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Porque mentimos a nós próprios e aos outros?

Mentimos todos os dias. Na maior parte das vezes, fazemo-lo por insegurança pessoal. A mentira pode ser uma arma de defesa no mundo em que vivemos, mas carregá-la às costas tem custos pesados.

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Ela achava que ele era o seu grande amor, a pessoa com quem ia passar o resto da vida, mas o namoro de nove anos terminou sem aviso. Nesse período difícil, outro homem aproximou-se e ela começou uma nova relação. Era desta, só podia ser. Era desta que as coisas iam correr bem e, talvez, a história acabasse em casamento. Só que não. “Ele era o maior atrasado mental à face da Terra”, recorda A., de 3o anos, ao Observador. Cenas de ciúmes intermináveis, discussões de meia-noite e mentiras atrás de mentiras. “Era uma pessoa verdadeiramente desequilibrada. O limite foi quando percebi que era grave: ele mentia no CV, mentia sobre ex-namoradas, mentia aos amigos, mentia sobre coisas simples e os pais sabiam e não faziam nada. Acho que foi quando descobri as mentiras que me começou a cair a ficha.”

A mentira como uma defesa

O mais provável é que todos sejamos mentirosos, mesmo sem ter noção. Os estudos que sustentam esta afirmação são muitos e fáceis de encontrar: segundo esta Ted Talk, em média mentem-nos 10 a 200 vezes por dia, este estudo assegura que 60% das pessoas mente numa conversa de 10 minutos e há ainda investigações que sugerem que os homens mentem duas vezes mais do que as mulheres. Por via das dúvidas, há testes para determinar que tipo de mentiroso somos. “Embora o ser humano esteja programado para dizer a verdade, todas as investigações demonstram que mentimos pelo menos uma vez por dia”, escreve a psicóloga María Jesús Álava Reyes no livro A verdade sobre a mentira (Esfera dos Livros). É ela quem assegura que, regra geral, as pessoas mentem quando acreditam que as mentiras lhes compensam, isto é, quando ganham algo em retorno, ou quando acreditam que, ao mentir, estão a evitar uma censura. A mentira é de tal forma uma ferramenta que os biólogos acreditam que também os animais mentem, mesmo entre a própria espécie.

“Há mentiras sociais, mentiras narcisistas, mentiras psicopáticas, mentiras para salvar a vida, mentiras de trabalho, aos companheiros, à nossa família….; e mentiras dirigidas a nós mesmos”, escreve María Jesús.

Naturalmente, há diferentes graus de mentira. E diferentes intenções também. Mas, de uma forma geral, o ser humano mente para evitar algum tipo de dor ou sofrimento, explica ao Observador a psicóloga clínica Inês Afonso Marques. De certa forma, está tudo relacionado com as expetativas que criamos dos outros e com as expetativas que achamos que os outros têm de nós. “A mentira funciona como uma gestão de consequências, é uma espécie de sobrevivência da nossa imagem.” Uma pessoa é capaz de mentir para “ter benefícios, para não desagradar, para não se responsabilizar, para manter a sua imagem, para não ter de lidar com o conflito, para não perder, para ganhar, para controlar, para ter poder, para não sentir nem causar dor, para evitar o sofrimento próprio e alheio… Para não ter que lidar com a realidade”, acrescenta a também psicóloga Margarida Vieitez ao Observador.

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"Embora o ser humano esteja programado para dizer a verdade, todas as investigações demonstram que mentimos pelo menos uma vez por dia."
María Jesús Álava Reyes, psicóloga

Independentemente do motivo, na opinião de Vieitez não existe distinção entre mentiras boas ou más. Há mentiras que prejudicam e ferem terceiros, outras que existem no dia a dia e parecem ser inofensivas, como responder “Está tudo bem” em vez de falar abertamente sobre um problema — qualquer que seja a intenção, nenhuma mentira pode ser considerada boa. “Apesar de poder apresentar benefícios para quem a diz, na maioria das situações isso traduz-se em malefícios e experiências desagradáveis para os outros.”

