Houve um momento em que Mariana Mortágua, a deputada coordenadora do BE, acusou o PS de ser “o partido que mais privatizou em Portugal”, enumerou a EDP e a PT, e Pedro Nuno Santos, na ponta de lá da mesa da sala da comissão parlamentar atirou um “fez mal”. Dúvidas houvesse sobre o estado das ambições futuras de Pedro Nuno e esta manhã, na audição parlamentar sobre a TAP, teriam ficado totalmente dissipadas. O ex-ministro fintou querelas e surgiu muito alinhado com o atual Governo, mas também a deixar sinais sobre o que o separa deste PS, a firmar o seu legado nas Infraestruturas e a cravar a sua linha ideológica no palco político. O seu plano continua em marcha.
O estilo foi comedido, ainda que tenha entrado na sala a provocar o PSD, atirando aos deputados à sua direita, entre risos, um “tiveram saudades minhas? Podem admitir”. A partir daí seguiu alinhado com o seu plano. E com alguns recados que foi diluindo em silêncios, ironias e reticências. O primeiro grande silêncio — ou “disciplina” como lhe chamou — foi sobre o assunto que mais queima o Governo nesta altura: a situação de João Galamba, do seu ex-adjunto Frederico Pinheiro (que antes disso trabalhara com Pedro Nuno) e o episódio do Ministério das Infraestruturas.
“Não vale a pena estar em ansiedade. Vamos estar muito tempo juntos” na próxima semana na comissão parlamentar de inquérito. Pedro Nuno volta ao Parlamento a 15 de junho para nova audição, dessa vez no inquérito, e já sabe que aí está “para aí umas dez horas” a responder aos deputados sobre esse tema mais sensível. Este primeiro tempo foi para se resposicionar no terreno, depois de cinco meses afastado.
Sobre a TAP em concreto, deixou por desvendar “o mistério” dos 55 milhões pagos a David Neelman para sair da companhia, dizendo que não há qualquer mistério, e pôs em causa a operação com os fundos Airbus. As mais de três horas da audição servirem sobretudo para marcar dois momentos de distância, um aviso, poscicionar-se ideologicamente e vincar o legado.
Saída de Christine Ourmières-Widener. “A única do mundo despedida depois de apresentar lucros”
O ministro nunca entrou pelo que pensa sobre a saída da CEO da TAP, na sequência da polémica e ilegal, segundo a IGF, indemnização paga à ex-gestora da companhia, Alexandra Reis. Não tocou nessa decisão que foi tomada já depois da sua saída do Ministério, pelo seu sucessor João Galamba e o ministro das Finanças, o eterno rival Fernando Medina. Mas acabou por aproveitar uma frase de Filipe Melo, do Chega, para deixar sublinhado o insólito da decisão da demissão de Christine Ourmières-Widener: “O maior elogio à CEO foi de Filipe Melo que disse que foi a única CEO do mundo despedida depois de apresentar aqueles resultados”.
Da oposição ouviu o aparte “pergunte ao Galamba”, mas o ex-ministro não foi a repique, deixando apenas a sugestão de que havia um fundo de razão no que ali era colocado pelo deputado do Chega. Recorde-se que foi a própria Christine Ourmières-Widener que ainda apresentou (por escrito), em março deste ano e já depois de anunciada a sua saída, que a TAP registara 65,6 milhões de euros de lucro em 2022, sob a sua gestão.
TAP registou lucros de 65,6 milhões em 2022. CEO diz que performance está em linha com metas de 2025
Desabafo sobre novo aeroporto
Durante a audição, Pedro Nuno Santos não se poupou nas referências às vantagens, capacidades e elogios à gestão pública. Deu um exemplo ao contrário, o da ANA — cuja privatização sempre diabolizou — e de repente disparou com as condições do atual aeroporto de Lisboa. “O aeroporto Humberto Delgado está a rebentar pelas costuras… infelizmente“. Recorde-se que há um ano, Pedro Nuno esteve no centro de uma polémica, que podia ter dado em demissão e não deu, ao antecipar-se ao primeiro-ministro no lançamento da localização do novo aeroporto de Lisboa.
[Já saiu: pode ouvir aqui o terceiro episódio da série em podcast “Piratinha do Ar”. É a história do adolescente de 16 anos que em 1980 desviou um avião da TAP. E aqui tem o primeiro e o segundo episódios]
Nessa altura foi forçado a um mea culpa público e recolheu-se. Esteve ao lado de António Costa em total silêncio quando o primeiro-ministro explicou como iria ser feito todo o processo da escolha da localização, depois de ambos terem estado sentados à mesma mesa com o líder do PSD. Costa não queria deixar Luís Montenegro fora do processo, Pedro Nuno tinha-o ultrapassado. Acabou muito tremido para o ministro e o PSD, a propósito do “infelizmente” do ex-ministro ainda aproveitou para tocar nessa ferida, ou “desconforto”, como lhe chamou o deputado Paulo Moniz. Mas acabou por ficar sem resposta.
