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“Situações como esta vão repetir-se.”
(António Costa, 16/Outubro/2017)
Infelizmente, a frase do primeiro-ministro acima citada foi na muche. Interessa perceber porquê, e discutir a partir daí se estamos mesmo de pés e mãos atados.
Os limites da estratégia vigente
“O fogo (…) é uma criação do seu contexto. Conhecer esse contexto é conhecer o fogo. Controlar esse contexto é controlar o fogo.” (Stephen J. Pyne)
O fogo é uma expressão da natureza. Não o compreender enquanto tal tem levado a muitas teorias da conspiração, ancoradas em dois grandes mitos:
- Isto tem claros culpados: e depois aponta-se o dedo a tudo e todos — os terroristas incendiários, a falta de ordenamento, os eucaliptos, os madeireiros, os especuladores imobiliários, as eleições, etc., ignorando até o que é a investigação policial;
- Isto resolve-se com mais meios: bombeiros, viaturas, aviões…
Consequentemente, durante décadas temos investido na diminuição de ignições (com esforços na investigação e punição de responsáveis, campanhas de sensibilização para comportamentos, reforço de vigilância, legislando sobre atividades em áreas queimadas — silvicultura, construção, etc.), e apostado ano após ano nos maiores dispositivos de sempre.
Não obstante, e apesar de já neste século termos diminuído para metade as ignições e triplicado a força de combate, no longo prazo a área ardida mantêm-se constante, e as tragédias sucedem-se.
Porquê? Porque para Pedrógão (ou Pampilhosa ou Oleiros, etc.), deflagrarem 50 ou 200 fogachos na Área Metropolitana do Porto é irrelevante, o problema é outro: uma paisagem altamente combustível que permite o desenvolvimento de monstros de fogo — são estes, 1 em 1000, que determinam se o ano é bom ou trágico, não os outros 999. E porque, face a esses monstros de fogo, a única coisa que podemos fazer é sair da frente, porque os meios nunca serão suficientes (aliás, estes grandes incêndios normalmente só se apagam quando ao fim de uns dias chove ou chegam a zonas onde já não há o que arder).
Descontextualizada, a estratégia mostra-se infrutífera. E, como veremos de seguida, até contraproducente.
O contexto natural
O fogo existe em tudo o quanto é vegetação, dependendo de combustível para arder e de condições meteorológicas para tal.
Na série de biomas, o mediterrânico situa-se na transição entre os desertos e as zonas temperadas. Nos desertos, há clima para arder, mas não há vegetação. Nas zonas temperadas, há vegetação, mas o clima húmido todo o ano não deixa arder. No Mediterrâneo, há meses temperados, que permitem haver vegetação, e há meses desérticos no Verão, que permitem que essa vegetação arda. Isto é ainda mais notório no noroeste ibérico, a mais temperada das regiões mediterrânicas.
É, desta forma, natural e expectável que seja em Portugal e não em Inglaterra, Alemanha (vegetação, mas sem condições propícias), Marrocos ou Argélia (condições propícias, mas pouco para arder), nem sequer em Itália ou Grécia (humidade decrescente quanto mais longe do Oceano Atlântico), que o problema com incêndios é mais agudo.
A origem maioritariamente humana das ignições, contudo, conduz a perceções desfasadas pela dificuldade em entender a natureza do fenómeno. Algo que tanto é verdade entre nós como naqueles locais onde, por distanciamento, o conseguimos percecionar, casos da Austrália ou da Califórnia (onde também, nos anos maus, mitos incendiaristas se levantam).
Vou tentar explicar.
Absolutamente todos os dias, faça chuva ou sol, esteja frio ou calor, há elevado potencial de produção de ignições — há inúmeros acidentes, há bebedeiras todos os dias, há fumadores a atirar beatas pela janela, milhares, todos os dias, há milhares de quilómetros de linhas elétricas, há centenas de comboios a circular, há pessoal a cortar mato, a fazer churrascos no verão, a fazer queimadas e queimas, há trovoadas, etc, etc, etc.