Mentir para evitar castigos, explicar atrasos, para proteger alguém e/ou encobrir algo, para não decepcionarmos os outros. Motivos não faltam, embora dependam um pouco da idade — a mentira altruísta, por exemplo, é mais comum entre os mais novos. As crianças são conhecidas por dizer o que pensam sem grandes hesitações, mas a verdade é que o ser humano mente desde pequeno por causa do que observa e das experiências que acumula. A criança pode mentir para competir com outras crianças, pode fazê-lo por acreditar que fica em vantagem em relação a algo ou, então, para evitar uma consequência negativa. “Não nascemos a saber mentir. Mentimos porque, enquanto crianças, aprendemos a fazê-lo com os pais ou com outras pessoas que nos são próximas. Tendemos a repetir comportamentos de referência, especialmente quando percebemos que nos podem trazer benefícios e/ou evitar situações constrangedoras”, explica Margarida Vieitez.

As mentiras das crianças são particularmente fáceis de desmascarar, uma vez que são muito espontâneas e os seu gestos denunciam-nas. Olhar para o chão ou fixar o olhar no adulto, numa atitude de desafio; falar baixinho ou elevar excessivamente a voz; ou demorar a responder ou fazê-lo demasiado rápido podem ser sinais de que uma criança mentiu e está a tentar não ser apanhada em falso, escreve María Jesús. “Cerca de 80% dos estudantes afirmam ter copiado em algum momento da vida”, continua a autora espanhola, referindo que a percentagem tem vindo a crescer com o uso das novas tecnologias. Mais: tanto a criança como o adolescente mentem para ganhar carinho e aprovação dos que os rodeiam — isso acontece particularmente entre os adolescentes que querem assegurar a aceitação de grupo, mas também para “deslumbrar” aqueles de quem gostam.

“O mentiroso compulsivo não para diante da verdade, nem diante da injustiça. É capaz de mentir sobre qualquer facto que se interponha no seu caminho e o afaste dos seus objetivos”, escreve María Jesús.

Não é preciso ser-se criança para mentir de modo a agradar e/ou ser aceite pelos outros. Os adultos também o fazem — esta é, na verdade, uma das mentiras mais frequentes. Aquilo que os psicólogos chamam de “desejabilidade social” é o que nos leva muitas vezes a alterar a realidade em detrimento do que os outros pensam. Embora pareça um ato inofensivo, as pessoas que o fazem são tendencialmente mais inseguras, com altos níveis de ansiedade e baixa auto-estima. “A pessoa que mente para tentar agradar ou surpreender favoravelmente vive numa espécie de realidade ‘paralela’, na qual pode chegar a inventar em todas as esferas da vida: em relação ao trabalho, aos rendimentos, às propriedades, à família, aos amigos que tem…”, tal como se lê no livro já citado. O leque de mentiras, ainda que neste contexto, pode traduzir-se num estado de intranquilidade permanente — às vezes, pode acontecer que a fronteira entre a realidade e a ilusão se dilua.

Tipos de mentira

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Segundo María Jesús Álava Reyes, existem os seguintes tipos de mentira:

  • Mentiras descaradas, falsificações e exageros;
  • Mentiras leves ou subtis, egoístas, individualistas e altruístas;
  • Mentiras sociais, narcisistas, psicopáticas, patológicas, para salvar a vida e mentiras de trabalho.

Se a insegurança e a falta de confiança em nós disparam a “frequência das mentiras”, então talvez faça sentido o que os estudos no âmbito da psicologia, citados no livro de María Jesús, revelam: os introvertidos, tidos como pessoas que tendem a ficar mais ansiosos perante o contacto com os outros, mentem mais do que os extrovertidos, que parecem ter nascido com o dom da conversa. Esclarece ainda a autora que a maior parte dos introvertidos opta por mentiras elaboradas e pensadas, muitíssimo bem argumentadas, o que torna difícil o seu despiste.

