René Keet é psiquiatra e diretor do serviço comunitário de saúde mental GGZ-Noord-Holland-Noord, nos Países Baixo. É também o diretor da Academia FIT (Flexible, Innovative Top-ambulatory), que dá formação e apoio a projetos internacionais de cuidados de saúde mental comunitários, e presidente da EUCOMS, uma rede europeia de serviços comunitários de saúde mental.
Se lhe tivessem perguntado há vinte anos qual era o seu foco, teria respondido psicose, mas foi nessa altura — e uma coisa não está desligada da outra — que se envolveu na abordagem comunitária da saúde mental e na mudança que isso implica na organização dos serviços e cuidados nesta área. É a esse trabalho que se tem dedicado — nos Países Baixos e em toda a Europa.
É presidente da rede europeia EUCOMS (European Community Mental Health Service Providers). Que rede é esta e o que faz, ao certo?
Somos uma comunidade de serviços de saúde mental de toda a Europa que querem aprender uns com os outros e partilhar as suas práticas. Trata-se de conhecimento que não se encontra nos livros, mas sim na prática diária. Temos membros participantes desde a Noruega a Portugal, da Irlanda à República da Moldávia e vemos a saúde mental comunitária como uma abordagem abrangente e integrada. O tema é demasiado vasto para ser tratado apenas pelos serviços de psiquiatria, diz respeito a todos nós. Por isso, defendemos uma abordagem em que o hospital psiquiátrico deixa de ser o centro dos serviços de saúde mental e esse lugar passa a ser ocupado pelos cuidados na comunidade, através das equipas comunitárias. São elas o coração dos cuidados.
A EUCOMS descreve seis perspetivas fundamentais que são a base desta abordagem. Que perspetivas são essas?
A saúde mental comunitária é, por definição, local. Pense em Portugal, por exemplo. A prestação de cuidados de saúde mental é necessariamente diferente se estivermos em Lisboa ou numa zona rural, porque o contexto e as circunstâncias são diferentes. É preciso conhecer a população. Há muitos idosos? Há muitos imigrantes de culturas diferentes? É preciso conhecer e lidar com o contexto local. Para isso, definimos seis perspetivas em que se baseiam os cuidados: defesa dos direitos humanos, adoção de uma perspetiva de saúde pública, foco na recuperação, intervenções eficazes baseadas na evidência, promoção de uma rede alargada de suporte na comunidade e experiência dos pares.
Mas acha que os direitos humanos são ameaçados nos cuidados tradicionais de saúde mental?
De certa forma, sim. A defesa dos direitos humanos das pessoas com problemas de saúde mental é o primeiro e mais importante princípio, mas acho que não nos preocupamos o suficiente com isso. Olhe o direito à liberdade, por exemplo: por vezes, restringimos a liberdade dos doentes. Há muitas questões éticas e morais que se colocam e compreendo o equilíbrio complexo que isto implica, mas retirar a liberdade é contra os direitos humanos. Mas é mais do que isso. É também o direito de acesso à saúde — sabemos que as pessoas com doenças mentais vivem menos tempo. E o direito de acesso à habitação, porque sabemos que as condições de habitação das pessoas com doença mental são piores. E o direito ao trabalho, porque as pessoas com doença mental têm mais dificuldades na integração no mercado de trabalho. Apesar de se poder dizer que, legalmente, somos todos iguais e temos todos os mesmos direitos, na realidade não é bem assim. Portanto, a defesa dos direitos humanos das pessoas com doença mental é um princípio basilar da nossa abordagem.
E porque é que é importante a perspetiva da saúde pública?
Eu sou médico e psiquiatra, fui treinado para, quando observo um doente no meu consultório, fazer um diagnóstico e, de acordo com este, prescrever um tratamento. Mas é preciso olhar mais além. Para o contexto, para a população, para a comunidade. E, De acordo com isso, perceber a área de influência que servem e ter uma perspetiva de saúde pública, de quais são as necessidades daquela comunidade, não só em termos de tratamento, como de prevenção. Podemos e devemos desempenhar um papel na prevenção dos problemas de saúde mental.
Outro dos pilares é a perspetiva da recuperação.