Assim, todos os dias podiam ocorrer centenas de incêndios, milhares de incêndios.
Basicamente, as condições meteorológicas (no dia e no acumulado) — para uma mesma carga combustível que, ao longo de dias, muda muito pouco — determinam se é um dia com poucas, algumas, muitas ou imensas ignições.
O mesmo comboio que a semana passada não fez incêndio nenhum (apesar de centenas de faíscas), passa naquele dia e faz deflagrar 20 incêndios (com as mesmas centenas de faíscas). Porque o dia está terrível, muito quente, após um mês de calor e secura; o vento está forte; as linhas elétricas abanam e descarregam e, apesar de lá passar eletricidade todo o ano sem problemas, naquele dia fazem mais umas dezenas; a roçadora a cortar mato bate em muitas pedras todo o ano, naquele dia a faísca fica a remoer no mato, e horas depois, já lusco fusco, um sopro de vento origina uma ignição noturna; tal como os jovens que estão bêbados na fonte da aldeia e atiram cigarros que nos outros dias se apagaram, mas, naquele, incendeiam a caruma; o churrasco apagado com uma chapa por cima, naquele dia larga fagulhas e incendeia o ervazal no quintal; passa uma trovoada seca e deflagram mais 40 ou 50 incêndios; o tipo que já tentou três ou quatro vezes nos últimos meses pegar fogo à horta do vizinho, naquele dia consegue; a queima dos restos da limpeza do olival, com tudo seco e o vento a soprar, naquele dia foge ao agricultor que se distraiu a comer um pão com queijo.
A conclusão é evidente: são fatores naturais — a vegetação e o tempo — a responder por isto, ainda que a ignição derive de ação humana. Para as mesmas 100 ignições, são estes fatores que evitam que em Inglaterra haja problemas, e que a nós nos trazem o inferno.
E se o exposto reflete condições naturais, não podiam faltar à nossa volta evidências de uma relação ancestral — mais antiga que a nossa própria espécie — entre o fogo e a vegetação: da cortiça dos sobreiros às pinhas do pinheiro-bravo, das gemas da carqueja aos óleos da esteva, ou às torgas das urzes, etc. O nosso verde, portanto, que quando cresce descontroladamente está na origem do denominado “Barril de Pólvora”!
Então, mas se isto é algo com milénios, porque é que antes não era problemático e nas últimas décadas passou a ser?
O atual padrão de fogo
De uma forma muito básica, podemos ver a coisa nesta perspetiva: o ecossistema produz (e muito), a produção é consumida (pelos herbívoros selvagens, pelo gado doméstico, pelo Homem para utilizações várias, pelos decompositores), e depois há as sobras. O fogo fica com as sobras.
Ora, até meados do século passado, Portugal era um país rural. Não só a biomassa era usada para iluminação, aquecimento, alimentação (não havia luz elétrica, gás, fogão, ar condicionado, etc.), como a agricultura precisava de nutrientes, e o adubo era o mato que o gado comia nos montes e que, via estrume, fertilizava o solo que produzia comida, isto além do mosaico de áreas ardidas — descontinuidade para grandes incêndios — resultante das queimas para renovação de pasto, para carvoaria, cavadas de centeio, etc.
Isto é, o mato era um bem para as populações (e justificou, por exemplo, a recusa dos municípios às obrigações de arborização desde a Lei das Árvores de 1565) e abundantemente consumido. As sobras eram poucas ou nenhumas. Como tal, os incêndios não eram um problema (isto, na paisagem rural. Aqui e ali, em terrenos do Estado ou da Igreja, havia floresta, e esta tinha de ser protegida do fogo, usando para isso o próprio fogo — controlado).
