Aos 27 anos comprou aquela que é hoje revista de referência de gastronomia em Portugal, com 35 anos de publicação consecutiva. Corria 2001, as Torres Gémeas tinham acabado de cair, o desenvolvimento da tecnologia dava um salto e a internet começava a ser cada vez mais uma realidade presente. Comprar uma revista em papel nesta época? Foi o que fez, sem pensar duas vezes, com três anos de casa na Inter Magazine. Percebeu que em vez de sobreviver era preciso agir na sociedade portuguesa e reinventou-se. Criou as Edições do Gosto, organizou um conjunto de eventos e fez nascer um nicho no mercado, onde ainda hoje atua.
Fundador da Edições do Gosto, Paulo Amado é o homem por detrás de uma série de eventos que têm como objetivo valorizar os cozinheiros. Entre eles estão o Congresso de Cozinha, o Jovem Talento da Gastronomia e o Chefe do Ano. É sobre este último, cuja final decorre esta quarta-feira, que falamos na Manja. Situada num antigo armazém ferroviário em Marvila, é descrita pelo próprio como um lugar de cozinha, cultura, expressão artística, música, gastronomia e, acima de tudo, “uma casa de comeres e vida”.
Sentados à mesa e de kombucha no copo, Paulo Amado conversou com o Observador sobre os últimos 35 anos do maior e mais antigo concurso de cozinha português para profissionais, sobre a primeira gala do Guia Michelin em Portugal e sobre como gastronomia pode ser um campo de ação em sociedade, através de questões como a saúde mental, a diversidade cultural, a igualdade e a inclusão. Quanto à cozinha, uma coisa é certa: há que conhecer a oferta para poder refletir a paisagem no prato.
O concurso Chefe do Ano faz 35 anos este ano, como foi a sua evolução?
O concurso nasce em 1990, numa altura em que não existe valorização sob uma classe profissional, com esse mesmo objetivo. Nasce como um primeiro degrau para a valorização e, se olharmos hoje, acaba por ser um tipo de trabalho que contribuiu em BackOffice para o reconhecimento mediático que, entretanto, os chefes tiveram, até porque, hoje em dia, a quase totalidade dos chefes mediatizados estão ligados ao concurso. E através do seu modelo, o chefe do ano gerou sempre um bom reconhecimento pelos outros profissionais, pela classe.
[Já saiu o segundo episódio de “Matar o Papa”, o novo podcast Plus do Observador que recua a 1982 para contar a história da tentativa de assassinato de João Paulo II em Fátima por um padre conservador espanhol. Ouça aqui o primeiro episódio.]
E se falarmos de há 5 anos para cá?
O concurso durante muitos anos foi um lugar onde as pessoas iam apresentar o seu menu, que podia ter ou não produtos obrigatórios, e no qual podiam ir trabalhando ao longo do ano. Nos últimos 5 anos nós temos introduzido sucessivamente variações que não ajudam a dar uma extrema previsibilidade. Dá alguma, mas não dá extrema.
Porque é que o fazem?
Porque tem que ser um desafio em movimento constante. Porque a pessoa que ganha o concurso chefe do ano tem que ter esta capacidade e tem que ter a versatilidade de corresponder aos desafios que nós possamos fazer surgir.
Há algum momento de destaque destes últimos 35 anos?
Se eu tivesse que destacar o que é que aconteceu de relevante no Chefe do Ano nos últimos tempos foi que seguimos esta toada. Mantivemos como presidente António Boia, que é uma pessoa ligada a este mundo da gastronomia já há muitos anos, fomos renovando o júri no sentido de poder abrir e ter mais mulheres e ter a crescente vontade de representar diferentes perspetivas do que é a gastronomia. Nós não temos no júri do chefe do ano apenas um tipo de júri, um tipo de perfil gastronómico, temos vários. E depois mantivemos também acesa essa vontade de poder apresentar um desafio que ano após ano não se repete.