Em que outros contextos mentimos?

  • Mentimos para seduzir: numa relação de casal mente-se desde o início, embora isto possa soar um pouco estranho, uma vez que é precisamente na fase inicial que nos damos a conhecer ao outro — e é nessa etapa que decidimos avançar ou abrandar. Um estudo de 1999 demonstrou que quase todos os participantes envolvidos, cerca de 90%, admitiram estar dispostos a mentir num primeiro encontro. As mentiras do primeiro encontro já ganharam bastante popularidade na internet — há páginas dedicadas a decifrar as principais mentiras e outras que enumeram os enganos “aceitáveis”. De qualquer forma, mentir num primeiro jantar ou café não é o mesmo que levar a ilusão para uma relação:
  • Mentimos por maldade: a mentira pode tornar-se numa coisa negativa quando, por um lado, se torna compulsiva — quando o recurso à mentira se torna incontrolável ou, por outro, quando os motivos que a justificam “têm um impacto muito negativo nos outros”, confirma Inês Afonso Marques, da Oficina de Psicologia. “Muitos argumentarão que não é a mesma coisa mentir para ‘nos protegermos’, para dar uma boa imagem de nós próprios, ou mentir para injuriar, caluniar ou desacreditar… e têm razão”, acrescenta María Jesús
  • Mentimos ou exageramos? Exagerar pode não ser o mesmo que mentir, uma vez que todos temos perceções diferentes da realidade, do que vivemos no dia a dia. “A subjetividade é uma constante na nossa vida e cada um de nós perceciona a realidade de forma diferente e única”, diz a psicóloga Margarida Vieitez. É provável que quem tende a exagerar e a ser exibicionista tenha uma autoestima muito frágil e procure desta forma o reconhecimento dos outros. Há quem crie grandes histórias, enredos dignos de Hollywood: pessoas que já foram agentes do SIS, que nasceram a bordo de um avião ou que inventaram o post-it (ou outra coisa qualquer cujo inventor todos desconhecemos). Também nestes casos a mentira surge para evitar algum tipo de sofrimento.
“A pessoa que mente para tentar agradar ou surpreender favoravelmente vive numa espécie de realidade ‘paralela’, na qual pode chegar a inventar em todas as esferas da vida: em relação ao trabalho, aos rendimentos, às propriedades, à família, aos amigos que tem…"
María Jesús Álava Reyes, psicóloga

Perfil de um mentiroso

Existem determinados sinais que nos permitem identificar um mentiroso, assegura a psicóloga Margarida Vieitez. Se pedirmos a um mentiroso para voltar a contar uma história sobre a qual temos dúvidas, o mais provável é que ele a conte sempre de forma diferente. A falta de contacto visual, ou a dificuldade em manter o olhar, também pode ser um fator denunciante, ao qual se acrescentam os seguintes tópicos:

  • Ansiedade constante;
  • Rir quando a conta a história;
  • Dar muitos pormenores ou não dar nenhuns;
  • Entrar em contradição;
  • Dizer repetidamente “Mas que importância é que isso tem?”;
  • Linguagem verbal que não coincide com a linguagem não verbal;
  • Elevar o tom de voz e demonstrar irritação;
  • Afirmar que a conversa não faz sentido e/ou fugir;
  • Tentar acusar e culpar o outro;
  • Afirmar que o outro está a ficar louco.

“Se há algo que ‘delata’ o mentiroso é a incoerência dos factos; a falta de correspondência entre o que diz e o que faz, a impossibilidade de comprovar as suas ‘credenciais’, o desmoronamento desse acumular de falsidades sobre as quais edificou uma identidade inexistente”, acrescenta a psicóloga María Jesús.

Infidelidade, a mentira mais comum no amor

Para a maioria das pessoas, as mentiras mais dolorosas acontecem no contexto de uma relação afetiva, assegura María Jesús Álava Reyes. Há estudos que sugerem que, quando estamos numa relação, mentimos desde o começo. É também nas relações afetivas que somos mais cegos à mentira — regra geral, é alguém próximo da pessoa implicada na mentira que se apercebe dos primeiros sinais, das incongruências.

