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A informação chegou da polícia britânica ainda em 2013 e foi sendo seguida com algum cuidado pelas autoridades nacionais: havia um grupo de portugueses a combater nas fileiras do autoproclamado Estado Islâmico e alguns deles tinham mesmo participado no rapto de dois jornalistas, um inglês e outro holandês. Mais: a polícia inglesa tinha já chegado à identificação de dois deles, mas por falta de provas acabaria por libertá-los.
Só em 2019 a Polícia Judiciária conseguiu juntar as peças que dariam origem a uma acusação que o Ministério Público considera inédita e que chega esta terça-feira à barra do tribunal: foram identificados oito portugueses envolvidos na organização terrorista, todos eles tinham vivido na zona de Massamá (Sintra) e emigrado para o Reino Unido, onde se radicalizaram. Pelo menos seis partiram para a Síria e só voltaram para vir buscar as mulheres e os filhos. Os outros dois mantiveram-se no Reino Unido mas, segundo a acusação, tinham um papel crucial no apoio logístico.
Foi um deles, Rómulo, detido em Portugal numa das visitas que fez à família em 2019, que se tornou chave para o processo. Com a sua detenção a polícia portuguesa reuniu uma série de material que o Ministério Público agora apresenta em tribunal, entre conversas por telefone, nas redes sociais, via e-mail e também através de vários textos escritos encontrados entre as suas coisas.
A única pessoa que se sentará ao lado de Rómulo no tribunal será Cassimo Turé, que ainda vive no Reino Unido. Um terceiro arguido estará preso na Síria. Dos restantes ninguém sabe: podem mesmo ter morrido ao serviço da organização terrorista.
Quem são os arguidos no processo?
São oito os arguidos no processo:
1. Nero Saraiva, conhecido por diversas alcunhas e nomes como Rashid, Gordo Abdul Rashid, Abu Yacub ou Abu Yakhoub Al Andaloussi. É um luso-angolano de 34 anos que, apesar de ter sido investigado em Portugal entre 2013 e 2019, acabou por ser preso só em 2019 pela coligação de milícias curdas e árabes durante a tomada de Baghouz, último reduto da organização terrorista Estado Islâmico, no norte da Síria. Em setembro de 2019, Nero (cujo nome muçulmano é Abu Yacub Al-Andaluz) deu uma entrevista à agência noticiosa curda ANF News onde relatou todo o seu percurso até à chegada às fileiras do Estado Islâmico. Vivia em Massamá. Estará preso na Síria e será julgado à revelia.
2. Sadjo Turé, com alcunhas como Xamanti, Xá, Chá, Shá, Picadas ou Abdullah Al Portugal. Português nascido na Guiné, vivia igualmente em Massamá. Terá 41 anos, mas o seu paradeiro é desconhecido. Poderá mesmo estar já morto.
3. Cassimo Turé, irmão de Sadjo, é outro dos acusados que também nunca chegou a ir à Síria. Vive no Reino Unido, prestou declarações às autoridades portuguesas e pediu para não comparecer ao debate instrutório do processo, conduzido por Carlos Alexandre. Já está em Portugal para ser julgado, mas encontra-se em liberdade. É conhecido também por Guedes ou Laço e em Portugal tem igualmente morada em Massamá.
4. Rómulo Costa, 40 anos, é um produtor musical nascido em Lisboa que vivia há 20 anos no Reino Unido. Nunca esteve na Síria, mas é visto pelo Ministério Público como o arguido que, a partir do Reino Unido, apoiou a atividade dos seus dois irmãos na Síria, bem como das suas deslocações. Está em prisão preventiva na cadeia de alta segurança de Monsanto, em Lisboa. Era conhecido como Romy, Rominho ou Romny Fansony.
5. Edgar Costa, irmão de Rómulo, 37 anos, tem também residência em Massamá, mas também não tem paradeiro conhecido. A investigação apurou que era conhecido por Fubas, Cudas, Batman, Bafo, Batman ou Abu Zakarya Al Andalus.