Como descreve o concurso?
Portanto, o chefe de cozinha do ano não é todo ele baseado na afirmação da contemporaneidade. É baseado na afirmação de uma ideia de portugalidade aberta. Ou seja, é a nossa identidade, o nosso produto, mas não é obrigatório usar só os produtos da nossa identidade. É sim obrigatório mostrar a versatilidade da capacidade culinária dentro daquela lógica de um artesanato culinário.
O que é que muda na vida do chefe que vence?
Para já, este é um reconhecimento entre os pares. E é um crescimento profissional. Fazem os seus pratos, estão a olhar os outros, expõem-se perante a classe e perante os jurados. E tudo isso é visto por eles como crescimento. E, portanto, depois gera reconhecimento por parte dos pares, por parte da classe e, com frequência, oportunidade profissional. Não é só um concurso de cozinha, é estares ali num determinado contexto que não é o teu normal, com o prazo, sendo avaliado por uns, sendo visto por outros, exposto a todos, a mostrar a tua capacidade profissional. É desafiante.
Porque escolheram Lamego para a final?
Uma das nossas causas tem a ver com a ideia de Portugal no seu todo. E nessa vontade de cumprir aquele ideal humanista, de podermos estar perante o acontecimento consciente e a usar os atos como ferramenta social, percebemos que o país não era só os grandes centros e, portanto, que podíamos e devíamos começar a exercer a nossa atividade fora dos grandes centros. Começámos a fazê-lo e decidimos que o Congresso de Cozinha tem a sua sede na região centro e que o Chefe do Ano tem a sua sede a norte. Temos feito no Porto e agora estamos a fazer pelo segundo ano em Lamego, que é interior, é Douro, mas onde existe também Portugal na sua força. É relevante poder fazer a afirmação deste tipo de temas que têm a ver com a identidade. Isto não é só comércio, isto é um acontecimento que, no local que acolhe, há uma obrigatória reflexão sobre o contexto envolvente.
Nos últimos anos os chefes têm valorizado mais o produto português e fomentado também a relação com produtores. É algo que se sente também no Chefe do Ano?
Primeiro, nós não somos um país tão grande, no entanto, temos uma diversidade boa de matéria-prima e que viaja muito facilmente. E hoje em dia estamos no domínio de uma cozinha de produto, em que o cozinheiro faz relativa transformação, e por isso o domínio atual da oferta culinária no país é uma cozinha de poder puxar ao máximo pelo produto, com confeções adequadas, mas ninguém procura a surpresa, como já aconteceu noutra altura. Procura a qualidade máxima, de devolver ao cliente a natureza. É pensar qual é a oferta gastronómica hoje na restauração e se estamos ou não a comer a paisagem. Se for uma oferta atenta, reflete a paisagem, que é a identidade e a cultura.
Porque é que isso acontece?
Porque os chefes agora estão, felizmente, muito apaixonados pela gastronomia portuguesa e pelo produto português. São pessoas conscientes de que estamos num país com alto potencial, mais vale puxar. Outra altura houve em que adorávamos o produto importado. E eventualmente até não existia tanta produção e tanta disponibilidade de produto nacional de qualidade. E, portanto, era uma conciliação entre algum produto nacional e outro importado.
Se falamos de produto, temos de falar de produção.
A produção é definitivamente fundamental. É bastante relevante que atenda ao respeito pelos solos, com vista a gerar bons produtos que podem ser esperançosamente bem acolhidos e transformados, do ponto de vista culinário, pelos cozinheiros. Já não se fala só do produto, fala-se também do território e da maneira como ele foi produzido. E isso é relevante porque é evidente que os agricultores são os próximos heróis.
Porquê?
Porque nós estamos mais disponíveis para os temas da saúde. Está toda a gente muito mais sintonizada e tem mais interesse em poder comprar de produtores que fazem uma produção que é sustentável, que não ofenda os solos, porque essa não ofensa é a garantia da continuidade.