A infidelidade é uma das principais mentiras que assombra a vida em casal. Nas consultas de psicologia dedicadas a resolver os problemas de uma relação, garante a autora acima citada, o pedido de ajuda tende a coincidir com o começo ou a descoberta de uma infidelidade. “Os principais estudos que foram realizados sobre a questão mostram-nos que a maioria dos inquiridos reconhecem que a mentira mais importante que contaram na sua vida foi aos parceiros, e fizeram-no para encobrir factos importantes tais como infidelidades”, escreve a psicóloga.

Segundo uma sondagem nacional, realizada pela American Association for Marriage and Family Therapy, 15% das mulheres casadas e 25% dos homens casados já tiveram um caso extraconjugal.

“A infidelidade dificilmente é um fenómeno novo”, lê-se num artigo do The New York Times. A infidelidade existe desde que as pessoas se juntam, escolhem a união, estejam ou não casadas. E quem faz terapia de casal confirma que a traição pode acontecer em relações felizes ou naquelas mais complicadas. Segundo uma sondagem nacional, realizada pela American Association for Marriage and Family Therapy, 15% das mulheres casadas e 25% dos homens casados já tiveram um caso extraconjugal.

Considerando uma amostra superior a 1.500 pessoas, María Jesús cita outro estudo que revela que a maior parte dos casos de infidelidade acontece com colegas de trabalho. “Se pensarmos bem, não deveríamos estranhar esta descoberta; se passamos grande parte da nossa vida no trabalho, muitos colegas acabam por converter-se em amigos, em confidentes e, em alguns casos, em amantes”, escreve a autora. O mesmo estudo deixa outra realidade a descoberto —  as mulheres tendem a descobrir mais facilmente a infidelidade dos maridos, ao contrário do que acontece com os homens em relação aos casos extraconjugais das suas mulheres.

Se por um lado há estudos que sugerem que as mulheres têm uma maior sensibilidade e aversão à mentira, considerando-a como algo mais inaceitável do que os homens, por outro, Margarida Vieitez verifica ainda que, na maior parte das vezes, a pessoa que é enganada “finge e nega” o facto. “A confiança mútua é um dos alicerces básicos de uma relação amorosa. Quando deixa de existir, a continuidade da relação e a sanidade mental dos envolvidos é colocada em causa.”

É ainda importante ter em conta que nem todas as infidelidades têm a mesma base de mentira. Há situações em que esta é vivida como um direito e, noutros casos, serve enquanto sinal de alarme que nos faz questionar a nossa própria realidade. “Quando uma pessoa pensa que tem direito a ser infiel, a mentira será uma constante na sua vida”, escreve María Jesús, que oferece ainda a seguinte ideia: “Quando as pessoas são basicamente fiéis, de imediato sentem-se mal, preocupadas e arrependidas da sua infidelidade. (…) Não procuram enganar-se a si próprias, podem ser muito duras consigo mesmas e, uma vez superado o estado de choque que provocou a sua infidelidade, tendem a canalizar todas as suas energias e a sua determinação em não voltar a ser infiéis e, frequentemente conseguem-no. No fundo, são pessoas de ‘verdade’, que odeiam a mentira, embora possam optar por calar ou silenciar a realidade”.

Segredos e o peso da mentira

Há sensivelmente seis anos, a página Post Secret, que se dedica a receber e partilhar segredos anónimos, recebeu uma confissão que, verdadeira ou falsa, ainda hoje faz confusão aos seguidores do projeto. Em 2017, no dia do aniversário do ataque terrorista, o site Yahoo recordava o segredo: “Todas as pessoas que me conheceram antes do 11 de setembro pensam que estou morto/a”. O exemplo ajuda a ilustrar a seguinte pergunta: qual o impacto de um grande segredo em quem o carrega?

