Ao terceiro dia, Pedro Nuno Santos veio pedir explicações à procuradora-geral da República sobre “o clima instalado na Justiça”. Quando a situação chegou ao PSD (Madeira) e André Ventura não estava do outro lado da mesa (em debate) e também depois da alta pressão do seu próprio partido (com Ferro Rodrigues e Ana Catarina Mendes a anteciparem-se no tema). No pacote de desconfinamento do líder em matéria de Justiça veio também um repto para o PSD: alinha ou não na clarificação do poder hierárquico do Ministério Público. Luís Montenegro fechou-lhe a porta, convencido de que entrar nessa discussão agora é erro. Ambos tocam nesta questão nos seus programas, mas o entendimento pode não estar ao virar da esquina.
A questão foi levantada no frente a frente com o líder do Chega. A timidez com que falou no caso da Madeira no debate com André Ventura foi corrigida logo no dia seguinte, mas não muito mais além, com Pedro Nuno Santos a expressar apenas “preocupação” com a situação de três detidos 21 dias à espera de serem ouvidos pelo juiz de instrução. Mas esta sexta-feira, o socialista furou mesmo a barreira higiénica que impôs na Justiça e já pediu explicações a Lucília Gago “perante o clima que está instalado”. Não disse que situações concretas precisavam de esclarecimentos, mas à noite, no debate com Mariana Mortágua, mostrou-se satisfeito com o que a Procuradoria tinha dito durante o dia — falou sobre a Madeira.
Foi uma mudança radical, face ao cuidado com que a direção do PS tem tratado os casos de justiça nos últimos tempos, mesmo depois de no Congresso do PS, no início de janeiro, terem saltado algumas críticas à ação do Ministério Público e também aquela mensagem subliminar do líder de saída, António Costa, ao dizer que “podem ter derrubado o Governo, mas não derrotaram o PS” — que deu alguma soltura momentânea ao azedume socialista com o Ministério Público.
Facto é que, desde então, Pedro Nuno Santos ficou sempre no novo mantra para a Justiça — “Não vamos aproveitar nenhum caso judicial para fazer política, a justiça tem o seu tempo, faz o seu trabalho” — até esta sexta-feira. Há duas razões para esta mudança nesta altura: a pressão dos acontecimentos nos últimos dias e o facto de a situação agora já não cair apenas em cima do PS, com o caso da Madeira a colocar no mesmo barco o PSD regional.
Ainda assim, o debate contra André Ventura foi considerado um momento arriscado para dar este passo, mesmo que fosse o primeiro momento público depois da decisão do juiz de instrução que libertou os três detidos da Madeira (o ex-presidente da Câmara do Funchal, Pedro Calado, e os dois empresários, Avelino Farinha e Custódio Correia), apenas com termo de identidade e residência como medida de coação.
Entretanto houve também a absolvição, esta quinta-feira, do ex-secretário de Estado do primeiro-ministro, que se demitiu na sequência de uma acusação judicial. E foi no dia seguinte, que Pedro Nuno apareceu finalmente com uma nova linha — que seguiu no debate da noite com Mortágua — não entrando pela tese da cabala, mas dando um passo para um terreno que ele próprio evitava.
“Uma coisa é pedir explicações, outra coisa é falar num golpe“, comenta-se no seu círculo de aconselhamento onde também se assinala que no caso da Madeira nem é propriamente o MP que está em causa, já que a questão dos 21 dias de espera dos detidos inclui o juiz de instrução. “Só por si exige o escrutino sobe os magistrados em geral”, atira a mesma fonte.
A posição tomada por Pedro Nuno acaba por explorar um mal estar interno no próprio aparelho da Justiça, a apontar o dedo ao “litígio” que existe entre procuradores e superiores hierárquicos, a Procuradora-geral incluída. Afinal foi Lucília Gago que pediu esclarecimentos ao Conselho Consultivo da PGR sobre o Estatuto do MP — alterado pela ministra Francisca Van Dunem e que muitos socialistas criticam — na questão sempre sensível da relação entre a hierarquia e os procuradores titulares dos inquéritos, no exercício da ação penal. E foi também a mesma Lucília Gago a fazer uma diretiva a sublinhar o direito da hierarquia (incluindo a PGR) dar instruções processuais aos procuradores que dirijam as investigações criminais.
Na origem do caso esteve a investigação a Tancos, quando o MP quis ouvir o primeiro-ministro e o Presidente e o diretor do DCIAP travou. A diretiva deu-lhe razão mas também foi levada pelo sindicado dos magistrados do MP ao Supremo Tribunal Administrativo onde a questão ainda permanece. Foi por isso que Pedro Nuno veio dizer que “há um litígio que decorre de uma alteração ao estatuto” e que o PS “pretende a clarificação dessa relação de poder hierárquico.”
Ao Observador, Alexandra Leitão, coordenadora do programa do PS, explica que a clarificação acontecerá, caso o STA não seja suficientemente claro. Se não for, “a situação terá de ser resolvida com uma iniciativa legislativa“, assume. A sua posição sobre o assunto já era conhecida, tendo afirmado, num debate na rádio Observador no início de janeiro, que “tem de haver uma hierarquia [no MP]. A própria Constituição, apesar de ter optado por um modelo de magistratura do Ministério Público com determinadas características, diz que ela é autónoma, mas hierarquicamente subordinada” — uma posição semelhante à do parecer do Conselho Consultivo, contestada pelo sindicato do MP.