6. Celso Costa, irmão de Rómulo e Edgar, nascido em Lisboa há 34 anos. Também será julgado à revelia por se desconhecer o seu paradeiro. Algumas das suas alcunhas eram Stone, Sherif, Abu Isa Al Andalus ou Abu Issa Al Andalusi.
7. Fábio Poças, luso-angolano, vivia em Mem Martins e terá 28 anos. Também ele tinha várias alcunhas, algumas como Dragão Vermelho, Red Dragon ou Abdu Rahman Al Andalus.
8. Sandro Marques, com alcunhas e nomes como Funas, Primeiro, Primo, Mohamed ou Abu Yaninah Al Portugal tem a última residência conhecida em Portugal na zona de Monte Abraão. Terá 45 anos.
Como se conheceram?
Além das ligações familiares entre os arguidos, há um outro elo de ligação entre todos: a zona de Massamá. Foi lá que todos cresceram e se conheceram até que começaram a partir para o Reino Unido, para mudar as condições de vida.
Massamá foi, aliás, segundo as provas recolhidas pela polícia portuguesa, usado como ponto de comparação por Edgar para, numa conversa com Rómulo, lhe descrever a “matança” que o outro irmão, Celso, teria feito na Síria: “Uma matança numa cena do tamanho de Massamá”.
Nero Saraiva foi o primeiro português a ir para Londres, quando tinha ainda 12 anos.
Sandro Marques foi colega de escola dos irmãos Rómulo, Edgar e Celso naquela zona.
Foi também para a mesma região da linha de Sintra que os irmãos Sadjo e Cassimo Turé se mudaram com a família, emigrada da Guiné-Bissau.
Já Fábio Poças é oriundo de Mem Martins, poucos quilómetros mais à frente seguindo a linha do IC19, conhecendo, por isso, a maioria dos arguidos.
Para estudar, para trabalhar ou arrastados pela família, a pouco e pouco, todos os oito arguidos acabaram por emigrar para a zona de Londres, onde se instalaram em Leyton, um bairro londrino onde reside uma das maiores comunidades muçulmanas de Inglaterra. Ali, à medida que foram chegando, “passaram todos a conviver” uns com os outros. E acabaram por, segundo o Ministério Público, converter-se ao Islão. Só os irmãos Sadjo e Cassimo Turé já tinham “origem numa família muçulmana”, lê-se no despacho de acusação.
O Ministério Público situa entre 2011 e 2012 o momento em que, “por profunda convicção política-religiosa”, os oito arguidos aderiram “a movimentos fundamentalistas islâmicos”. Juntos, formavam um grupo a que chamavam Umbrella Corporation.
Já Rómulo, o único arguido do processo a pedir a abertura de instrução para tentar impedir o julgamento, explicou às autoridades que se converteu ao Islão quando tinha entre 18 e 20 anos e que se vê como “um muçulmano normal” que segue “os preceitos básicos dessa religião”, negando ser “seguidor de qualquer corrente ideológica radical, conservadora ou ortodoxa”.
Segundo o despacho de acusação do Ministério Público, no entanto, Rómulo aderiu em Londres a movimentos fundamentalistas islâmicos, proclamando-se e assumindo-se como seu representante, tal como os restantes arguidos. Os irmãos de Rómulo, Celso e Edgar, bem como os irmãos Cassimo e Sadjo Ture e os amigos Nero Saraiva, Fábio Poças e Sandro Marques terão decidido recrutar combatentes para a Síria — para onde acabaram por ir Sadjo, Celso, Edgar e Nero em 2012. À exceção de Nero, todos eles chegaram a regressar a Lisboa em agosto desse ano, mas para virem buscar as suas mulheres e filhos, com quem terão voltado para o Médio Oriente
Para a acusação, apesar de ter permanecido sempre em Londres, Rómulo tinha um papel ativo nesta organização. Contactava frequentemente os irmãos, dando apoio logístico, e era também o elo de ligação entre eles e a restante família que permanecia em Massamá. E, tal como todos os outros, era um membro efetivo da organização terrorista do auto-proclamado Estado Islâmico.