Sim, essa perspetiva nasce de um movimento nos EUA pelos direitos das pessoas com problemas de saúde mental que reivindicavam deixar de ser vistas como cidadãos de segunda e começaram a contar as suas histórias de recuperação. Percebemos que nós, profissionais de saúde mental, não éramos os heróis da história. Pelo contrário, por vezes éramos um obstáculo, vistos como controladores e desencorajadores. Isso trouxe uma grande mudança na forma de pensar a saúde mental. Os americanos têm sempre citações curtas e certeiras: “Go from what’s wrong to what’s strong” [“vai do que te faz mal para o que te faz forte”, em tradução livre]. É olhar para a saúde mental para uma questão de objetivos, competências, força e por isso a recuperação é um conceito muito útil e importante, sobretudo combinada com a eficácia da intervenção baseada na evidência, que nos leva à metáfora do azeite e do vinagre.
Azeite e vinagre?
Sim, a abordagem da recuperação e a abordagem da eficácia ou da medicina baseada na evidência combinadas, como o azeite e o vinagre, que juntos são um excelente tempero, trazem bons resultados. O quinto princípio é a abordagem em rede, uma rede ampla em que estão integrados os cuidados de saúde primários, a ação social e toda a comunidade, cada um com um papel a desempenhar no trabalho em conjunto. E, por fim, a experiência vivida, a experiência dos pares, que é um recurso fundamental. Todos temos a nossa experiência de vida, eu tenho a minha, você tem a sua, e as pessoas com experiência de problemas graves de saúde mental podem tornar-se especialistas e ajudar os outros com base na sua experiência, por isso lhes chamamos especialistas.
São estes então os seis princípios. Em síntese, a saúde mental comunitária é uma abordagem à saúde mental na comunidade, utilizando os recursos da comunidade, para garantir os direitos humanos das pessoas com doença mental.
Trabalha com este modelo há vinte anos, dá formação e ajuda outros países e serviços a implementá-lo. É neste sentido que caminham os cuidados de saúde mental nos países desenvolvidos. Em Portugal andamos a falar disto há mais de vinte anos e só agora estamos a avançar no terreno com as equipas comunitárias de saúde mental. Quais são as dificuldades de tornar este modelo universal?
A saúde mental é uma questão complexa. Podemos fingir que é simples, mas não é, envolve questões psicológicas, biológicas, sociais, com interações complexas entre si. Por outro lado, durante mais de um século, organizámos os nossos serviços de forma exatamente oposta à comunitária, que é multidisciplinar, interdisciplinar e descentralizada. O modelo típico do século XIX baseou-se na construção de asilos e grandes hospitais psiquiátricos, muitas vezes em lugares remotos e longe da comunidade. As intenções eram boas: se déssemos às pessoas um lugar sossegado, elas melhorariam. Mas não foi isso que aconteceu. Estas grandes instituições tornaram-se o coração dos cuidados de saúde mental e os profissionais, especialmente os psiquiatras, mas também os enfermeiros e os assistentes sociais, identificam-se, de certa forma, com esse modelo. Portanto, apesar de podermos ter as mesmas ambições – tratar as pessoas com doença mental e ajudá-las a ter uma vida melhor –, nem sempre se aborda a complexidade da questão, porque fomos formados com base num modelo estritamente médico, em que se faz um diagnóstico e, com base nesse diagnóstico, dá-se tratamento e o doente melhora (ou não). A realidade é demasiado complexa para um modelo tão simples.
E a melhor forma de lidar com essa complexidade é este modelo comunitário?
Exato. Não é fácil para todos, mas é absolutamente possível e por isso é que são tão importantes os seis princípios universais que referi. Apesar de existirem grandes diferenças entre as várias regiões e os conhecimentos especializados necessários, há também questões fundamentais comuns a todos os contextos. Assim, por exemplo, a importância de desenvolver trabalho e ações de proximidade, em vez de se sentar atrás da secretária à espera de que o doente chegue, é a abordagem universal mais importante.
Outra coisa fundamental é ter uma equipa multidisciplinar. Não apenas psiquiatras e enfermeiros, mas uma equipa mais diferenciada, com psicólogos, assistentes sociais e peer expertise (pessoas com doença mental em recuperação, especialistas pela sua experiência), com diferentes tipos de competências. Também universal é a importância de as equipas comunitárias de saúde mental e os hospitais trabalharem em conjunto e coordenarem esforços.