O entendimento é, assim, que os dirigentes do MP podem e devem ordenar estratégias processuais e também rejeitar qualquer equiparação entre a autonomia do MP à independência dos juízes. Os socialistas rejeitam ainda que a sua posição coloque em causa a autonomia do Ministério Público. E ainda mais, a autonomia face ao poder executivo.
A proposta do PSD que toca no mesmo assunto é genérica e pretende “clarificar a posição constitucional do Ministério Público como uma magistratura autónoma, hierarquizada, independente do poder executivo”. Esta última referência ao “poder executivo” é vista pela socialista Alexandra Leitão como “uma tautologia desnecessária. É evidente que assim é”, responde quando questionada pelo Observador sobre esta matéria.
O assunto foi o que levou Pedro Nuno Santos a desafiar os partidos que concorrem às próximas legislativas para um consenso. “Seria muito importante que os outros partidos se pronunciassem sobre esta proposta, porque uma reforma implica um largo consenso“, isto em vez de “discutir casos concretos”. “Devemos discutir a reforma da justiça”, atirou mesmo, uma área em que, por norma, há sempre uma tentativa de acordo entre as duas maiores forças políticas.
Até aqui, o PS esteve sempre de costas voltadas para essa reforma e nas últimas legislativas tinha o líder do PSD de então, Rui Rio, empenhado nisso mesmo. Defendia o maior escrutínio do Ministério Público e a sua proposta mais polémica — e contestada com violência por António Costa — passava por alterações à composição dos conselhos superiores de justiça. Rio defendia que “a maioria [dos membros] não deve ser de magistrados, devem ser de fora para que haja uma maior transparência”.
Nem depois do dia 7 de novembro de 2023, Costa aceitou que teria sido melhor aceitar a reforma. “As propostas de Rui Rio passavam por retirar autonomia ao Ministério Público. Entendo que a nossa democracia tem uma enorme vantagem: temos uma Justiça independente e um Ministério Público autónomo, em que ninguém está acima da lei”.
Montenegro afasta-se de tema quente
Mesmo depois do repto lançado por Pedro Nuno Santos, a ordem na direção do PSD foi para aguentar firme. Numa altura em que os sociais-democratas procuraram a todo custo evitar cometer erros dispensáveis, aparecer ao lado do PS a falar de um tema altamente impopular seria caminhar sobre gelo fino, propício a disparates. Mais do que tudo, era importante que o partido — já depois da escorregadela de Pedro Duarte — falasse apenas a uma só voz.
Este sábado, no dia em que enfrenta Rui Tavares, e antecipando um tema que seguramente será levado ao frente ao frente com o líder do Livre, o social-democrata aproveitou uma ação de pré-campanha em Espinho para se afastar de Pedro Nuno Santos. “Não é a quente, com casos concretos em cima da mesa nem a três semanas de legislativas, que se mexe na arquitetura do direito penal e criminal português”, afirmou Montenegro.
Sem fechar a porta a “uma reflexão e debate alargados no pós-eleições”, o líder social-democrata admitiu conversar com todos, mas não se deixou abraçar por Pedro Nuno Santos, dizendo que quer “interagir com todos os outros partidos” — e não apenas com o PS –, mas também “com aqueles que são os operacionais da justiça, magistrados, funcionários judiciais, advogados, aqueles que nas diversas forças fazem investigação criminal”.
Ainda assim, e para não repetir aquilo que Pedro Nuno Santos fez com André Ventura quando recusou apontar erros à Justiça mesmo depois dos recentes desenvolvimentos da Madeira, Montenegro tentou defender que é “importante” que exista “segurança nos procedimentos, diligências de investigação”, mas também “respeito pelos direitos, liberdades e garantias de todos os cidadãos”. “Não há dúvida nenhuma de que qualquer português fica admirado de um processo ter esta sequência e de depois de haver um período de detenção excessivo e que não tem respaldo nos princípios da lei”, sublinhou Montenegro.
Aliás, no programa da Aliança Democrática existe uma proposta que teria, em teoria, impedido que os arguidos na Madeira tivessem ficado detidos 21 dias para interrogatório: “fixar no Código do Processo Penal o limite máximo de 72 horas para decisão jurisdicional após detenção, permitindo a intervenção de mais do que um juiz no processo para tal efeito”.
De resto, nesse mesmo programa apontam-se caminhos para a uma possível reforma da Justiça. À cabeça, Montenegro defende que se façam “alterações da legislação processual penal no sentido de combater a formação dos chamados megaprocessos, que entorpecem a ação dos tribunais e se arrastam anos a fio, frustrando a aplicação de uma justiça célere e eficaz”.
Além disso, a coligação PSD/CDS/PPM defende que é preciso eliminar os “expedientes processuais com a única finalidade de atrasar a marcha do processo”, nomeadamente a apresentação de recursos, em particular por parte da defesa, que criam entraves ao normal desenrolar dos processos.
Ministério Público em guerra com diretiva de Lucília Gago que limita autonomia de magistrados