O Ministério Público refere que “Rómulo Costa foi mantendo, ao longo do tempo, contacto com os seus dois irmãos, Edgar e Celso Costa, desde que se deslocaram para a Síria”. E que ele era o “elemento de ligação destes com a restante família, sobretudo com os seus pais”. Rómulo Costa atuou “com a intenção concretizada de apoiar os seus irmãos”. E “sabia que, sem este seu apoio, o seu irmão, Celso Costa, não conseguiria regressar à Síria”, lê-se no despacho de acusação.
Às autoridades, Rómulo Costa garantiu nem sequer conhecer alguns dos arguidos, como Cassimo Turé, Fábio Poças e Nero Saraiva. Num dos recursos em que tentou ser libertado da prisão diz que Sadjo Turé, Sandro Marques, Fábio Poças e os irmãos Celso e Edgar Costa já morreram. E que “Nero Saraiva foi capturado, paraplégico, pelas forças de coligação internacional e está preso a aguardar julgamento na Síria — processo findo o qual, certamente, partirá para junto de Alá sem pagar custas judiciais ou tão pouco interpor recurso”, lê-se no despacho.
De que são acusados?
O Ministério Público acredita que “por profunda convicção político-religiosa, marcadamente salafista jihadista, de natureza violenta“, os arguidos organizaram-se em grupo e juntaram-se a organizações, como o Estado Islâmico e a Brigada dos Emigrantes — organizações reconhecidas internacionalmente pela ONU e pela UE como terroristas.
O juiz de instrução, que validou a acusação do Ministério Público e enviou o processo para julgamento, considerou que todos eles conjugaram esforços, recrutaram, auto-financiaram-se e financiaram a organização terrorista Estado Islâmico e apoiaram logisticamente a deslocação de cidadãos britânicos e portugueses para a Síria com o propósito de integrarem a organização fundamentalista islâmica de matriz jihadista.
“Brandir com os nomes, estatutos e funções de um conjunto de pessoas responsáveis e respeitáveis, como estando estas convictas do alheamento destas pessoas todas à dita “Jihad” não resiste a um mínimo de honestidade intelectual”, lê-se.
E por isso pronunciou os oito arguidos dos mesmos crimes que o Ministério Público os acusara. Nero Saraiva, Sadjo Turé, Edgar da Costa, Celso da Costa, Fábio Poças e Sandro Marques (todos eles em parte incerta), Cassimo Turé (que vive no Reino Unido) e Rómulo da Costa (preso em Monsanto) vão assim ser julgados pelos crimes de adesão e apoio a organizações terroristas, recrutamento para organizações terroristas e financiamento do terrorismo.
Rómulo Costa. O único dos oito alegados terroristas portugueses do Daesh que pode ser julgado
Quem vai estar no tribunal?
Só Rómulo, que está preso em Monsanto, e Cassimo, que já regressou do Reino Unido, onde se encontra em liberdade, vão estar esta terça-feira no Campus da Justiça para o julgamento que será conduzido pelo juiz presidente Francisco Coimbra. Para já estão marcadas esta sessão e uma outra a 15 de setembro, mas só pelo Ministério Público foram arroladas dez testemunhas — pelo que o julgamento deverá continuar por mais dias.
Apesar de nenhum destes dois arguidos ter estado na Síria, ao contrário dos restantes seis portugueses que serão julgados à revelia, o Ministério Público considera que Cassimo prestou um “apoio fundamental” às organizações terroristas, tanto ao ajudá-las financeiramente, através da receção de dinheiro e distribuição pelos restantes arguidos, tal como pela adulteração de documentos. Já Rómulo Costa, segundo o Ministério Público, cedeu o seu passaporte para que o seu irmão chegasse à Síria, depois de lhe ter sido barrada a entrada naquele país, e foi sempre apoiando os irmãos.