Mentir e/ou carregar um segredo pode ser um fardo particularmente pesado. Quem esconde uma mentira corre o risco de ficar constantemente alerta, o que por si só já representa um grande desgaste emocional. Situações destas podem fazer com que exista um corte com a realidade — a pessoa foca-se em passar uma imagem externa que não se coaduna com o que vive internamente. Esconder um segredo ou preservar a mentira, de maneira a evitar algum tipo de sofrimento, impossibilita que lidemos com o problema em questão. “A pessoa vai suportando mas, a determinado momento, tudo aquilo pode transbordar”, diz Inês Afonso Marques. Alguém nestas circunstâncias vai ter dificuldade em dormir, palpitações e uma ansiedade crescente.

“As consequências podem ser as mais diversas”, completa Vieitez, que fala ainda em ansiedade intensa, angústia, receio e medo constantes, raiva, revolta, tristeza profunda, descontrole emocional e desgaste que pode até apresentar somatização a nível físico e apresentar várias patologias. A depressão é também uma realidade.

A ideia de que guardar segredos pode ser prejudicial não é propriamente nova. São muitos os artigos de âmbito psicológico que abordam esse tema: em 2013, a revista Forbes dava conta de que os neurocientistas acreditam que é biologicamente melhor para o ser humano se este confessar segredos em vez de os manter. O mesmo artigo sugere que carregar segredos pode perturbar o sono o que, por sua vez, pode originar mudanças de humor e propensão para mau temperamento. Dificuldades ao nível da memória e da aprendizagem são também possibilidades, incluindo ainda o aumento ou a perda de apetite. No Quartz lê-se ainda que o que é prejudicial face ao segredo não é ter de o esconder, mas sim viver com ele, uma situação que sugere permanência.

Mentir e/ou carregar um segredo pode ser um fardo particularmente pesado. Quem esconde uma mentira corre o risco de ficar constantemente alerta, o que por si só já representa um grande desgaste emocional. 

Aceitar e partilhar são os passos fundamentais. “Assumir o erro, seja de que dimensão for, já é terapêutico. Não nos vamos deixar de sentir culpados por isso, mas, para tomarmos decisões é preciso atribuirmos significado ao que estamos a sentir. Para reagir é preciso ter consciência das emoções. E só assim é possível partilhar o problema”, continua Inês Afonso Marques, que aconselha a abrir o jogo com alguém de confiança. “Eu não sou a minha raiva, a minha culpa, aquilo que me aconteceu. Ao falar com alguém ganho perspetiva. Nesse sentido, escrever também tem um efeito libertador.”

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Negação. Quando mentimos a nós próprios

Todos temos comportamentos de auto-sabotagem e o mais poderoso é a negação, escrevia Walter E. Jacobson no The Huffington Post. No artigo de opinião de 2014, o psiquiatra descreve a negação como um mecanismo de defesa que libera a ansiedade e o desconforto emocional. Já antes Freud assumira a negação como uma “defesa contra realidades externas que ameaçam o ego”, afirmação que vai ao encontro do que muitos psicólogos consideram, isto é, que o estado de negação pode ser uma defesa perante notícias difíceis de aceitar, tal como o diagnóstico de um cancro.

Margarida Vieitez não tem dúvidas: negar uma realidade é o mesmo que mentirmos a nós próprios, o que acontece quando não estamos preparados para lidar com a dor e o sofrimento associados a determinada situação. “No caso das relações amorosas, a ideia da rutura pode fazer surgir o medo e a angústia do desconhecimento, da solidão, de nunca mais encontrar o amor”, exemplifica. A ideia vai de encontro à história de N*., de 33 anos.