Quais são os pilares das Edições do Gosto?
Nós temos as nossas causas escritas. São humanistas e têm a ver com a pessoa ao centro. Começámos por ter o conhecimento como primeira base e, depois, entrámos numa outra ideia mais aberta e temos a saúde mental. Temos o tema da diversidade cultural, da diversidade humana, das questões de género, do equilíbrio homem-mulher. Saliento, por exemplo, que o Congresso de Cozinha tem 50, 50, metade homem, metade mulher. Depois, quando fazemos os nossos programas, nós sabemos que os nossos atos têm impacto e cuidamos de fazer atos que esperançosamente sejam equilibrados para que esse impacto não seja só profissional nem especificamente na área do conhecimento. Queremos que seja social. Portanto, numa palavra, não somos neutros. Não estamos aqui perante um acontecimento com uma atitude meramente comercial. Acontecemos, mas temos uma vontade de que aquilo que façamos possa ter impacto na sociedade, impacto positivo.
Falou das questões de género, qual é para si a importância da igualdade e inclusão?
Então, vou levantar o tapete. Durante 32 anos, o concurso Chefe do Ano foi Chefe Cozinheiro do Ano e só teve homens brancos no júri. E houve uma altura que a gente disse: “Não pode ser”. Então, começámos a pôr mulheres e agora só entram mulheres. Esta revista só tem mulheres na capa já há muitos anos. Portanto, nós estamos conscientes do acontecimento. E isso aconteceu porque nós, enquanto empresa pequena na economia portuguesa, estávamos sempre a sobreviver e a dada altura percebi que a economia seria sempre dura e pensei “em vez de estar fixado em sobreviver na economia portuguesa vamos fixar-nos em agir na sociedade portuguesa”. Portanto, o que eu tenho a dizer é que é possível. E a prova de que é possível é que nós conseguimos fazer. De todos os eventos em que nós participamos procuramos isso. Eu não tenho grande interesse em dizer, eu tenho interesse em fazer.
Continua a ser um dos seus objetivos fazer a ponte entre os cozinheiros ou sente que o seu papel já está feito?
Eu acho que é bastante relevante continuar a agregar através de ideias, de eventos, de movimentos, como tenho feito, ao longo dos anos, em diferentes modelos. Acho que já está estabelecido aí um território comum, que as pessoas sabem que existe e como se manifesta. E depois tenho feito pontes. Eu fomento essa conexão entre os chefes, mas faço as pontes deles para outros territórios, para outras visões sociais, que ao mesmo tempo faz com que se afirme a visão deles, mas que eles também compreendam, tenham acesso, partilhem, exponham-se e que sejam expostos.
Está sempre atento às tendências ou tem facilidade para detetá-las?
A tendência é aquela vontade de antecipar o futuro, em que há mais consciência sobre de que maneira é que o presente já explica um caminho futuro. Eu próprio, enquanto participante ativo neste setor, também tenho a minha perspetiva do mundo, vou compreendendo as tendências de há muitos anos. Portanto, sim, interessa-me o tema das tendências.
Alguma tendência a destacar?
Sim, temos falado aqui bastante de uma ideia de produto e se eu tivesse que apontar uma outra tendência dominante, eu diria que é, no caso da gastronomia, a consciência da importância da produção e da transformação que interferem com uma ideia de cultura e de saúde.
E a tendência atual de termos um fine dining mais descontraído, são os chefs a adaptarem-se à sociedade?
Este é um exemplo perfeito daquilo que eu digo de como a sociedade influencia a gastronomia. Os humanos deste tempo dizem que eles é que determinam o que querem fazer com a sua vida e, portanto, é muito evidente que assistimos a uma informalidade na sociedade e que interfere com a restauração. Cresce, já há alguns anos, uma outra categoria que é uma conciliação entre o casual informal e o fine dining e então chama-se fine casual.
Continua com a opinião de que se vulgariza o termo gastronomia?
