Nem deu tempo para publicar a descoberta: o incêndio da Madeira poderá ter destruído uma população inédita de uma das mais raras plantas portuguesas. O gerânio-da-madeira (Geranium maderense) é uma planta muito rara, que só existe na ilha da Madeira — e, mesmo aí, está presente em pouquíssimos lugares. A União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN) classifica-a mesmo como “criticamente ameaçada” na sua lista vermelha, o grau mais elevado entre as categorias de ameaça de extinção.
“Em rigor, só se conhecia, até há muito pouco tempo, em duas populações”, explica ao Observador o botânico Miguel Sequeira, investigador da Universidade da Madeira, que se dedica ao estudo da flora da ilha da Madeira — e que recentemente descobriu novas populações desta planta conhecida pelas suas flores cor-de-rosa e pelo seu valor ornamental, e que até agora se encontrava na zona norte da ilha. “Agora, com drones, encontrámos mais.”
A descoberta aconteceu no vale da Ribeira Brava, no sul da ilha — uma das regiões fortemente afetadas pelo incêndio que atingiu a Madeira em agosto. “Ainda nem sequer tínhamos publicado que esta população existia”, lamenta Miguel Sequeira, afirmando que é muito provável que aquela pequena ocorrência tenha desaparecido. “Para confirmar, agora, teria de ir para lá com um drone. Mas está na área do incêndio. É uma pena.”
O botânico não tem planos para realizar esse estudo num futuro próximo. Garante que, emocionalmente, os cientistas que estudam a flora vibrante e única da ilha da Madeira ainda precisam de tempo para recuperar. “Não somos de pedra”, explica o investigador, revoltado com a facilidade com que os incêndios florestais continuam a acontecer e a ameaçar a vida natural, por razões quase sempre atribuídas à negligência ou ao crime. “São sítios onde andámos a fazer amostragens cuidadosas, a retirar apenas uma folhinha para não danificar a planta, a fazer estudos de ADN, a identificar plantas novas, a descrever novas espécies. Todo esse trabalho que tivemos desapareceu. Quando lá voltarmos, vamos sentir-nos mal.”
Multimédia. Como evoluiu o grande incêndio da Madeira. E como foram chegando os meios
O incêndio da ilha da Madeira deflagrou a 14 de agosto na zona da Ribeira Brava e lavrou durante duas semanas, propagando-se para os concelhos de Câmara de Lobos, Ponta do Sol e Santana. Só seria declarado extinto 13 dias depois, a 26 de agosto — após quase duas semanas de forte controvérsia política, com a oposição a criticar ferozmente a atuação do presidente do governo regional, Miguel Albuquerque (que estava de férias nos primeiros dias do incêndio), e a apelar à sua demissão. O balanço final chegou a 30 de agosto por parte das autoridades regionais: no total, arderam 5.116 hectares, dos quais 139 hectares foram de floresta laurissilva.
“A preciosidade maior da vegetação portuguesa”
As autoridades regionais procuraram sempre desvalorizar o impacto do incêndio na biodiversidade da ilha da Madeira, nomeadamente garantindo que a laurissilva tinha sido poupada aos piores impactos. Contudo, o botânico Miguel Sequeira — que já foi diretor regional de Florestas e presidente do Instituto das Florestas e Conservação da Natureza (de onde diz ter saído por não ser filiado no PSD) — lamenta essa desvalorização e garante, por um lado, que a laurissilva foi afetada e, por outro, que o impacto deste incêndio na natureza não se esgota na laurissilva.
Miguel Sequeira lembra que a ilha da Madeira tem uma vida natural única. “Temos mais de 100 endemismos na ilha da Madeira”, lembra o botânico, explicando que a “maior parte dos endemismos da Madeira está em risco crítico de extinção”, ou seja, a mais elevada categoria da lista da IUCN. “Perder cinco espécies endémicas é muito? Estamos no século XXI. Perder uma espécie endémica quando temos INCF, União Europeia, fundos europeus… é inacreditavelmente incompetente”, classifica, recordando que a biodiversidade e a quantidade de espécies únicas que existem na Madeira é um dos fatores que contribuem para a atração turística da ilha: “As pessoas vêm à Madeira e sabem que é único.”
A floresta laurissilva (classificada como património da humanidade pela Unesco) será, com toda a certeza, o mais conhecido e celebrado exemplo da exuberante flora madeirense — o que também traz desvantagens para o trabalho global da conservação da natureza. “É como termos uma família muito grande em que há uma criança que toca muito bem piano e as outras são desprezadas”, exemplifica Miguel Sequeira, classificando a laurissilva como a “preciosidade maior da vegetação portuguesa” e lamentando a desvalorização que foi feita do impacto do incêndio nesta floresta: 139 hectares, correspondentes a 1% do total da área ardida. São 139 hectares de “uma vegetação muito limitada”.