Reprivatização. Não fala mas defende venda a empresa do setor e manutenção do hub
“Dadas as funções que ocupei e a responsabilidade que tenho, não devo fazer nenhum juízo sobre o tempo, o modo e o quando da privatização e não o farei. Nem aqui nem na comissão parlamentar de inquérito”, avisou desde logo o ex-ministro e futuro deputado do PS (volta à bancada no início de julho). Ainda assim, Pedro Nuno Santos deixou dito que “a TAP não conseguirá sobreviver se não se integrar num grupo de aviação”. “É muito difícil à TAP sobreviver sozinha no mundo global competitivo da aviação. A TAP não é uma ilha que possamos isolar do resto do setor onde opera que é muito agressivo”, disse ainda.
“Para mim era e continua a ser claro que o capital da TAP devia ser aberto a uma empresa do setor”, insistiu o ex-ministro depois de garantir que os detalhes sobre a venda da maioria do capital da companhia a privados já foram definidos depois do seu tempo no Ministério.
Ao mesmo tempo que lava daí as suas mãos, defende que a empresa seja vendida ao setor e ainda que mantenha o hub em Lisboa. “A companhia é o maior exportador nacional” e isso “é uma das maiores riquezas do país”, tem “uma importância económica e macro económica imbatível”, referiu Pedro Nuno Santos na audição para logo depois acrescentar que, num país com uma posição geográfica difícil para “a capacidade de desenvolvimento da empresa”, o hub é decisivo. “O hub e a TAP dão centralidade a Portugal que o país não tem no quadro europeu. Ou tiramos proveito dela ou perdemos um dos maiores ativos do país”. Este foi o motivo, assumiu, pelo qual o Governo de que fez parte percebeu “que não podia deixar cair a empresa”.
O Governo já disse, pela voz do ministro João Galamba, que não vai “abdicar da salvaguarda do valor estratégico da companhia nem da manutenção do hub em Lisboa”, na privatização da companhia que tem urgência em fechar.
Nacionalização. Não foi ideológica, foi inevitável (e provocada pelo PSD)…
A tentativa de vincar o seu posicionamento ideológico foi clara nesta audição. Logo no início das mais de três horas em que esteve na audição, em resposta ao PSD, Pedro Nuno Santos declarou que a nacionalização não era o que o Governo queria, embora essa fosse a solução defendida pelo PCP e Bloco de Esquerda. Quando o lembrou, ouviu a oposição atirar que o socialista estaria mais próximo dessa posição da esquerda à esquerda do PS. E disparou na terceira pessoa: “Com Pedro Nuno Santos o que temos é uma abordagem diferente: injetar dinheiro com os privados dentro da TAP.”
Tenta afastar-se da ideia de um defensor de nacionalizações como bens em si mesmo e diz que, no casos da TAP, foi a única saída, culpando até o PSD por isso mesmo. “Se o PS não tivesse governado um único dia desde 2015, o que teria acontecido à TAP? Em fevereiro de 2020, véspera da pandemia rebentar, a TAP ainda tinha 141 milhões de euros de dívida na banca ao abrigo das cartas de conforto: O que aconteceria é que a TAP não iria conseguir pagar este valor. Sem o PS entre 2015 e 2020, a TAP em 2020 teria sido pública pela imposição do acordo”, argumentou.
Quanto à injeção do Estado, defende-a dizendo que foram esses 3,2 mil milhões de euros que permtiram à empresa ser capitalizada em 400 milhões, quando “era uma empresa encharcada em dívida e sem capitais próprios”.
… mas gestão pública em empresas estratégicas é o caminho
A posição pedronunista é, ainda assim, manter a mão do Estado nos setores estratégicos. O exemplo da privatização da ANA (na era PSD-CDS) esteve sempre lá, com o ex-ministro a aproveitá-lo para dizer “a gestão pública não faria pior, faria igual ou melhor”. E acredita até que “o Estado perdeu ao longo destes últimos anos” em empresas como a EDP, REN e PT, exemplificou, “não só do ponto de vista estratégico como de remuneração”.
“Perdemos o controlo das infraestruturas e perdemos outra coisa: as empresas públicas são instrumento de financiamento do Estado, alternativo aos impostos. Foi mais um mau negócio que o Estado fez sob a liderança de PSD e CDS”, acusa mais uma vez sobre a ANA. Quanto à TAP, fez o favor ao PS — que é também útil ao seu próprio plano — de diabolizar a privatização feita ao cair do pano do Governo PSD-CDS (em 2015) da TAP, dizendo que esse negócio “não foi um acaso, é um padrão da forma como a direita vê as empresas públicas e as trata”.
A oposição tem atacado precisamente o estilo de relacionamento que o ministro Pedro Nuno mantinha com as empresas que tutelava, acusando-o mesmo de ingerência. Mas o socialista prefere falar em “relação saudável” e atirar os problemas de relacionamento para o PSD.
Legado. Houve CP mais bonita do que a minha? “Zero”
E seguindo esta mesma linha de gestão pública, Pedro Nuno Santos usou aquele que coloca com a flor da sua lapela: a CP. “Não há mais nenhum Governo, mais nenhum ministro que se possa gabar de ter terminado as suas funções com a TAP e a CP a dar lucro.”
Por mais do que uma vez, o ex-ministro disse que “é possível, mesmo nas empresas que nunca deram lucros, dizer que dará lucro. Foi o que fizemos com a CP”. E repetiu a pergunta, desta vez dando logo a resposta: “Quantos ministros tinham saído com a CP a dar lucro? Zero”. O tema não era esse, mas será sempre a ele que Pedro Nuno irá voltar quando atacarem o seu estilo de relação com empresas públicas e as vantagens da mão do Estado.