Todavia, acabada a 2ª Grande Guerra, este mundo rural colapsou rapidamente, assim como num ápice os matos, que de um bem passaram a um custo insuportável, cresceram e invadiram tudo (aqui, entenda-se que num incêndio as árvores são apenas chamuscadas, já que o fogo avança sobretudo sobre combustíveis finos — raminhos, folhada, ervas secas, etc.). Em 1969, escrevia assim Oliveira e Costa nas páginas da Comarca de Arganil (nº 6487): “Quem noutros tempos atravessou montes e vales à caça e pretenda fazê-lo neste momento fica espantado com o que observa. O mato atingiu proporções inacreditáveis, selváticas, onde apenas podem passar os animais bravios. É um matorral com alguns metros de altura e quilómetros de extensão. É terra perdida, sem valor, a aguardar o fogo que virá um dia.”
E não foi preciso aguardar muito, já que o fogo, enquanto sintoma desta transformação — pegando na fórmula acima, as sobras passaram de poucas ou nenhumas a imensas —, não se fez esperar, e logo em 1961 demonstrou quão destruidor pode ser:
“Com efeito, às 16 horas do dia 28 de Agosto de 1961, um incêndio de enormes proporções atingia e transpunha o Rio Zêzere, impulsionado pela força dos ventos, propagando-se em várias direções. O incêndio chegou a desenvolver uma frente de cerca de 15 quilómetros, desde Atalaias, no concelho de Pedrógão Grande, até à freguesia de Arega, do concelho de Figueiró dos Vinhos. Conjugado com outro incêndio, que rebentara nas imediações da serra de S. Neutel e ameaçou a vila de Figueiró dos Vinhos, foram 14 as povoações do concelho figueiroense ameaçadas pelas chamas.”
(Relatório inédito, enviado ao inspetor de incêndios da zona sul, 23 de Abril de 1963).
“Espectáculo arrepiante e dantesco: aos uivos das labaredas; aos ruídos matraqueados dos desmoronamentos de telhados e paredes; ao crepitar das madeiras incandescentes; ao rechinar das carnes e gritos aflitivos dos animais domésticos, juntavam-se os clamores zenitantes da dor dos habitantes que, imponentes para dominar o monstro, foram testemunhas passivas e dolorosas da destruição dos seus lares e haveres.”
“Vimos ferros de camas torcidos e calcinados, sinais de derramamento de gorduras, milho queimado, ovelhas, cabras, suínos, batatas e utensílios domésticos, pedaços de relógios, potes de azeite partidos e entornados, eiras repletas carbonizadas, tudo deformado, apavorante. Os soldados abriam longas valas, trazendo em padiolas dezenas e dezenas de animais domésticos carbonizados e mutilados a fim de serem enterrados. Era um espectáculo sinistro, terrivelmente marcado. Os poucos regressados do lugar não pareciam pessoas, eram farrapos humanos, abatidos por profunda depressão moral e física.”
“Das 49 casas que existiam no Vale do Rio, arderam 35. Também arderam dezenas de anexos que serviam de arrecadação, currais, capoeiras, fornos de broa e centenas de animais. A população era de 167 moradores. No lugar de Casalinho havia 17 habitantes distribuídos por 5 casas que arderam na sua totalidade. A aldeia foi simplesmente riscada do mapa.”
(Jornal «A Regeneração», n.ºs 1025, 1026 e 1030, de 1961)
E não mais mudou — ainda nessa mesma década, as tragédias multiplicaram-se de norte a sul do país: ardeu Boticas com 4 mortos, ardeu Sintra onde 25 militares perderam a vida, ardeu Monchique num dos maiores incêndios do século. Pelo contrário, porque também o contexto não só não mudou como se foi agravando (aqui vale a pena voltar ao início quando disse que a estratégia não só não funcionava como era contraproducente: ao apagarmos tudo quanto é fogo, contribuímos para aumentar as sobras, agravando o problema no futuro — a famosa “Ratoeira do Combate”, abundante na bibliografia e tema da tese de doutoramento do líder da Agência para a Gestão Integrada de Fogos Rurais).
O conhecimento e as políticas públicas
“Dos factores que determinam o comportamento do fogo — meteorologia, topografia e vegetação (combustíveis) —, a acção humana apenas pode condicionar o último, pelo que a gestão do combustível deve logicamente constituir uma peça chave da protecção contra incêndios.” (Countryman, 1974; Rego, 1991; Merida, 2000)
Dada a produção de conhecimento sobre o contexto do fogo (pelo Instituto Superior de Agronomia, pela Universidade de Trás-os-Montes ou pela Universidade de Coimbra), assim como pela sequência de falhanços e o acumular de catástrofes, e de relatórios técnicos sobre elas, mal era se não houvesse abertura para que este conhecimento chegasse ao poder político.