A floresta laurissilva, descreve o botânico, é “um bosque relíquia”, que nos permite olhar para o passado vegetal da Europa. “Quando vem à Madeira e passeia no meio da laurissilva, está a ver um bosque que sobreviveu a todas as alterações climáticas naturais que existiram no passado na Europa”, diz. “Estamos a ver espécies muito próximas das que dominaram a vegetação europeia há 60 milhões de anos.”
Trata-se de um complexo ecossistema em que existem múltiplas plantas que são exclusivas da Madeira ou da Macaronésia (nome dado às ilhas atlânticas dos Açores, Madeira, Canárias e Cabo Verde), incluindo árvores como o barbusano, o loureiro, o til, o vinhático, o folhado, o pau-branco e o mocano ou arbustos como o massaroco, a figueira-do-inferno, o isoplexis ou a múchia. “Não encontramos carvalhos e encontramos poucas coníferas”, diz Miguel Sequeira, sublinhando que os cidadãos do continente português não reconheceriam a esmagadora maioria das plantas da laurissilva, que representam uma “vegetação que desapareceu”.
Para o botânico, há dois aspetos fundamentais que tornam a laurissilva num património único e de grande interesse. Por um lado, “é uma floresta composta por espécies que as pessoas nunca viram, todas endémicas, exclusivas da Madeira ou partilhadas com as Canárias”. Por outro lado, é composta por árvores muito grandes, todas acima dos 30 metros, muitas a ultrapassar os 40 metros de altura. “Temos uma sensação de pequenez quando estamos nesse bosque”, sublinha. “Esquecemo-nos do que seria um verdadeiro bosque. Em alguns sítios, menos afetados pelo homem, temos árvores com mais de 100 anos.”
Miguel Sequeira lembra que o século XIX foi “o ponto mais baixo no que toca ao coberto vegetal em Portugal”, porque, antes da eletricidade, a “única fonte de energia era a lenha”. Por isso, tudo o que há de vegetação no país atualmente é relativamente novo — no máximo um século. A laurissilva da Madeira é, por isso, um dos melhores exemplos de floresta em Portugal: por se situar em regiões bastante inacessíveis, como escarpas verticais, conseguiu escapar melhor à ação humana.
“Como temos estes vales, a vegetação foi menos afetada pelo homem”, sublinha Miguel Sequeira, recordando que “o bosque da laurissilva terá 100, cento e poucos anos”. O botânico explica, contudo, que é necessário distinguir o conceito ecológico de laurissilva e a laurissilva da Madeira como sítio delimitado da rede Natura. De acordo com Miguel Sequeira, há dois tipos de floresta laurissilva: a mais conhecida é a laurissilva húmida, que existe essencialmente no norte da ilha, “em sítios mais húmidos e com menor probabilidade de arder”. Existe também a “laurissilva mediterrânica”, que corresponde atualmente a zonas agrícolas e urbanas no sul da ilha. “Há até fragmentos dentro da cidade do Funchal, em Câmara de Lobos, na Ribeira Brava”, diz.
Contra a desvalorização dos matos: “São a etapa de recuperação para o futuro bosque”
Segundo o botânico, houve vários fragmentos de floresta laurissilva afetados pelo incêndio — e, mesmo que formalmente a área de laurissilva ardida seja residual, a verdade é que “a diversidade vegetal não se resume ao bosque”.
“Quando se diz que arderam matos, aquilo a que se chama matos são formações onde estão dezenas de endemismos que são arbustos”, refere Miguel Sequeira. O presidente do Governo Regional da Madeira, Miguel Albuquerque, procurou várias vezes desvalorizar o impacto do incêndio classificando as áreas ardidas como “mato”. Contudo, os matos são “a etapa de recuperação para o futuro bosque”, contrapõe Miguel Sequeira. O seu desaparecimento significa uma regressão da paisagem “para o ponto zero”.
Todas as regiões de mato que arderam e, por isso, regressaram ao tal “ponto zero” do crescimento vegetal vão agora precisar de praticamente dois séculos para crescerem até ao seu auge. “Fizemos os cálculos e são precisos 180 anos para atingir uma floresta clímax”, explica Miguel Sequeira, sublinhando que são necessários vários estágios de evolução de um território para que se chegue a uma floresta no seu auge — a atual laurissilva existente na Madeira, com cerca de um século, ainda não está lá. “Cada vez que se baixa o nível sucessional a zero, no mínimo, temos de esperar esse tempo.”
Miguel Sequeira destaca ainda que não é só a zona norte da ilha da Madeira que é rica em biodiversidade. “Os endemismos não estão todos no norte da ilha. Há uma divisão quase perfeita, 50-50, entre norte e sul”, sublinha o botânico, destacando que a biodiversidade da Madeira não se resume à área da laurissilva. “A maior parte dos endemismos da Madeira estão em risco crítico”, repete. Por isso, um incêndio destas dimensões, com mais de 5 mil hectares ardidos, tem o potencial para acabar de vez com algumas espécies.
