. Maria de Lurdes anda na sua vida quando recebe um telefonema da filha que mora sozinha ali ao pé. Raquel diz-lhe que não se está a sentir bem, há qualquer coisa esquisita no corpo, um formigueiro estranho. Do outro lado da linha, coração desassossegado, Maria de Lurdes diz-lhe que o pai vai já ter com ela para ver o que se passa. João sai disparado para casa da filha, são só 700 metros, abre a porta e depara-se com ela na sala. “A minha filha estava sentada, a tentar vestir-se, a desfalecer para o lado esquerdo, a ir pelo sofá abaixo.” São sete da tarde.
Nesse dia, Raquel tinha cozinhado uma quiche para se encontrar com um grupo de colegas com os devidos cuidados por causa da pandemia. Preparava-se para sair. “Estava a tomar banho, a limpar-se, sentiu uma dormência no braço, achou estranho, achou que podia ser do esfoliante que tinha usado, começou a notar alguma coisa”, lembra o pai. Antes de ele chegar, Raquel ainda enviou uma mensagem para uma amiga a informar que não se sentia bem. João liga para o 112 que não demora a chegar, segura os dois cães da filha, Nina e Lobito, que estavam no jardim, para facilitar a entrada de quem vem socorrer. Lembra-se bem desse dia. “A bombeira perguntou-lhe se estava a tomar medicação e já não se entendia o que ela dizia, as palavras não saíam.” Raquel é levada para o Hospital Garcia de Orta, em Almada, onde dá entrada pela Via Verde do AVC pouco antes das oito da noite. O pai segue a ambulância no seu carro.
Quando se olhou ao espelho, Raquel não percebeu que estava a ter um AVC, não viu a cara ao lado, não tinha noção de que estava a perder força depois do banho. Fez terapia da fala no Garcia de Orta e em Alcoitão. “Telefonávamos todos os dias, tínhamos meia hora para a ver através de um acrílico, falávamos com ela com uma máscara no hall de entrada de Alcoitão”, recorda Maria de Lurdes. As visitas eram condicionadas, tempo de pandemia. João lembra-se de uma outra coisa, de levar uma escova de dentes para a filha. “Para fazer exercícios, massagem facial com a escova de dentes.”
Na altura do cancro da tiroide, em outubro de 2021, voltaram a casa da filha para ajudar em mais uma etapa de recuperação, mais uma fase de reabilitação. Neste momento, a situação está controlada, teve consulta há dois meses, não há razão para preocupação, disseram-lhe, é constantemente vigiada, tem consultas de seis em seis meses. João emociona-se, por vezes, quando volta a um passado pesado. Maria de Lurdes encara o que aconteceu pela positiva. É do seu modo de ser. “Pensava: ‘ela vai estar assim, é um tempo passageiro’. Sempre acreditei que ia recuperar.” Há algum tempo que já não moram com a filha, ficaram debaixo do mesmo teto até fazer sentido para ela, continuam ali perto, são cinco minutos de carro. Num saltinho, estão em casa da filha. João Brito tem 71 anos, foi bancário, está reformado. Maria de Lurdes é doméstica e tem 69 anos.
Raquel Brito
"O cérebro é o músculo que mais devo trabalhar para que o resto do corpo se lembre da metade que foi perdida”
Teve um AVC hemorrágico aos 40 anos, ficou com o lado direito paralisado, sem sensibilidade do couro cabeludo à ponta do pé. “Naquele momento, não tive noção que estava a ter um AVC, olhei-me ao espelho, não vi a cara ao lado, não senti que estava a perder força”, recorda quando volta a esse 15 de agosto de 2020. Não fumava, não tinha excesso de peso, não era hipertensa, fazia caminhadas. A causa do AVC é desconhecida. Deram-lhe 84% de incapacidade. Tem agora 43, um corpo magro e uma cara sorridente. Não se queixa, não se lamenta. “Nunca me senti uma coitadinha.” Não é o seu modo de ser.
Tem formação em animação turística, trabalhou fora do país, em Palma de Maiorca, voltou a Portugal, esteve num call center. Estava desempregada no momento do AVC, tinha tirado um segundo curso de informática do centro de emprego, ia começar um novo trabalho em setembro de 2020. Cinco meses depois do AVC, um cancro da tiroide, foi operada no IPO de Lisboa. Mais reabilitação pela frente.
Continua a recuperar em vários momentos do seu dia com planos de reabilitação traçados à medida. Fisioterapia, terapia ocupacional, massagens, hidroterapia, reeducação postural global, acupuntura na área neurológica com electroestimulação. “O cérebro é o músculo que mais devo trabalhar para que o resto do corpo se lembre da outra metade que foi perdida”, diz. Sempre focada no que tem de fazer. “Se não faço, só me prejudico.”
A vida continua. Raquel adora animais, a gata Malhadinha anda pela casa, há mais gatos lá fora, um que se cola à janela da cozinha, os cães andam pelo jardim e pelo quintal. De vez em quando, faz voluntariado numa associação de proteção de animais, O Abrigo das Mãozinhas. Há um ano, voltou a conduzir. À porta de casa, está o respetivo sinal de trânsito para o seu veículo adaptado, de mudanças automáticas.
Nesse março de 2023, o senhor do stand chegou para lhe dar todas as indicações de condução e foi uma alegria imensa do que aquele momento significava, do que aquele acontecimento representava. Era muito mais do que voltar a ter um volante nas mãos. Era muito, muito mais do que isso. Era recuperar uma função julgada perdida, era o vislumbre da autonomia. “A primeira vez que foi conduzir, chorava eu e chorava ela dentro do carro”, lembra João Brito. Raquel confirma. “Foi uma emoção muito grande, o meu pai a chorar, eu também.” Em todo o caso, a alcunha de “Uber-pai” mantém-se até hoje (e bastante atual quando é preciso). Aos 43 anos, Raquel continua a recuperar. E tem muito trabalho pela frente.
Arterial é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com doenças cérebro-cardiovasculares. Resulta de uma parceria com a Novartis e tem a colaboração da Associação de Apoio aos Doentes com Insuficiência Cardíaca, da Fundação Portuguesa de Cardiologia, da Portugal AVC, da Sociedade Portuguesa do Acidente Vascular Cerebral, da Sociedade Portuguesa de Aterosclerose e da Sociedade Portuguesa de Cardiologia. É um conteúdo editorial completamente independente.
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