N. apaixonou-se por outra pessoa já a relação que tinha com José* durava há vários anos. Quando lhe contou e pediu o fim do namoro, José ficou em choque, em negação. “Durante os cinco anos seguintes ele continuava a levar-me às festas familiares — aos batizados e aos almoços de família — como se nada fosse, como se eu continuasse a ser a namorada dele”, recorda ao Observador. N. estava fisicamente envolvida com outra pessoa e José sabia disso, mas não conseguia deixá-la ir. Discutir essa relação era tabu, mesmo que ele próprio procurasse os seus affairs. N. fala em “negação total”. “Eu não o queria magoar, por isso é que ia a esses encontros de família. Mas, confesso, uma ideia de futuro sem ele também me era inaceitável, apesar de não o ver, à data, como namorado”. Ainda hoje, passados dez anos, os amigos e a família de José desconhecem o motivo que levou ao fim do namoro. “Foi só quando ele saiu do país que as coisas melhoraram. Acho que ele usa isso como desculpa para o fim da relação.”

“Podemos autoenganar-nos para nos defendermos de nós mesmos, para nos sentirmos mais valiosos, mais inteligentes, mais hábeis ou melhores pessoas do que somos”, escreve Marís Jesús.

Embora a negação faça parte da vida, não querer pensar ou negar pode trazer um sofrimento ainda maior do que a aceitação da própria dor e a confrontação com o problema, “especialmente quando se trata de relações amorosas em que há muito tempo os dois não encontram qualquer sentido para além do financeiro”, aponta Vieitez. “A realidade pode ser tão dolorosa que nego o que me está a acontecer porque sinto que não tenho recursos para lidar com isso”, acrescenta Inês Afonso Marques.

São muitas as situações que podem originar um estado de negação: evitar ir ao médico para não ser confrontado com o risco de más notícias, culpar os outros ou o universo pelo que nos acontece, adiar constantemente a dieta ou fazer a mesma coisa e esperar resultados diferentes. Os exemplos são dos mais práticos que há e revelam que, muito provavelmente, já todos nós negámos uma realidade que nos era desconfortável.

“Salvo casos excecionais (…), as pessoas que se autoenganam, apesar da imagem que oferecem ao exterior, costumam esconder grandes inseguranças, que estão na origem das suas mentiras.”
María Jeús no livro “A Verdade da Mentira”

Pessoas que abusam de outras e que acreditam que as vítimas vão ficar bem, estão em negação. Amigos que procuram uma opinião mais favorável em detrimento daquela mais verdadeira, estão em negação. “Só porque conseguimos encontrar várias pessoas que dizem que estamos certos não quer dizer que estamos certos”, assegura Walter E. Jacobson no artigo publicado no The Huffington Post. A expressão “estou só a brincar”, quando efetivamente não se está, pode ser também negação, ainda que numa escala muito menor. E o que dizer de viver no passado, com os pensamentos colados persistentemente às memórias? Exatamente o mesmo: negação.

O estado de negação pode ter vários graus. A negação pode ser tão profunda que nos faz esquecer dos factos e pintar a realidade com outras cores. O ser humano tem uma necessidade urgente de ser aceite, pelo que também mente a si próprio para se ajustar numa realidade — exemplo disso é quando alguém mente sobre a sua orientação sexual.

A negação, avisa a psicóloga Inês Afonso Marques, impede-nos de avançar, deixa-nos bloqueados, num estado de anestesia, em que quase não sentimos nada. “Estar em negação é um evitamento experiencial, permite-nos não sentir nada.” Foi o que aconteceu com o namorado de R*, que após um evento traumático relacionado com a saúde do pai tornou-se numa pessoa profundamente apática. “Tentou mostrar força e controlar as emoções”, conta R. ao Observador, recordando como o namorado de longa data deixou de desabafar e partilhar o seu dia a dia. R. recorda os “sinais de ausência completa de emoções, positivas ou negativas”, mas também o isolamento e a mudança de hábitos que se foram acumulando ao longo do tempo, até que o carinho e o apoio dela tornaram-se dispensáveis. “Começou a dar-me respostas mais agressivas, do ‘Não preciso de nada’ a ‘Não tenho nada para te dizer'”, continua. Sensivelmente quatro anos após o problema de saúde do pai, que nunca recuperou a 100%, a relação terminou. “Cheguei a propor ajuda psicológica, mas ele nunca tinha disponibilidade para ir às consultas.”

