Dois anos e meio depois do início da guerra, o PCP admite que havia “outras formas de passar a mensagem” sobre a invasão da Ucrânia. Mas o essencial não mudou: o partido é que acredita agora que, com o passar do tempo — e o cansaço com a guerra — a posição que o deixou isolado começa a tornar-se mais aceitável. Até porque à crítica ao escalar do conflito e à defesa da paz, junta agora um alerta ao discurso inicial: a continuação da guerra na Ucrânia vai implicar mais dinheiro e mais recursos que os países aliados, Portugal incluído, podiam usar para ajudar as próprias populações. É por isso que no PCP se ouve cada vez mais um desafio: “Há algum português que aceite uma coisa dessas?”.
Durante os dois primeiros dias do XXII Congresso do PCP, em Almada, o tema foi sendo abordado em dois passos. O primeiro: o partido quer mostrar que percebe que nem tudo o que disse sobre a Ucrânia (e não disse sobre a Rússia) foi bem aceite, ou, na sua perspetiva, bem compreendido. Se antes de arrancar o congresso Paulo Raimundo já tinha admitido que o PCP “não fez tudo” o que estava ao seu alcance para travar “perceções” erradas sobre a sua posição, já em entrevista ao Observador, este sábado, insistiu que cada “vírgula” das posições que o PCP transmite devem contar.
Ou seja: o PCP podia “sempre encontrar outras formas de passar a mensagem”, traduziu o mesmo Paulo Raimundo. De novo: “Passado este tempo… havia sempre eventualmente outras formas de dizer o mesmo“, sugeriu o líder comunista. Ou, na versão de Miguel Tiago, também em entrevista ao Observador, o partido não foi suficientemente claro, permitindo que os adversários “ganhassem espaço para dizer que o PCP era putinista”. “Há de facto erros de perceção. Uma grande parte dos portugueses não estava a perceber aquilo que o PCP estava a dizer”.
Junta-se a este o segundo passo na argumentação do PCP — mesmo admitidas as insuficiências de comunicação, mantém-se a essência da mensagem do partido. Com uma nuance importante: os comunistas acreditam que, passados dois anos de guerra e muitos milhões investidos na defesa da Ucrânia pelos países aliados, as populações começam a mostrar cansaço e a mostrar uma abertura maior para uma “solução política” e não para uma vitória militar da Ucrânia — assumindo assim que a “guerra não se pode prolongar”, o que significaria, na prática, que a Ucrânia negociasse e cedesse parte importante do seu território.
O discurso começou a ser desenhado logo na intervenção inicial de Paulo Raimundo, na sexta-feira. Com fortes críticas à NATO e aos EUA — o caso da Ucrânia foi apenas um dos palcos de conflitos mencionados, a par do Médio Oriente, a Europa e a Ásia-Pacífico — Raimundo atirou: “A realidade, o tempo e a vida estão a dar-nos razão. Como sempre alertámos, a corrida aos armamentos e a guerra servem e bem os lucros da indústria da morte”.
Sem referências potencialmente mais controversas a culpas concretas no conflito (o PCP chegou a dizer ofical e abertamente que havia uma promoção do fascismo na Ucrânia), desta vez, Paulo Raimundo optou por um discurso quase inteiramente focado na “paz” e na ideia de “parar a guerra, a morte, o sofrimento”. “Querem silenciar a voz e a força da paz, mas não conseguirão”, desafiou o comunista.
Depois, foi a questões mais concretas: por um lado, defender que o PCP quer evitar que os jovens sejam enviados como “carne para canhão onde a NATO decidir”, um argumento fácil de compreender e de empatizar; por outro, lembrar as declarações do secretário-geral da NATO, Mark Rutte, que se “atreveu a propor um corte nos orçamentos da Saúde e das pensões de reforma” para gastar mais “no armamento e na guerra”. “Essa União Europeia apresentada como farol das virtudes ocidentais, mas marcada por retrocessos no plano social, com mais de 95 milhões de pessoas em risco de pobreza”, atacou.
