Não é coisa nova no PS, ter uma voz solta e mais agressiva que possa entrar no combate político sem que o líder tenha de calçar as luvas de boxe. Augusto Santos Silva, que gostava de “malhar” na esquerda e na direita (2009), fez esse papel durante boa parte dos governos de José Sócrates (atirou-se ao “jornalismo de sarjeta”, em 2007) e também nos de António Costa. Durante toda uma campanha eleitoral (2015) Carlos César atirou-se aos líderes do PCP e BE que Costa não podia hostilizar diretamente. E se formos mais atrás, à liderança de António Guterres, Jorge Coelho era uma figura ímpar nesta prática, sendo dele o famosíssimo “quem se mete com o PS leva” (2001). Nas últimas semanas, parece haver um sucessor, de fora do partido (já foi militante), mas que é um ministro do núcleo duro político: Pedro Adão e Silva.

O ministro da Cultura tem sido o membro do Governo mais duro na linha da frente do combate político. Nos últimos 18 dias, apareceu em várias entrevistas, comentários ou frente a microfones para atirar em vários sentidos, atingindo até os deputados do PS — que se queixaram. Ao todo foram cinco intervenções (ler mais abaixo cada uma das ocasiões) e está mais uma marcada para a próxima quarta-feira, na Grande Entrevista da RTP. Pedro Adão e Silva tem intervindo de forma muito concreta numa fase em que o Governo tenta virar a página pesada dos últimos meses, que inclui não só os vários casos, as 13 demissões em 16 meses, como também da comissão parlamentar de inquérito à TAP. A estratégia foi então logo notada dentro do PS, com um socialista a interpretar assim as intervenções públicas do ministro Adão e Silva sobre todos estes episódios: “Fez de Augusto Santos Silva.”

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Este fim de semana juntou-se mais um momento, quando em entrevista ao Jornal de Notícias e à TSF Pedro Adão e Silva veio comparar os deputados da comissão parlamentar de inquérito à gestão da TAP a “procuradores de cinema americano de série B“. Irritou o presidente da referida comissão, o socialista António Lacerda Sales, deputados como Alexandra Leitão e também outros socialistas. Lacerda Sales pediu mesmo ao ministro que se retratasse, referindo-se às declarações como uma “falta de respeito” e uma “caracterização muito injusta” do trabalho dos deputados.

A deputada socialista falou do mesmo, considerando tratar-se de “declarações francamente infelizes para um ministro da República” e sugerindo mesmo que Adão e Silva se sentiria menos à vontade para criticar os deputados se o PS estivesse em minoria: “São declarações que um ministro não faria se não tivesse maioria absoluta, o que também nos deve levar a pensar”. “Quem tem o poder absoluto tem tendência para abusos”, atirou ainda Álvaro Beleza, durante a tarde, à rádio Observador, numa defesa a Lacerda Sales e crítica o ministro.

“Maioria absoluta tem tendência para abuso”

Há também, dentro da bancada, quem defenda Adão e Silva, caso do deputado André Pinotes Batista que, em declarações ao Observador, assumiu que o que o ministro disse sobre a comissão parlamentar de inquérito “é óbvio”, embora também reconheça que se tratou de uma “metáfora infeliz”. Outro deputado do PS comenta que concorda com o ministro e diz ao mesmo tempo que pedir que Adão e Silva se retrate “é um exagero”. Quanto ao ministro e a esta presença permanente na oposição à oposição, mas sobretudo aos comentadores, o mesmo deputado comenta com ironia: “Parece que não tem nada para fazer”.

No Governo vai-se jurando que Adão e Silva não tem sido o único na frente de defesa e que outros ministros passaram pelas televisões, caso de Ana Catarina Mendes e António Costa Silva, na RTP, e todos os ministros passaram ou vão passar pelo Town Hall da CNN. Não sendo um ministro de uma das pastas centrais, é curiosa a presença mais assídua de Adão e Silva neste comparativo. E com uma linha de ataque que é constante contra comentadores e comunicação social.

A primeira intervenção neste sentido foi num espaço de comentário televisivo. No dia em que apresentava a reorganização da Direção-Geral do Património Cultura, o ministro esteve no programa da SIC Notícias, Expresso da Meia Noite que era dedicado à análise da possibilidade de António Costa seguir para Bruxelas em 2024. Mas o que Adão e Silva levava na cartucheira era uma série de críticas à cobertura mediática dos últimos tempos, incluindo daquele tema. Atacou as previsões erradas que são feitas pelos analistas, gabando-se de, como comentador que foi durante muito anos e ao contrário do que hoje ouve, ter acertado na previsão de uma maioria absoluta para o PS.

Repetiu essa mesma linha numa entrevista à Visão, publicada a 28 de junho, em que o título foi “os portugueses são mais sensatos do que os comentadores”. Na entrevista detalhava mais o seu raciocínio: “Os portugueses são moderados, ponderados, têm muito bom senso – tudo coisas que frequentemente faltam quando se olha para o comentário político nas televisões portuguesas.” O ministro atirava a quem, nesses espaços, “tem visões fatalistas e apocalípticas da realidade. Faz parte da natureza da bolha: as pessoas fixam-se num conjunto de episódios e acontecimentos que existem pouco fora dessa realidade e esquecem-se de que os quotidianos das pessoas são determinados por outras coisas.”

“Há um lado de entretenimento nisso, eu entretenho-me a ver, e participei também nisso, com um lado lúdico”, disse também na mesma entrevista onde revelava não ter intenções de voltar a ser comentador, na vida pós-Governo. Sobre esses seus tempos, em que passou pela TSF, RTP ou pelo Expresso, o ministro disse: “Já tinha algum cuidado, que vejo pouco nos comentadores, em não fazer juízos muito definitivos sobre aquilo que se passa em dado momento e em não ter uma visão entre o apocalíptico e o final“.