Negacionismo

Há quem argumente que o Holocausto nunca existiu. Em vários países europeus existem leis que proíbem a negação do genocídio de milhões de judeus durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Mas não é preciso ir muito longe para continuarmos a explicar o que se entende por “negacionismo” — esse ato de “negar ou não reconhecer como verdadeiro um facto ou um conceito que pode ser verificado empiricamente”, tal como se lê no dicionário Priberam. No Twitter de Donald Trump é possível assistir ao Presidente dos Estados Unidos a negar as alterações climáticas:

O negacionismo foi tema de destaque muito recentemente no jornal The Guardian, que procurou explicar o que leva as pessoas a negar a verdade — factos como a questão das vacinas ou do aquecimento global. No artigo, Keith Kahn-Harris escreve como o negacionismo pode criar uma atmosfera de ódio e de suspeita e como existem situações associadas a este “movimento” que já foram verdadeiramente prejudiciais tendo em conta a vida de terceiros: na África do Sul, o presidente Thabo Mbeki, que esteve no poder entre 1999 e 2008, foi influenciado por pessoas que negam a correlação entre HIV e sida e mostrou-se relutante a implementar programas de tratamento nacional à base de medicamentos anti-retrovirais — estima-se que cerca de 330 mil pessoas morreram.

Manipuladores e psicopatas domésticos

Pessoas que numa primeira fase nos seduzem para, depois, nos desvalorizarem. Essa pode ser a definição de alguém manipulador, que procura o controlo e a dependência do outro. Não existe predominância de género, nem contexto — pode acontecer entre amigos, familiares, no local de trabalho e, sobretudo, nas relações amorosas. Em 2015, Margarida Vieitez, mediadora familiar, e Fernando Mesquita, psicólogo clínico, autores do livro SOS Manipuladores, identificavam ao Observador os sinais a que devemos estar atentos, as estratégias de manipulação mais recorrentes e os comportamentos que devemos ter para não sermos “intoxicados”.

Mais perigosos serão os psicopatas domésticos ou integrados, indivíduos que o psicoterapeuta e professor universitário Iñaki Piñuel estuda há cerca de 25 anos — personagens narcisistas, mentirosas e manipuladoras que podem estar entre nós. “Eles, os psicopatas, não têm moral, não têm consciência. E não têm a capacidade de sentir compaixão pelas suas vítimas”, disse em entrevista ao Observador em 2017.

Psicopatas domésticos. Eles estão entre nós e nas nossas relações

“O psicopata integrado é uma pessoa integrada na sociedade, que faz uma vida aparentemente normal, à exceção de que não tem emoções, não tem sentimentos de culpa e, portanto, é muito frio e eficaz quando se propõe a depredar uma vítima”, disse também. Esta tende a ser uma pessoa sem emoções reais, com ausência de medo e de ansiedade, com falta de empatia e maior probabilidade de trair os parceiros. “Os psicopatas são, sobretudo, pessoas que vivem dos outros, são parasitas. Sabem muito bem como posicionarem-se enquanto objeto de desejo de toda a gente. Têm a capacidade de manipular os outros e, se têm um problema, seduzem ou compram as pessoas que necessitam de ter a seu lado.”

Eis o perfil de um psicopata doméstico:

  • Apresenta uma simpatia e encantos superficiais;
  • De repente, passam a ser almas gémeas;
  • Aposta num forte magnetismo emocional e sexual;
  • Bombardeia-o de amor no início da relação;
  • Culpa-o de tudo;
  • Mente permanentemente;
  • Faz um contacto visual hipnótico;
  • Manifesta frieza e falta de emoções;
  • Mostra-se arrogante e orgulhoso;
  • Aborrece-se facilmente.
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