O que, e apesar dos muitos interesses em presença (que existem, sem ser preciso nenhuma conspiração: é claro que sem fogos não há concursos para aviões, é óbvio que alguns bodes expiatórios, sendo o foco de algumas agendas, sejam resilientes, é até compreensível que o “passa-culpas” dê jeito para desresponsabilização, etc., incluindo o interesse no voto, resultante na preferência pelo imediatismo e espetacularidade — a tal conversa do maior dispositivo ou do terrorista incendiário), aconteceu mesmo.
Ainda que Costa continue a abanar a sua mão (aludindo à mão criminosa), ainda que os ministros, autarcas, jornalistas, etc., continuem com as suspeições de fogo posto, ou que se continue com os anúncios sonantes, etc., parece então haver consciência do verdadeiro problema — a combustibilidade da paisagem.
Olhar o problema por outras perspetivas, diga-se, não faz sentido:
É o mesmo que termos uma casa com o gás aberto. A casa enche-se de gás. O que temos que fazer? Deixar as coisas como estão e investir em ignições zero, sensibilizando todos para não ligar interruptores, não acender um fósforo, uma vela, não deixar cair objetos, etc., ao mesmo tempo que compramos mais extintores, mantas ignífugas, máscaras de fumo, etc.? Não, porque inevitavelmente haverá um descuido, por um lado, e por outro, depois do caldo entornado, nada evitará o pior. O que há a fazer é… Abrir uma janela para sair o gás. Ou seja, diminuir a carga e a continuidade dos combustíveis, gerir o mato.
Como? Essa é fácil: como sempre se fez: com fogo controlado, com pastoreio, com gestão florestal ativa, etc. Como constava do Regimento dos Monteiros, ou como o Coronel Varnhagen ensinava no seu manual, ou ainda — disse-o, por exemplo, Komarek numa visita há umas décadas ao nosso país —, compreendendo o papel do fogo indígena, seja dos Arborígenes na Austrália, dos Índios na América ou dos Pastores do Mediterrâneo. Não temos que inventar a roda, fizemo-lo por muitos séculos.
Onde está o problema?
Esta noção já é um começo? Já. Como diz Pyne, controlar o fogo é controlar o contexto. O que, não podendo controlar o tempo, significa controlar o mato. Mas aí é que a porca torce o rabo.
Não que não tenhamos começado a ouvir falar de planos de fogo controlado (que, apesar de usado há séculos, Sócrates reivindicava ser invenção sua), de extensas limpezas florestais (lembram-se da maior desde D. Dinis?), do pagamento de serviços ambientais (pelo menos na letra do Plano de Recuperação e Resiliência), de que podíamos aproveitar/deixar arder sem apagar de imediato fogos de inverno (Tiago Oliveira, numa entrevista já este ano), ou de experiências como sejam as cabras sapadoras ou os planos de paisagem, etc.
Contudo, o que resulta da maioria destas medidas tem sido muito poucochinho.
Sendo medidas no caminho certo, porque falham (ou são manifestamente insuficientes), então? Porque lhes falta pés e cabeça. Pés/lógica económica para andar e cabeça/envolvimento das pessoas para querer andar.
É defeito político. Primeiro que tudo, há que perceber que isto é uma questão económica: a economia não liberta recursos para a gestão destas áreas. Face a esta realidade, a solução não pode passar por imposições (de leis, de planos, etc.): se a rentabilidade de um terreno não cobre o custo da sua defesa, não é uma obrigação que vai alterar esta conta simples. Logo, o resultado são leis por cumprir, trabalhos por fazer, subsídios por receber, etc.