Sim, mas isso é um facto. A ideia da gastronomia é o exacerbar do produto com vista à alta satisfação. Diferente da alimentação, da cantina da escola em que eu vou lá e tenho ali a satisfação das minhas necessidades humanas. A alimentação tem a ver com a funcionalidade e a gastronomia tem a ver com o prazer. Há restaurantes dedicados à alimentação e há restaurantes dedicados à gastronomia, onde fazem operar a arte culinária sobre os produtos.
Na última edição da Inter Magazine diz que o Guia Michelin não é vida. Qual é a sua posição sobre as estrelas?
Existem vários prémios e guias internacionais e depois existe o Guia Michelin, que é uma ambicionada distinção pelos cozinheiros e que interfere positivamente no negócio. Há provas dadas que os restaurantes que ganham uma, duas ou três estrelas têm um incremento. Excelente para os restaurantes e para a gastronomia portuguesa. Acho, no entanto, que era bastante relevante que pudesse ser mais claro todo o modelo. Porque o outro lado disto, que é público, tem que ver com o bem-estar psicológico deste setor. Que é a pressão que as pessoas sentem por ambicionarem e não saberem como é que chegam lá. Como é que eu posso ter a estrela? Como é que eu mantenho? E, portanto, o tema do guia é este. Faz muito bem, obrigado, mas precisamos mais de saber como.
Esperava que nesta primeira gala do guia português houvesse uma mulher distinguida com uma estrela?
Esse é outro tema ainda e, infelizmente, a Marlene foi o objeto deste ano. “Aquela pessoa devia ter”, mas devia ter o quê se a gente não sabe como é que se tem? Portanto, uma opinião livre que nós damos cai pesadamente em cima de uma pessoa, principalmente porque muita gente a deu. Já não era só a boa restauradora, era a mulher que ia ser o arauto das mulheres e ia ser a primeira a ter. E, portanto, eu acho que era bastante relevante se nós pudéssemos ter mais luz sobre os critérios e esclarecer melhor as coisas. É só isso, porque essa falta de esclarecimento gera ansiedade.
Como vê a representatividade neste setor?
A maior parte dos restaurantes tem mulheres na cozinha. Existe é um conjunto de mulheres que ascenderam à possibilidade de representar o país. No todo, elas são muitas. Agora, aquelas que aspiraram a responder pelo país são poucas. E existe também um tipo de restauração que está mais em voga e que tem sido alvo de alguma atenção. É uma espécie de restauração dos chefes, mas que não é a restauração no seu todo.
Acha que o guia vai colocar Portugal no mapa?
Nós temos um sistema de reconhecimento nacional e temos um sistema de reconhecimento internacional. E eu acho que isso é tudo uma grande ilusão. Portanto, não devíamos preocupar-nos com isso. Devíamos simplesmente existir à procura de fazer o melhor.
Como vão as aulas de trompete?
Agora tenho uma banda mas continuo a ser estudante de trompete. Sou estudante a vida inteira. Mas toco lá um bocado. Chama-se Suma. Sou o segundo trompete e voz. Estamos a fazer a nossa afirmação, eles são altos profissionais de saxofone e trompete e eu, que já escrevia, escrevi umas coisas e fui lá dizê-las com esta perspetiva de estarmos perante um acontecimento inédito que é a nossa vida e podemos fazer as nossas declarações. Portanto, eu faço estas minhas declarações na gastronomia, mas também faço lá. Como diz na apresentação da banda, “a vida é muito curta para sermos neutros”.
De onde surgiu o nome Suma?
Suma é uma coisa muito engraçada. Eu tenho uma persona no Instagram que é Um Mal Amado. Eles são os dois Silvas. Então era Silvas e Um Mal Amado dá Suma. Não é grande ciência. São os Silvas e Um Mal Amado. Aliás, o primeiro concerto que demos era esse, Silvas e Um Mal Amado.