Só através da análise do mapa da área ardida, Miguel Sequeira estima que várias espécies endémicas da ilha da Madeira (que muitas vezes estão localizadas num ponto concreto da ilha) tenham sido fortemente afetadas pelo incêndio. O botânico destaca duas espécies endémicas que terão sofrido especialmente. Uma delas é a ameixieira-de-espinho (Berberis maderensis), um arbusto endémico da ilha da Madeira que se encontra criticamente ameaçada de extinção devido a espécies invasoras e ao risco de incêndios; a outra é o cedro-da-madeira (Juniperos cedrus), uma árvore que pode chegar até aos 20 metros de altura e que se encontra classificada como em perigo.
Além da floresta laurissilva, o incêndio da madeira afetou vários habitats protegidos pela legislação europeia, incluindo as ravinas e os picos das cordilheiras, que são regiões fundamentais para a manutenção de algumas das espécies vegetais mais ameaçadas da Madeira. Por exemplo, a sorveira (Sorbus maderensis), um arbusto endémico da ilha, encontra-se criticamente ameaçada de extinção — e praticamente só existe nas regiões que foram afetadas pelo fogo.
“Perdemos as plantas, mas não perdemos o solo”
Estes alertas sobre a flora juntam-se a outros sobre a ameaça do incêndio para a fauna madeirense. A floresta laurissilva, por exemplo, é o habitat natural do fura-bardos, uma ave de rapina que só existe na Madeira e nas Canárias. Por outro lado, a Sociedade para o Estudo das Aves (SPEA) veio também avisar que o incêndio da madeira colocou em risco a única colónia de nidificação do mundo de freira-da-madeira, uma ave marinha ameaçada de extinção.
De acordo com o botânico da Universidade da Madeira, há ainda outro problema associado a este incêndio: “As plantas das ilhas não estão adaptadas ao fogo. O fogo promove as espécies exóticas. Numa ilha, o fogo só promove as espécies que introduzimos e que são adaptadas ao fogo.”
No caso das montanhas madeirenses, “a invasora mais comum é a giesta comum e a segunda é aquilo a que no continente se chama tojo e aqui se chama carqueja”. São plantas que, no continente português, são nativas, mas que na Madeira são invasoras. Com o incêndio, vão “ganhar espaço”, diz Miguel Sequeira. “As suas sementes espalham-se, disseminam-se, crescem. Daqui a uns tempos está tudo verde com estas plantas e as pessoas ficam todas contentes”, sublinha.
Mas esta substituição de espécies endémicas por espécies invasoras traz problemas também em termos de proteção das populações, adverte o botânico. Em caso de aluvião — uma ameaça bem conhecida dos madeirenses —, os terrenos povoados por giestas ou carquejas “dão menos proteção”, enquanto uma terreno coberto por espécies com raízes mais profundas oferece maior segurança. “Não é o mesmo ter uma encosta coberta com laurissilva ou com giestas”, destaca.
O que se segue? Miguel Sequeira defende que é necessário não perder a oportunidade de começar já a recuperar a natureza. “Perdemos as plantas, mas não perdemos o solo”, destaca, acrescentando que é preciso aproveitar enquanto não começam os fenómenos erosivos (como as chuvas) para recuperar a vegetação, controlar as espécies invasoras e promover a recuperação natural dos solos. Numa estimativa rápida, o botânico diz que para recuperar todo o território ardido poderiam ser necessárias até 15 milhões de plantas.
Ministério Público já tem um arguido constituído por causa do incêndio na Madeira
“Era bom que aprendêssemos com os erros”, diz ainda o botânico da Universidade da Madeira, que se mostra pouco confiante numa redução do número de incêndios no futuro. “Vejo fogos florestais desde a infância”, diz, repetindo o lamento pelo facto de este incêndio ter afetado muitos dos locais que habitualmente estuda. “É um círculo vicioso que começa com um fósforo”, acrescenta, lembrando como a maioria dos fogos têm origem humana — seja por mão criminosa, seja por negligência. No caso deste incêndio da Madeira, já está confirmado que a origem do incêndio foi o lançamento de um foguete e o Ministério Público até já constituiu um arguido na investigação.
Miguel Sequeira destaca ainda o impacto ambiental dos incêndios. As florestas são importantes reservatórios de dióxido de carbono, captando-o da atmosfera: quando ardem, libertam todo esse CO2 acumulado para a atmosfera. “Como é que não falamos das emissões de carbono?” questiona o botânico. “Passamos o ano inteiro a falar de mudar de carro a gasolina para carro elétrico, mas Portugal arde todos os anos. Somos socialmente criminosos!”