O argumento fornecido por Rutte serviu ao PCP para cimentar a sua ideia: os gastos com armamento e Defesa têm de ter um travão. Isto porque esta semana Rutte veio avisar que os países-membros da NATO devem “aceitar fazer sacrifícios”, nomeadamente nos cortes em pensões, saúde e sistemas de segurança, “para que possamos estar seguros amanhã”. “Digam-lhes que a segurança é mais importante do que tudo”, pediu, dirigindo-se aos líderes políticos e pedindo que sensibilizem as populações para o tema.
Depois, Rutte argumentou que é preciso que se “mude para uma mentalidade de guerra“, considerou que os 2% do PIB que a maior parte dos aliados da NATA gasta com Defesa não é suficiente e concretizou: “Em média, os países europeus gastam facilmente até um quarto do seu rendimento nacional em pensões, saúde e sistemas de segurança social. Precisamos de uma pequena fração desse dinheiro para tornar a nossa defesa muito mais forte”.
O líder da NATO prosseguiu acrescentado que na Europa se gasta 50% de todas as despesas do mundo em segurança social, o que dá “alguma margem de manobra” para cortar. E rematou defendendo que é “simplesmente inaceitável” que os bancos e fundos de pensões se recusem a investir na indústria da defesa: “Não está na mesma categoria que as drogas ilícitas e a pornografia. Investir na defesa é um investimento na segurança. É uma obrigação“.
Ora, para os comunistas isto serviu como confirmação de que a “economia de guerra” já está a sobrepor-se à proteção da população. E esse argumento, acreditam, pode ganhar alguma simpatia junto dos potenciais eleitores. Em entrevista ao Observador, João Oliveira lembrou mesmo a proposta levada ao Parlamento Europeu para que a UE “fortaleça o seu apoio militar à Ucrânia”, incluindo com uma contribuição de “não menos de 0,25% do PIB” de cada estado-membro anualmente.
“A perspetiva da UE é continuar a guerra pelo tempo que for preciso e os Estados-membros têm de gastar 0,25% do PIB na Ucrânia. Isto significa que Portugal tem de gastar 600 milhões de euros por ano com a continuação da guerra na Ucrânia. Eu pergunto: há algum português a quem seja perguntado se Portugal deve fazer uma opção dessas? Algum português aceita uma coisa dessas? Eu tenho dúvidas em encontrá-los”, atirou o dirigente comunista e eurodeputado.
A partir do palco, enquanto discursava, João Oliveira reforçou a ideia: “Se hoje mais consciências vão despertando para a recusa da guerra, é porque também no Parlamento Europeu houve um coletivo de comunistas que soube resistir às campanhas negras, calúnias e falsificações e se manteve firme na defesa da paz.” Já Raimundo explorou a ideia garantindo que hoje é “mais difícil pôr em causa” a posição do PCP, argumentando que “a realidade infelizmente veio dar razão” ao partido.
O secretário-geral do partido aproveitou aliás para contextualizar mais uma vez a mensagem que o partido quer que passe, tentando ultrapassar a ideia de que não coloca as culpas na Rússia por ter invadido outro país. Segundo a versão de Raimundo, o PCP disse que a guerra “não começou” em fevereiro de 2024, “ainda que tivesse ganhado uma escalada muito grande, inclusive com a entrada de tropas russas em território ucraniano”.
Mais a mais, acrescentou, havia “outros intervenientes” na guerra que não a Ucrânia e a Rússia (ou seja, EUA, UE e NATO) e defendeu que era preciso que “travassem” a guerra o mais depressa possível. Ora “a opção foi toda ao contrário” — e agora a esperança do PCP é que os portugueses e consequentemente os potenciais eleitores, mais agastado pelos anos de conflito, também passem a condenar o esforço de guerra. Sobretudo se se vier a confirmar que o Estado português será obrigado a desinvestir em escolas, hospitais, pensões e habitação, por exemplo, para reforçar o esforço de Defesa europeu.