Outra coisa que nos ajudou nos Países Baixos foi termos construído um modelo e criado aquilo a que chamamos uma escala de fidelidade ao modelo, para que exista uma avaliação e verificação constante se estamos a trabalhar de acordo com o modelo.
E conseguem garantir que, por mais diferentes que sejam os contextos, os princípios base são observados?
Sim. Trata-se também de ligar equipas com trabalho semelhante em serviços semelhantes em diferentes partes do país, de forma que aprendam umas com as outras e partilhem conhecimentos e práticas. Na verdade, é isso que a rede europeia EUCOMS faz a uma escala mais internacional. Quando vou a outros países não vou como missionário para espalhar a palavra do modelo holandês. Posso contar a minha experiência e, muitas vezes, esta acaba por ser uma fonte de inspiração, mas incentivo-os sempre a construírem o seu próprio modelo e aprendo em cada país que visito. Em Portugal, por exemplo, quais são os desafios específicos e o que podemos aprender com isso nos Países Baixos? É isso que procuro.
Mas muito do seu trabalho tem que ver com influenciar políticas públicas na área da saúde mental no sentido de adotarem o modelo comunitário. Como é que se faz isso?
Em primeiro lugar, a mudança dentro do sistema consiste em passar do modelo do século XIX, com um hospital no topo, para um modelo mais igualitário em que as equipas comunitárias de saúde mental estão no centro dos cuidados e os hospitais são uma parte dessa rede. Mas qual pode ser o nosso contributo a nível da população? Há aqui um conceito chave que é fundamental e está em linha com o conhecimento científico mais atual que é o da normalização da doença, ou da saúde, mental. Ou seja, afastar-nos do modelo clássico de doença, segundo o qual a maioria das pessoas é saudável e há um pequeno grupo com este ou aquele diagnóstico psiquiátrico, e adotarmos uma abordagem muito mais dimensional, em que estas coisas possam ser vistas numa escala, com variações, que podem ir de não ter depressão a ter depressão grave e cada um de nós estará algures nessa escala e isso é normal.
E vê essa mudança acontecer?
Vejo que a mudança está a acontecer, mas é profunda e leva tempo. Nos Países Baixos, não foi desenvolvida de um dia para o outro: começou no final dos anos 1990, as primeiras equipas comunitárias de saúde mental avançaram em 2003, ou seja, há exatamente vinte anos, e foram evoluindo. E é importante estar sempre aberto a novas perspetivas. Os cuidados à distância, por exemplo, online: quando começámos o modelo, não era sequer uma possibilidade e agora tem um papel importantíssimo. Ou as pessoas com doença mental, com experiência vivida, que se tornaram especialistas (peer expertise) e hoje são um recurso fundamental do modelo. Na verdade, trata-se de ter um modelo, mas também a mente aberta para o avaliar, adaptar e mudar para melhor.
Em Portugal estamos agora a avançar com as equipas comunitárias de saúde mental e a meta estabelecida é ter quarenta equipas no terreno até 2025. Que conselhos tem para nos dar?
Descrevam o vosso modelo o melhor e mais pormenorizadamente possível e, com base nisso, criem uma escala de fidelidade ao modelo, mas evitando que este seja fechado à mudança, porque é isso que o fará evoluir. Olhem para as experiências de outros países e tenham uma mente aberta para aprender com o que está a resultar, mas também com os erros dos outros. Quando construímos o modelo nos Países Baixos, nos primeiros dez anos esquecemo-nos da mudança necessária nos hospitais psiquiátricos. Construímos apenas um modelo comunitário de saúde mental, mas os hospitais psiquiátricos ficaram na mesma. Esse foi um ponto fraco, que corrigimos mais tarde, estabelecendo uma forte colaboração entre os hospitais e as equipas comunitárias de saúde mental comunitária, que funcionam agora de forma integrada.
E corrigir sempre que isso seja necessário…
É preciso aceitar a complexidade e saber que provavelmente cometerão alguns erros brilhantes durante o processo. Mas quando isso acontecer é preciso não cair na tentação de voltar atrás, ao velho modelo familiar, mas sim aprender com esses erros e continuar em frente. Trata-se de descer do trono. Não é fácil, porque quando se está no trono há uma tendência natural para ficar lá. Mas isso é uma pedra no caminho, um travão à necessária mudança.
Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.
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