Como agravante, o Estado não dá o exemplo, muito pelo contrário. Cadastro, propriedades grandes, dono conhecido, público até, e coisas que tal legisladas na tal Reforma Florestal? Para sermos todos como o Pinhal de Leiria?!? “Dar o exemplo não é a melhor maneira de influenciar os outros, é a única.” (Albert Schweitzer)
Em cima disto, inferniza-se a vida das pessoas, multando-as, fechando-as em casa, sufocando-as com burocracias, vedando-lhes o acesso aos poucos recursos disponibilizados – porque, entre Lisboa e o proprietário, estes se perdem para os intermediários, muitas vezes públicos, com o setor público a financiar-se a si mesmo à margem do Orçamento de Estado —, enfim, complicando em vez de ajudar (o que, aliás, é visível na própria estrutura, que é um emaranhado de entidades e onde sempre que possível se junta mais alguma – foi criada a AGIF, foi criada a Florestgal, foi recentemente anunciada a ponderação de um Regulador. E porque não mais uma Task-Force? Uma Direção Executiva? Um Conselho X ou um Observatório Y?).
No terreno — porque não chega ao proprietário ou, mesmo chegando, porque não é convincente ou sequer conveniente —, tudo isto passa à margem.
Como fazer diferente?
Com economia e com pessoas!
Em vez de complicar, de exigir, proibir, multar, impor, devíamos antes simplificar, remunerar, explicar, escutar, apoiar, envolver, confiar, construir em conjunto.
Primeiro que tudo, há que focar no essencial: é necessário gerir pelas paisagens qualquer coisa como — os números não são meus, são da AGIF, podiam até ser mais baixos — 200 mil hectares ao ano (como as intervenções têm efeitos positivos por quatro ou cinco anos, altura em que a operação tem que ser repetida, atingiríamos cerca de 1/5 das áreas de matos e florestas).
Sim, não é por si só negativo o empenho da GNR em investigar praticamente todas as ocorrências (realidade desde 2008 com as alterações ao código penal), como não o é melhores equipamentos ou melhor remuneração dos envolvidos, melhor organização e responsabilização (por exemplo, nas operações de rescaldo), maior acompanhamento das condições meteorológicas de risco, mais faixas limpas à volta de infraestruturas, etc.
Todavia, podem-no ser se nos afastarem do foco principal: gerir o mato.
Então, mas o Governo não fala tanta vez na limpeza? Há aqui um grande equívoco: a limpeza de que o governo tanto fala — e as notícias à volta disso, dos prazos às multas da GNR ou ao trabalho das autarquias — é a limpeza de infraestruturas, sejam casas, estradas, linhas do comboio ou elétricas, etc. Não é isso que vai fazer grande diferença: no monte, os incêndios crescem, e quando chegam a essas faixas já são imparáveis. É ao nível da paisagem que a combustibilidade deve ser gerida.
O drama é que não há uma base económica que o justifique, logo, não podemos ficar à espera de que sejam alguns particulares a perder dinheiro para fazer o trabalho do Estado. O trabalho do Estado? Sim, do Estado, porque se cortar 200 mil hectares é interesse público, é para o bem de todos, então temos que ser todos, o público, a pagar a limpeza.
Biomassa? Cadastro? Agregação de propriedades? Fiscalidade? Agilização de Heranças? Bancos de terras? Podemos dar as piruetas que quisermos: a área florestal na sua maioria não dá dinheiro, grandes porções do país estão ao abandono (são terras beras, de solo pobre e clima agreste, onde só cresce mato e pedra, que nunca serviram para mais nada que não pastar gados), pelo que o resultado é que a gestão de combustíveis fica por fazer até porque (e ainda bem, já que significaria uma tragédia económica e ambiental) não é nenhuma obrigação.