A 5 de julho, na CNN, criticou o “registo quase televonesco” com que a comissão de inquérito à TAP foi seguida pelo país e disse ter visto coisas que o “inquietam” como cidadão. Por exemplo? “As inquirições, e estou a utilizar propositadamente o termo inquirições, pela noite dentro. Sem pausas. O tom inquisitório das perguntas. O tipo de preocupação com registo telenovelesco, que depois certamente alimenta um ciclo interminável de comentário. Se o telefonema foi às 22h00 ou às 22h05″.

Convencido de que aquele tinha sido um mau trabalho para a democracia, o ministro dizia que havia “uma reflexão a fazer sobre isto”, voltando a sublinhar que “há um interação entre o que é o ambiente mediático e a cobertura noticiosa da atividade política, o comentário em torno da atividade política, que tem uma influência na própria atividade política e que acho que, no médio prazo, não vai trazer bons resultados. E acho que esta CPI não ajuda.” Tambem avisou que não ia “suspender algum espírito crítico em relação a esta dinâmica que se alimenta mutuamente entre a cobertura noticiosa de um ciclo”.

E foi também assim a 9 de julho, na tal entrevista ao Jornal de Notícias e à TSF que incomodou algum PS. Esta segunda-feira, perante o pedido de Lacerda Sales para que se retratasse, o ministro não só se recusou a fazê-lo como ainda reforçou as críticas deixadas aos trabalhos parlamentares que “transformam e traduzem no comentário televisivo como se estivéssemos a falar num reality show”.

Adão e Silva recusa retratar-se de críticas aos deputados. “Não está escrito que ministros devem suspender espírito crítico”

Sucessão de casos preocupava o comentador que hoje, como ministro, os desvaloriza

A tentativa de sacudir dos ombros o peso dos últimos tempos de casos políticos, faz com que o PS tente passar adiante da TAP muito rapidamente. Pelo meio vai sedimentando a ideia de um certo número de “casos e casinhos” que são potenciados pela “bolha” — expressões que têm sido recurso frequente de António Costa, para tentar afastar os holofotes de cima dos temas mais polémicos, garantindo que não é isso que interessa às pessoas. Uma linha que é a que Adão e Silva tem também alimentado publicamente garantindo que essa mesma despreocupação com estes temas será partilhada “por muitos portugueses”. Aqui apoia-se nas sondagens: “Na verdade, grande parte do comentário alimenta-se nas leituras das sondagens, e há uma coisa que é constante: é isso que as pessoas desejam – estabilidade e esta articulação entre a Presidência da República e o Governo.”

A outra ideia em que tem batalhado é que as consequências políticas destes tempos já foram retiradas, nomeadamente pelo ministro Pedro Nuno Santos, que se demitiu do Governo. Tudo o resto é espuma que alimenta comentadores mas interessará pouco aos portugueses, acredita.

No entanto, em 2017, quando ainda não fazia parte do Governo, Adão e Silva tinha uma opinião diferente sobre as consequências e a responsabilidade pela permanência de casos no espaço mediático — na altura falava-se do focus group contratado nos dois anos do Governo e também na polémica deslocalização do Infarmed –, escrevendo no Expresso sobre a sucessão “de problemas quotidianos e pequenos incidentes” que “assumem foros de grande caso político”. “É sempre tentador, nestas fases, atribuir a erros de comunicação a ocupação da agenda mediática por uma sucessão de casos marginais. Acontece que os governos tendem a não ter problemas de comunicação, mas, sim, problemas políticos que se manifestam em dificuldades de comunicação. É o caso”, concluía então.

Num artigo que se preocupava com o rumo da “geringonça” naquela fase, o então comentador acusava o Governo de se “limitar a reagir” e não conseguir tomar a iniciativa política — uma situação que é agora muito apontada ao Governo de que faz parte. Mas em 2017, o mesmo Adão Silva que agora desvaloriza os casos que assolam a governação, considerava que se o Governo não se soltasse dessa narrativa em que estava embrenhado arriscava-se “a ir de caso em caso até ao ocaso final.”

Há um ano o primeiro-ministro atirou Pedro Adão e Silva para a primeira linha do combate político, escolhendo o ministro da Cultura (uma pasta longe de ser central na governação) para encerrar o debate do Estado da Nação. Na altura, essa decisão não deixou de ser notada como uma possível tentativa de atirar mais um nome da geração seguinte para a arena do pós costismo — embora Adão e Silva tenha aí um problema, já que não é militante do partido desde 2004 (inscreveu-se aos 18 anos e saiu em 2004, depois de ter integrado a direção de Eduardo Ferro Rodrigues) e, por isso, não poderia entrar na corrida à liderança mesmo se quisesse.

Costa puxa por Adão e Silva, mas PS não lhe dá carimbo de candidato a sucessor

O que é certo é que ao puxar um elemento independente para fechar um debate político importante António Costa oficializou aos olhos de todos o seu entendimento sobre a capacidade política de Adão e Silva. Aliás, o ministro já estava desde o início do núcleo político do Governo, o grupo que se reúne semanalmente para definir a estratégia política do Executivo, e isso já não tinha passado despercebido.

Depois da surpresa suscitada pela sua integração na equipa governativa, como ministro da Cultura (uma área onde não tinha especiais pergaminhos, estando na altura à frente da comissão executiva das cerimónias dos 50 anos do 25 de abril), o primeiro-ministro dava-lhe entrada direta no seu círculo de maior confiança no Governo. E onde se cozinham estratégias como a que agora parece estar em marcha.