Um historial de “defesa da paz” contra os EUA
A posição mais abrangente do PCP sobre conflitos militares também acabou por ficar plasmada numa moção aprovada por unanimidade durante o congresso. E o documento reflete aquilo que tem sido sempre a filosofia do partido: dado que as responsabilidades dos vários conflitos são sempre atribuídas aos Estados Unidos a outras “grandes potências capitalistas”, o partido conclui que as guerras são alimentadas para contrariar o “declínio” da sua influência. Ou seja, EUA, NATO e UE são os culpados por “fazerem a apologia da escalada de confrontação e guerra” em todos os planos: “do Afeganistão ao Iraque, da Líbia à Síria, da Palestina ao Líbano, da Jugoslávia à Ucrânia, do Iémen a tantos outros países”.
Para o PCP, esta é, assim, uma expressão do “imperialismo”, que tem sempre de ser contrariado com declarações pela “defesa da paz” — e o argumentário que o partido usa neste sentido tem acompanhado toda a sua história centenária. Numa declaração feita pelo dirigente José Capucho (membro dos dois órgãos mais restritos do PCP, a Comissão Política e o Secretariado do Comité Central), este ano, recordava-se esse percurso a começar pela posição dos comunistas no plano interno, durante a guerra colonial.
Logo aí, recordava-se que a guerra colonial, com “pesadíssimas despesas” e “milhares de feridos e mortos”, foi uma guerra “ao serviço dos interesses dos grupos monopolistas e do imperialismo” — com os países da NATO a fornecerem armas e “levarem” diamantes, ferro e petróleo dos países colonizados. “O PCP é a única força com posições anticolonialistas claras e consequentes”, dizia o dirigente, recordando a oposição do partido à guerra durante a ditadura.
Esse posicionamento histórico não inclui apenas a guerra que envolveu Portugal. Numa declaração publicada no site oficial do PCP, já em agosto deste ano, à boleia do aniversário de Hiroshima e Nagasaki, o partido voltava a recordar o seu histórico de posições, também no plano internacional e na sequência da Segunda Guerra Mundial, a propósito de sempre ter defendido o “desarmamento” e a “abolição de armas nucleares”. De resto, o PCP tem sempre defendido a dissolução dos blocos militares e a política de “independência nacional e de paz e amizade com todos os povos” consagrada na Constituição.
No Seixal, em 2017, Jerónimo de Sousa fazia uma declaração pela “paz, amizade e cooperação entre os povos” que voltava a recordar o foco que o PCP tem dado à mensagem pela “paz” e contra a “guerra”, sempre na perspetiva de considerar que os EUA são os provocadores dos conflitos. E voltava a recuperar o final da Segunda Guerra Mundial para criticar os passos que se seguiram: “É fundada a NATO, bloco político-militar comandado pelos EUA, do qual a ditadura fascista portuguesa é membro fundador. Traçam-se planos de ataque nuclear contra a União Soviética”.
Na visão do PCP, as ameaças do “imperialismo” foram então “contidas” quando a União Soviética desenvolveu a sua capacidade militar, que é descrita pelos comunistas apenas como “defensiva” e para assegurar uma “política de paz”. Foi isso, dizia Jerónimo na altura, que impediu o imperialismo de desencadear uma terceira guerra mundial, “contendo” os avanços dos norte-americanos e aliados: “Sim, não foi o processo de integração capitalista da CEE/União Europeia que impediu o eclodir de uma nova guerra generalizada na Europa, como afirmam os defensores do aprofundamento da UE e do seu perigoso projeto militarista em curso”.
Sete anos passados sobre essa declaração do ex-líder, e dois anos e meio volvidos sobre o início da guerra na Europa, os comunistas mantêm a posição que têm conservado ao longo dos tempos, desta vez aplicada à Ucrânia: o imperialismo norte-americano provocou a ameaça que criou o conflito e agora é preciso “fazer a defesa da paz”. Desta vez, e contando como fator o potencial cansaço ou incompreensão do público relativamente aos recursos investidos neste conflito, espera conquistar a aceitação que até agora não teve.