Aproveitar incêndios de inverno para fazer o trabalho de limpeza — deixar arder alguns hectares enquanto não representarem perigo, em vez de os esmagar com um helicóptero; apoiar verdadeiramente, em vez de criminalizar, burocratizar, etc., as queimadas. Em Lisboa há transportes grátis porta-a-porta, há recolha de lixo porta-a-porta, etc., porque não um serviço de queimadas porta-a-porta? Substituir-se ao proprietário para que a limpeza (se considerada estrategicamente necessária) seja feita — não me parece difícil com uma serventia de interesse público, até porque falamos de uma benfeitoria; Remunerar quem faz essa gestão como externalidade: pastores ou resineiros, por exemplo — se se paga a uma empresa ou se se paga uma equipa de sapadores pelo trabalho de limpar e, na verdade, o pastor faz o trabalho, porque não pagar pelo trabalho de interesse público realizado (notem que não é um subsídio, é pagar por trabalho prestado)?
Se, em vez de tecnocraticamente perseguir a mudança de toda a realidade para poder trabalhar, nos preocupássemos em trabalhar com a realidade, isto eram coisas que podíamos fazer para alcançar o tal objetivo.
A opinião pública? Precisava de que isto fosse explicado para ser compreendido, que isto fosse apoiado e até apelativo (não é fácil perceber, por exemplo, que há vantagens em deixar lavrar um fogo de inverno). Porque não uma mascote, um cabritinho? Não esquecer as cabras no IVA zero ou banir a carne das ementas governamentais; não a burocracia e a baixa remuneração das cabras-sapadoras, a sua não aceitação, e daí queixas ou chacota pelas populações, etc.
Os custos? A mais eficaz técnica e também a mais barata para o desígnio é o fogo controlado. A remuneração dos serviços de ecossistema devia também andar à volta desse valor. São qualquer coisa como 100 euros por hectare, o que vai ao encontro de uma proposta que o arq. Henrique Pereira dos Santos tem defendido e respondido bem à questão que surge muito: “Ai e tal, como pagar?”: comece-se por aí, se a adesão for baixa, sobe-se.
Contas feitas 100 euros x 200 mil hectares = 20 milhões de euros. Os meios aéreos custam mais do dobro disso. É alguma fortuna que justifique anos e anos de espera e rios e rios de dinheiro para tentar imputar custas a proprietários para fazer o trabalho do Estado?
Até lá?
A grande maioria dos terrenos pelos montes de Pedrógão desde 2017 não deu um cêntimo, e provavelmente não dará, já que o mais certo é arder antes. Grandes ou pequenas? Não há diferença: nem umas nem outras deram nada. Desenhadas num mapa ou não? Continuarão sem dar nada. Pertença de um indivíduo ou de toda uma família até partilhas? O ganho é o mesmo: nenhum. O resultado são quilómetros e quilómetros contínuos de giestas, carquejas, tojos, urzes, estevas, mimosas, pinheiros, eucaliptos, etc., etc. O barril de pólvora já está quase cheio e pronto a rebentar de novo. Nessa altura, formando-se novo monstro de fogo, de nada servirá que alguns quintais à volta das estradas ou das casas estejam limpos – afinal de contas, o fogo chega a galgar barragens, autoestradas, etc., e o fumo, as fagulhas, o pânico, as comunicações cortadas, etc., fazem o resto.
Até podemos saber o que fazer — controlar o mato para controlar o fogo —, mas não sabemos ou não queremos saber (porque confiar nas pessoas em vez de burocracia, ser cooperante em vez de punitivo, respeitar os direitos individuais em vez de autoritarismo, apostar no rigor, avaliação e melhoria em vez do despesismo na multiplicação de estruturas que depois só atrapalham, etc., não parecem ser posturas apelativas ao poder político), como o fazer.
Até lá, sabemos, não obstante, o resultado. Costa disse-o mesmo, a 28/06/2017, numa reunião com autarcas: “A coisa pior que pode acontecer é que a floresta volte a crescer como estava. Todos hoje sabemos bem que deixar a floresta crescer livremente é criar condições para que ela seja combustível.” Pelo que não venha depois Marcelo dizer que era imprevisível: não, não aprendemos, senhor Presidente, vamos ter mais Pedrógãos.
Porquê? Porque a parte que está ao nosso alcance controlar, não está controlada. O pior que podia acontecer, está mesmo a acontecer.
João Adrião é gestor Ambiental e Florestal