Quais as provas que o Ministério Público tem?
A 16 de junho de 2019, depois de deter Rómulo Costa, a Polícia Judiciária (PJ) fez uma busca à sua casa em Massamá, onde também chegaram a viver os irmãos Edgar e Celso. As autoridades apreenderam diverso material informático, telemóveis e uma folha manuscrita com uma lista de vários artigos, nomeadamente calças de combate, gorros e referências a contactos. Entre esses nomes estavam os dados pessoais de Sandro Marques, outro dos portugueses suspeitos de terem integrado o Daesh.
Foram também encontrados vários documentos relacionados com voos entre Lisboa e o Reino Unido e comprovativos de despesas médicas na Tanzânia, por onde os irmãos de Rómulo terão passado antes de irem para a Turquia e, depois, para a Síria. Foram igualmente apreendidos DVD com gravações áudio de discursos religiosos.
As autoridades encontraram ainda algumas imagens de cartazes publicitários de produções cinematográficas fictícias assinadas por Rommy Fansony, o nome artístico de Rómulo Costa. Na sinopse de Jihad-Atentado III, por exemplo, lia-se mesmo que o filme seria baseado na história fictícia de homens e mulheres corajosos que usaram a sua ideologia para mudar o mundo. Num outro cartaz semelhante, desta vez para o filme Atentado III 1979, lia-se que o filme (fictício) tinha sido feito em em associação com AfroTugaz TV, UK TV e BBC, aparecendo Rómulo na imagem de fundo. 1979 foi o seu ano de nascimento.
A polícia apreendeu mesmo letras de músicas que terão sido escritas por Rómulo e cujo tema principal era a Síria. “Pux beat fuck popo”, “Mopeople” ou “Genocide” são apenas alguns exemplos de títulos dessa letras de músicas que escreveu.
A par destas produções, que levaram as autoridades a acreditar que Rómulo queria produzir um filme baseado na história dos próprios irmãos no Daesh, foram encontrados documentos forjados da polícia britânica da decisão de não prosseguimento do processo-crime movido contra Rómulo no Reino Unido, bem como do cancelamento da fiança que teve que pagar pela liberdade.
Foram encontrados também documentos relativos à tentativa de trazer as cunhadas e os sobrinhos dos campos de refugiados onde se encontravam. A polícia apreendeu uma declaração assinada pelo pai dos alegados terroristas a responsabilizar-se pela permanência daquelas famílias em Portugal, assim como uma lista de nomes de refugiados num campo da Síria, entre os quais os das mulheres e filhos de Celso e Edgar.
A polícia tem ainda escutas telefónicas, um disco rígido com diverso material e até vídeos em que um dos arguidos, Nero Saraiva, conta como chegou ao contacto com o auto-proclamado Estado Islâmico. Além disto, há também vários e-mails enviados entre os arguidos e a sua família, alguns que revelam como uma das irmãs dos irmãos Costa ficou chocada ao saber o que eles estavam a fazer na Síria.
Portugueses acusados de pertencerem ao Daesh vão a julgamento
Quais as penas a que podem ser condenados?
Os oito arguidos são acusados em coautoria de um crime de organizações terroristas (adesão e apoio a organizações terroristas), o que segundo a lei é punível entre os 8 e os 20 anos de cadeia, consoante a intervenção de cada arguido na organização.
São também acusados de um crime de terrorismo internacional (recrutamento para organizações terroristas), que tem uma moldura penal entre os dois e os dez anos de cadeia.
E, por fim, um crime de financiamento do terrorismo, punível de oito a quinze anos de prisão.
Assim, no campo das hipóteses, os arguidos enfrentam uma pena total máxima de cadeia que, em Portugal, não pode exceder os 25 anos.